terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Propósitos para o Ano Novo (de Alma Welt)


                              A Árvore Mágica da Alma - óleo s/ tela de Guilherme de Faria
 
Propósitos para o Ano Novo (de Alma Welt)

Queria ter um pouco de humildade,
Suficiente pra calar a minha boca

E ser um pouco mais sábia, na verdade,
Ser prudente e não mais dormir de touca.

Um pouco mais de calma e complacência
Com os tolos, os de estupidez sem fim,
Os que se afastaram da inocência
E assim nada conservaram do Jardim.

Mas saúde, mental, de preferência,
Pois reconheço meu frágil calcanhar,
Que é o meu ponto fraco de nascença.

E entrando no Ano Novo, novamente,
Os mesmos sonhos na passagem carregar,
Que sem eles, eu confesso, não sou gente...
 



 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Poeta, Quixote (de Alma Welt)


                                 Don Quixote - gravura de Gustave Doré

Poeta, Quixote (de Alma Welt)

Um desespero surdo, longo e lento
Confluindo com o gosto de existir
Nos revela a essência do talento:
O poeta em nós vai se imiscuir...

Mas viver já não será tarefa fácil
Se nos pomos a pensar em algo mais,
No que é profundo, belo ou grácil,
Que não se afastará de nós jamais.

Pois do mundo o lado sórdido e cruel
Persiste e não é fácil ignorá-lo
Pois na boca deixa seu travo de fel.

A Poesia nasce dessa ambivalência,
Uma carga ou mesmo dose pra cavalo
Para um Don Quixote em sua demência...
 


Sonhemos (de Alma Welt)



 
 
Sonhemos (de Alma Welt)

Que seria nossa vida sem os sonhos?
O mais triste festival de ninharias,
Um desfile de espectros bisonhos
De nosso ego, e das egolatrias...


O sonho verdadeiro é universal
E, pois, comum e grato a todos nós;
O resto são miragens de quintal
Ou simples devaneios quando sós.

Sonhemos grande nesta vã casca de noz
Qual fôssemos Chopin, Liszt, Beethoven,
Ou “fantastique” como quis o Berlioz...

Se incapaz de pintar de ouro o trigo
Desses campos que os meus olhos também vêem,
Possa, ao menos, sonhando, estar contigo...

sábado, 28 de dezembro de 2013

A barlavento (de Alma Welt)




  
A barlavento (de Alma Welt)

Vão-se as dores e risos com os ventos,
Vão-se neles nossas loucas veleidades...
Então ficam nossos passos bem mais lentos
Carregados de lembranças e saudades...

Assim Frida, a minha avó, dizia,
Mas o fazia por certo em alemão,
Que como versos de Goethe soaria,
A mim, guria, sentada ali no chão.

Vão-se os anos na cruel fuga do vento
E ficam nossas lembranças ancoradas
Ou singrando na maré à barlavento.

Lá se foram avó Frida, avô Joachim,
Mas permanecem, as proas amarradas
Nesse cais petrificado que há em mim...
 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Herança (de Alma Welt)


                                      A Matriarca - lito de Guilherme de Faria, anos 70
A Herança (de Alma Welt)

Quê podemos nós fazer em liberdade
E escolha, realmente, nesta vida?
Muito pouco, a rigor e acuidade,
Pois tendemos a uma trilha conhecida

Ou ditada pelos velhos preconceitos
Que herdamos com carinho das avós
E que logo se grudam em nossos peitos
Até que não se distingam mais de nós.

É preciso firmeza e mente aberta
E até mesmo uma certa crueldade
Pra sacudir esse jugo da saudade...

Então, uma suspeita nos desperta
Que era tudo ironia, na verdade,
E o contrário é que era a coisa certa...
 

sábado, 21 de dezembro de 2013

Quando (de Alma Welt)


                                        A velha casa branca

Quando (de Alma Welt)

Quando eu não desejar mais meus desejos
E o espelho já não mais mentir pra mim,
E cessarem da vaidade os ensejos
E adormecer do amor carnal o querubim,

E um estudante vier ao meu tugúrio
Saber da chave das estórias que ele leu,
Ou cotejar algum soneto espúrio
A um bom soneto tido como meu...

Eu estarei afinal mais confortável,
Deixado enfim pra trás o sofrimento
Causado pela ânsia irrefreável

De viver, viver tanto e comovida
Como se os goles de um momento
Matassem minha sede de uma vida...
 


Ponderações (de Alma Welt)

Bastaria que fôssemos mais lúcidos
Para cruzarmos os braços em espera,
Mas loucos que somos, e assim cúpidos,
Mergulhamos no prazer da nova era.

Quanta ilusão, quanta tolice egóica
Faz-nos ser quem somos, tão humanos,
Esquecida, porém, a fase estóica
Dos arcaicos guerreiros espartanos...

Hedonista se tornou o nosso mundo
E nunca foi tão grande o sofrimento,
Nunca foi nosso dilema tão profundo...

Não mais sentado no alto da montanha,
O poeta, guardião do pensamento,
Há de emergir de confusão tamanha?

Os véus (de Alma Welt)



                           Litografia de Guilherme de Faria, do álbum Reflexos, 1978


Os véus (de Alma Welt) 

Quanta súbita saudade da guria
Que fui, conquanto traga em mim

A sua ingênua crença na poesia
Como meio de manter a vida assim.

Assim, como? Assim, cheia de encanto
Como se fosse concebida e acabada
Em beleza oculta em cada canto
Ou como partitura a ser cantada.

“Não há nada mesmo fora de lugar
E nem há injustiça neste mundo;
Se tu sofres, é que em algo foste errar.”

E se eu via o mundo em perfeição
Mas já com certo medo lá no fundo,
Ai de mim, se os véus forem ao chão...

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A inaudível trilha (de Alma Welt)



                           A Morte de Garcia Lorca- pintura de Guilherme de Faria, de 1959

A inaudível trilha (de Alma Welt)

Um certo medo surdo e persistente
Perpassa nossa vida como sombra
Ou pano de fundo inconsistente,
Rumor de nossos passos numa alfombra.

Podemos esquecê-lo por momentos
De entusiasmo ou de alegria,
Mas tão logo cessam esses ventos
O medo nos vem na calmaria.

É a Morte, já não temo nominá-lo,
Que nos assombra a existência
Como a pálida figura no cavalo...

Mas é como inaudível som de fundo
Que sinto desse medo a persistência
Em ser a nossa trilha neste mundo...
 

Os hábitos (de Alma Welt)


 
 litografia de Guilherme de Faria

 Os hábitos (de Alma Welt) 

Nossos hábitos são pequenos rituais
Que atestam nosso laço com o sagrado

Que queremos nas coisas mais normais
E não só na magia do encantado.

Milagres? É verdade... os esperamos,
Mas como resposta ao nosso tédio.
Que nos venha salvar de onde estamos,
Um poço de marasmo sem remédio...

Entretanto continua a liturgia
De nossa existência tão regrada,
Embora perpassada de poesia...

Mas se de súbito a vida transfigura
E a revelação se faz, inesperada,
Como sonho se apaga, não perdura
...

Carpe Diem (de Alma Welt)


                        Detalhe da tela "Alegoria" (Alma Welt) de Guilherme de Faria, 2013


Carpe Diem (de Alma Welt)

Quê surpresa me reservará o dia?
É a pergunta que me faço ao acordar,

Pois o verso surpreendente na poesia
É somente o que me vale confiar...

Planos, quê planos? Não funcionam.
Nossa vida não aceita imposições
E os fatos reais nos emocionam
Inesperados quando são aos corações...

Neste soneto até agora comandei,
Nada veio que me faça gargalhar
De prazer ou por um susto que me dei.

Sempre a esperar o inesperado,
Tenho antenas voltadas para o ar:
Tudo pode penetrar no meu cercado...

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O Real Imaginário (de Alma Welt)


 
 
O Real Imaginário (de Alma Welt) 

Entre o real e o imaginário,
O mito e o fato acontecido,
Entre o camelo e o dromedário
Não tenho realmente um preferido.


Mas que o caso ou fato seja belo,
E não me leve, apeada, para o chão
Das coisas corriqueiras, sem castelo,
Ou sem luar sequer, sem violão...

“És fantasista, no ar queres flutuar!
Ponha, assim, o pé na terra, sobre o pó!”
Logo dizem os que me querem desmontar.

Mas meu camelo gosta das agulhas
E as atravessa como a linha sem um nó,
E entra num céu coberto de fagulhas...

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A corda sobre o abismo (de Alma Welt)


 
 
A corda sobre o abismo (de Alma Welt)

Não podemos confiar na nossa alma
Que tem razões profundas se nos trai,
Como o coração, que não se acalma
E nos leva ao chão consigo quando cai.

“Então estamos à mercê dos desvarios?”
Me perguntas, em pânico, ao me leres...
“Sim”, respondo, direta e sem desvios:
“Não subestime as sombras, seus poderes...”

Eis porquê o poeta é aclamado
Mas logo reduzido a algum “ismo”
Que o ponha doce e acomodado.

Mas se és equilibrista, amas a corda
Com que o simples bom senso não concorda,
Estirada sobre o vasto abismo...
 

A vida é difícil (de Alma Welt)



                                             Giuliano Giuggioli, “Labirinto con cipressi”   
 
A vida é difícil (de Alma Welt)

A vida é difícil e tortuosa
Nas suas selvas e desertos, descaminhos;
Para a multidão, escrita em prosa,
E versos para os tristes e sozinhos.

Não concordam? Já começou a luta,
A nossa herança da Torre de Babel.
Não adianta evitar uma disputa,
É preciso as nossas firmas num papel.

Mas a vida verdadeira não é isso,
Mas tudo o que na solidão persiste,
Que é o nosso verdadeiro compromisso...

Entre os dois pólos extremos deste curso
Vale o amor, que por ventura existe.
O resto é acidente de percurso...
 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Nau dos Homens (de Alma Welt)


                                        A Nau de Ulysses- aquarela de Guilherme de Faria

Nau dos Homens (de Alma Welt)

Somos todos companheiros de jornada,
O milagre é estarmos aqui, juntos.
Não importa quão diversa é a fornada
Ou se então, potenciais somos defuntos.

Que haja, pois, camaradagem entre nós!
O barco tenha um rumo, senão porto,
Quer seja mesmo nossa nau casca de noz,
Balão azul, ou perdido velho horto.

Nada sabemos, vogamos às escuras.
Como não nos apoiarmos um no outro,
Se o capitão sumiu e o procuras?

Mas, heróis, voltemos de uma Tróia,
Seja o nosso cavalo tenro potro,
Toda vitória humana, vã tramóia...
 

domingo, 15 de dezembro de 2013

O Sono e os Sonhos (de Alma Welt)



                                                Ilustração de Alexander Jansson

O Sono e os Sonhos (de Alma Welt)

Vê: o sono nos foi dado em compaixão,
Os sonhos como vida alternativa,
Um consolo para a triste condição,
Ou freio para a alma mais altiva.

De quê te queixas, pois, ó agraciado
Se podes pôr tua fronte no teu braço
Se não num travesseiro amaciado
Com dois socos, e deitar o teu cansaço?


Viajemos, galguemos nossos Cáucasos,
Ou às tuas savanas torna e fiques,
Que são nossos novamente, nos dois casos.

Eis a sombra do Eterno que nos cabe!
Então sobre os teus sonhos edifiques
Pois que pra além do sono ninguém sabe...

domingo, 24 de novembro de 2013

De repente (de Alma Welt)

                                        O Salgueiro Sagrado da Alma (esboço)- pintura de Guilherme de Faria


De repente (de Alma Welt)

De repente começa o vago esforço

Pra persistir achando a vida bela;
O quadro que pintamos, mero scorzo

E sem o encanto da aquarela

Que sonhávamos fazer das nossas vidas
Que ficaram borradas pelo chão,
De tentativas vãs, mal sucedidas,
De agradar alguém mais que o nosso cão.

Mas eis que por um golpe de visão
Podemos refazer todo o percurso
E mudar o destino e a estação.

Não tem jeito de uma vida se perder
Se aceitamos mudar o nosso curso
Para o nosso mesmo sonho acontecer...

sábado, 23 de novembro de 2013

Os Amigos (IV) (de Alma Welt)

Consolação - pintura de Gaetano Belley
 
 
 
Os Amigos (IV) (de Alma Welt)

Preciosos amigos de uma vida,
Por alguma razão tão dedicados

Apesar da minha alma dividida
Entre a solidão e os agrados

Daqueles reencontros tão festivos
Com abraços apertados e tapinhas
Nas costas com sinais receptivos
De faces se encontrando com as minhas...

Agora tudo é já passado, recolhida
Prefiro esta memória dos momentos
A que tão prontamente dei guarida.

Mal sabem que os retenho assimilados
No antes da chegada dos tormentos,
Que guardei-os no melhor dos seus passados...

Francesca Da Pampa (de Alma Welt)


Francesca Da Rimini
 
 
Francesca Da Pampa (de Alma Welt)

Dói-me deixar a Terra e mais meu Pampa,
Tanto, tanto, que meu rosto desfigura
Por mais que jovem sou, de fina estampa,
Que destes campos tive a sinecura.

Pelos peões saudada, sem surpresa
Como se ainda Império houvesse,
Ao passar desde guria qual princesa
Na terra que os farrapos não esquece...

Hei de voltar, meus versos já deixei
Para que, quem sabe, não me esqueçam
(pois somente os apagando morrerei),

Mas como antiga saga romanesca,
No vento, que meus traços apareçam
Abraçada ao meu amor, como Francesca...

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

The Fortune’s Fool (Alma Welt)



              Shakespeare                                                
 
                                                  Confúcio                 Heráclito

The Fortune’s Fool (Alma Welt)
 
Somos todos bobos do Destino
Como Romeu ao vingar o bom Mercutio.
Prefiro tudo o que precede o sino
Ao que disse Heráclito ou Confúcio.

Pouca coisa faz sentido nesta vida
Que não tenha dentro o amor e arte.
Na verdade é coisa bem sabida,
Ambos da maldade a contraparte.

Mas, Senhor Deus, que criastes o vazio
Que permeia o Universo inteiro
E não nos deixa vadear o mesmo rio,

Qual o sentido, senhor, de tudo isso
Já que somos os peões do tabuleiro
De um jogo em que o rei já deu sumiço?
 

A futilidade é o mal do mundo (de Alma Welt)


                             Quiromancia - gravura em metal de Guilherme de Faria, 1962

A futilidade é o mal do mundo (de Alma Welt)

A futilidade é o mal do mundo.
Tudo mais é desculpável, francamente.
A maldade e o pensamento imundo
Com ela coabitam a mesma mente.

Imensa é do fútil a descendência,
Toda e qualquer miséria é sua filha,
Inclusive as paixões e a demência
Que faz de um continente mera ilha.

Eis porque de Satã é o seu comando,
Ele, o Grande Fútil obstinado
Desde quando iniciou o seu desmando.

Mesmo Deus, nosso Supremo Compassivo
Se enche de nojo, e exasperado
Se pergunta onde falhou, qual o motivo...

Os Fantoches (de Alma Welt)


 
 
Os Fantoches (de Alma Welt)

Basta um leve desvio no enfoque
Para a vida monstruosa se tornar;
Do belo ao horror, somente um toque
E já podemos no inferno despenhar.


Como é fina e sutil a sintonia
Que nos permite viver em plenitude
De amor, serenidade ou alegria
Ou com outro ser a completude...

Pobres de nós, fantoches do destino
Manobrados por balouçantes fios
(que o desempenho devia ser mais fino)

E no final da função, emaranhados,
Às palmas misturando-se assovios,
Quando não francamente assim vaiados...

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Alma Convexa (de Alma Welt)


 
 
Alma Convexa (de Alma Welt)

Não desprezei a sociedade, o mundo,
Muito menos os frutos da amizade.
É que em minha alma fui mais fundo
Para toda me doar, não só metade....

Quero dizer que na alma concentrei-me
Para ser de quem me ler um bom reflexo
Do espelho profundo em que tornei-me
Malgrado este olhar duplo convexo.

Então, lente em mim, incendiei-me,
Já que esta é a sina do poeta
Como disse um outro em que mirei-me. *

Mas se viver não é preciso e sim criar,
Nem por isso fui monja ou só asceta:
Todo fogo sempre a todos quer se dar...

______________________________

Nota
*Como disse um outro em que mirei-me - Alma se refere a Fernando Pessoa, no seu prefácio famoso, em que este além de prometer incendiar-se, diz, prafraseando os antigos navegadores portugueses: "Criar é preciso, viver não é preciso..."
 

A casa vazia (de Alma Welt)



 
                              A bruma - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 1977
 

A casa vazia (de Alma Welt)

Agora que as cobranças terminaram
E não podem me pedir senão poesia,

Beleza, somente, que é o que me guia,
E sempre devida aos que me amaram,

Ainda dou-me o luxo da distância,
Do silêncio e solidão contemplativa
Que emanam dos campos desta estância
De onde eu mesma sou a patativa...

Senhor, o quê quereis, que vens de longe?
Pouco posso servir além do amargo,
E não sois certamente nenhum monge...

A casa está vazia e assombrada
Mas deitareis comigo, sem embargo,
Se me amares como outrora fui amada...

domingo, 3 de novembro de 2013

Os lugares comuns (de Alma Welt)



Detalhe do quadro Alegoria
 (Alma Welt, o passado, o presente, o futuro)
de Guilherme de Faria
 
Os lugares comuns (de Alma Welt)

Contigo o que farei, maturidade,
Se carrego ainda os sonhos loucos
Que me acalentei na tenra idade,
Eu que fora sonhadora como poucos?

Dei com os burros n’água, eu desconfio,
E os amores meus se foram com a maré,
E, bom clichê, fiquei no cais a ver navio,
Depois voltei pra casa andando a pé...

Mas persisto no que os sonhos me meteram
E não serei quem maldiga ou vá cuspir
Nos pratos que comi ou me comeram...

E agora, lambendo minhas feridas,
Permaneço quando mais devo partir
E enfim me despedir das despedidas...

sábado, 2 de novembro de 2013

O Divino Engodo (de Alma Welt)


                                                Jacó engana seu pai cego - Rembrandt

O Divino Engodo (de Alma Welt)

A vida ama o engodo, estou convicta:
Pela benção do Pai, as peles quentes; *
A primogenitura nossa, invicta
Só trocando as lentilhas pelas lentes. *

Na natura um perpétuo come-come,
O mais esperto comendo o toleirão;
E isso é imoral, malgrado a fome
Que suplanta a justiça e a razão.

Como toleras, Senhor, tal maroteira?
Fazes sempre, me parece, vista grossa...
Então a Justiça é a ratoeira?

Senhor, são insondáveis teus critérios
E a única opção ainda nossa:
Entre as cinzas e o pó dos cemitérios...

______________________________

Notas

  * Pela benção do pai as peles quentes - alusão ao episódio bíblico em que Jacó engana seu pai Isac com a juda de sua mãe Raquel, usando uma pele de ovelha nas costas para obter a benção de seu pai que só a daria ao primogênito, o peludo Esaú.

*Só trocando as lentilhas pelas lentes - Alma alude ao episódio da troca do direito de primogenitura por Esaú por um prato de lentilhas (que significa pequenas lentes). Outra maroteira do Jacó contra seu irmão mais velho. O verso da Alma insinua que Esaú não o faria se tivesse uma visão maior (uma lente) e não a imediatista da fome ou da gula que produz uma visão pequena (lentilha, pequena lente)...
 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A Arca no Sótão (de Alma Welt)



A Arca no Sótão

“O que se foi deixemos no passado,
Do contrário caímos na esparrela
De viver novamente o mesmo fado...
E de acender de novo a mesma vela.”

“E o pavio decerto está mais curto,
Muito em breve seremos cinza ou pó.”
Com aquele riso como um surto,
Assim dizia Frida, a minha avó.

Mas eu, entre o medo e o fascínio,
Sendo a curiosidade minha marca
E com forte atração pelo declínio,

Num sótão entulhado de mobília
Garimpava no cascalho de uma arca,
Virtudes nos pecados de família...
 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Testamento (de Alma Welt)

Poente - óleo s/ tela de Guilherme de Faria
 
 
Testamento (de Alma Welt) 

Por aqui os tais bons tempos já passaram
E contemplo agora a decadência;

Amei, escrevi livros e me amaram
E tudo isso foi feito com ardência.

Uma parte das horas foi de espera,
Que esta sempre foi a humana sina;
Jamais galguei paredes como hera,
Pois fui árvore no alto da colina.

Não deixei passar em vão um só poente
Mas também não tomei Teu santo nome,
E por isso me tomaram por descrente.

Então próxima da hora mais intensa
Não diria que matei a minha fome:
Bem mais queria, Senhor, e sem ofensa.

Ariadne do Pampa (de Alma Welt)



                               Ariadne em Naxos - pintura de Evelyn de Morgan (1877) 


Ariadne do Pampa (de Alma Welt)

Estive sempre aqui à tua espera,
Minuano, minotauro do meu fado

Já que corroboro tua quimera,
Bem cedo irei contigo ao outro lado.

Somente tu quiseste a pampiana
Solitária malgrado certo encanto
Que herdei de minha mãe, a Açoriana,
Conquanto outra voz e outro canto.

Fui bela, não serei falsa modesta...
Se como prenda não casei ou procriei
É porque olhei a vida pela fresta.

No labirinto me vi por um momento,
Nesta Naxos já enrolada me deixei
E fui de mim em vela negra pelo vento...

A roupa nova do poeta (de Alma Welt)


O rei está nu - gravura em metal de Katarína Vavrová
 
A roupa nova do poeta (de Alma Welt)

Tão ambígua é a vida do poeta
A tecer para si manto invisível

Qual roupa nova daquele rei pateta
Conquanto com nudez mais aprazível.

Pelado está o rei mas é tão belo
Que o povo se comove e quer tocá-lo
Neste seu desamparo e sem castelo
Nem folha de parreira a disfarçá-lo.

Maldaram que o rei se envergonhou
E saiu com a mão na frente e outra atrás,
Que parreira não havia ou se acabou...

Mas o poeta anda nu na passarela
Como Adão que consigo a Musa traz
Recém-saída, triunfante, da costela...


Conto de fadas (de Alma Welt)

Ofélia (A Morte de Alma Welt) - óleo/tela de Guilherme de Faria, 90x130cm 
 
 
Conto de fadas (de Alma Welt) 

De solidão e desamparo sou princesa
Absoluta em dias de declínio
E vivo numa torre de incerteza
Numa história de mim, que me imagino.

Ora, direis, essa estória é conhecida!
Toda guria sonha ser Branca de Neve,
Rapunzel ou belamente adormecida
Despertar com um beijo doce e leve...

Mas não, nada de beijo, eu vos garanto,
O reino que me coube é todo plano
E o pala neste inverno é o meu manto

Mas um misto de Hamlet e Ofélia
Descreveria bem mais meu desengano,
Ou aqueles dois suspiros da camélia...

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Noturno (de Alma Welt)

 
 
Noturno (de Alma Welt)
 

Só o casarão restou-me, e o vento,
Minha última vindima já acabou;
O tempo agora corre bem mais lento
Mas a minha esperança já levou...

O relógio do salão só bate as horas
Dos dois ponteiros juntos para o alto
E eu que nada espero das demoras
Já não mais me pego em sobressalto.

Tudo é passado e eu nem envelheci
Na pele e no cabelo, nem nos lábios
Que ainda evocam os vinhos e o rubi.

Eis que em busca estou de mim perdida
E me guio por estrelas e astrolábios
Só pra voltar ao meu porto de partida...



sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A alternativa (de Alma Welt)



 
 Fotograma do Filme Romeu e Julieta, de 1968, de Franco Zefirelli
 
  (Romeo: "Courage, man; the hurt can not be much."
Mercutio:"No, 'tis not so deep as a well, nor so wide as a church-door; but it's enough, 'twill serve: ask for me to-morrow, and you shall find me a grave man. I am pepper'd, I warrant, for this world: - A plague o' both your Houses.")
(....... Romeu: O! I am fortune's fool.)...


A alternativa (de Alma Welt)


Somos da corte coringas do destino,
Como Romeu disse de si mesmo.
Na verdade disse “bobo”, o bom menino,
Matando por engano, meio a esmo.

Mas Mercutio a sangrar nos deu a chave
Desse nosso destino sobre a terra,
Dizendo que o veriam bem mais “grave” *
No tal banquete trágico, que aberra.

Eis a dupla imagem mais extrema:
O bobo e o solene catafalco
Ou a tumba, nosso derradeiro tema.

Mas prefiro do Bardo a alternativa
Que é levar a própria vida para um palco
Onde mora e permanece sempre viva...

______________________

Nota
* grave- notável trocadilho de Mercutio,  pois a palabra "grave", ao mesmo tempo que quer dizer grave, solene, compenetrado, é também a palavra para designar "túmulo".


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Bailarina (de Alma Welt)



                                       
Bailarina - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 1973, 130x100cm
 
Bailarina (de Alma Welt)

Quisera a bailarina por um dia
Com tudo o que este sonho implica,
Mesmo o sofrimento e agonia
Que um minuto na coxia multiplica.

Mas, ah! sua beleza sobre-humana
E esse treino aplicado da elegância;
O gesto que da própria alma emana,
E do divino a mais secreta ânsia.

Mas quão trágico afinal o teu destino,
Cisne negro, nascido pra a ribalta,
Que na vida, tão só puro desatino...

Então volto aos meus blocos e teclado
Onde posso versejar o que me falta,
Ser um pouco bailarina de meu fado...
 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O Poeta (de Alma Welt)


               
                            Em homenagem aos cem anos de Vinicius de Moraes...

O Poeta (de Alma Welt) 

Desgraçada é a sina do poeta
Mesmo quando ele não caia na bebida

Já que quase nunca é um asceta,
Por apetite extremo pela vida...

A sua atração pelo patético
E o culto secreto da derrota;
O cultivo da face sem cosmético
E da Roma do real rumo sem rota...

O poeta alardeia suas minúcias
E leva-nos com ele a deambular
Por seus truques, malícias e argúcias.

E no final nos abandona no portão,
Sua calça a lhe cair no calcanhar,
Com inocência acenando-nos a mão...

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Utopia (de Alma Welt)




 Utopia - mapa do século XVI
 
Utopia (de Alma Welt)

Aceitação do Mundo, és tão mais bela
Que as nossas Utopias sem juízo
Que criamos do nada ou da costela
Para sonharmos viver num paraíso.


Então não vedes, sonhadores de plantão,
Que estais fora já da vida que nos coube
E que temos ao alcance, assim, da mão,
Antes que o Criador mesmo nos roube?

* Vede como nasce o Universo
Na ponta de dois dedos todo dia,
E coincide como nasce cada verso...

Simplesmente estar aqui é o segredo
De uma vida quando plena de poesia.
Utopia! Terra falsa e de degredo...


_______________________________

*
 "Vede como nasce o Universo
Na ponta de dois dedos todo dia,
E coincide como nasce cada verso..." ( Alma Welt)



 

sábado, 19 de outubro de 2013

Orfeu a pau * (de Alma Welt)



                                                           Orfeu e as feras - (afresco) 
 

 Orfeu a pau * (de Alma Welt)

Confesso, estou mais pro desespero,
Colocadas as coisas na balança.
As conquistas, do fracasso têm o cheiro
E Orfeu só esta fera não amansa.

A Poesia já mal serve de consolo
E nada desvela esse mistério,
O infinito bater desse monjolo
Sem nada no pilão, o solo estéril.

Deveria eu então ter tido filhos?
Estavam certas a Mutti e a Matilde?
Muito cedo descarrilei dos trilhos...

É tarde, só me resta ir em frente,
Pro céu eu vou a pau ou pouco humilde,
A Poesia é um céu indiferente...

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Nota
  * Orfeu a pau - interessante duplo sentido, uma vez que segundo a lenda Orfeu foi morto a pauladas pelas mulheres da Lídia.
 

O Vale de Lágrimas (de Alma Welt)




                           O Pranto de Alma Welt -óleo s tela, de Guilherme de Faria,
                           (2006, 80x100cm) 
 

O Vale de Lágrimas (de Alma Welt) 

Uma vez, era guria, bem me lembro
Queixei-me por sentir-me injustiçada,

Não sei porquê mas devia ser Setembro,
E eu queria, acho, só ser abraçada...

Mas minha mãe, a Mutti, a Açoriana,
Me disse com tristeza verdadeira:
“Filha, a vida nos promete e nos engana
É purgatório, inferno, como queira,”

“De um vale de lágrimas não passa,
Cada um chore as suas e se cale...
Que querias? Ser feliz, assim, de graça?”

Mãe, conseguiste, resolvi virar a mesa.
Jurei desde então, nem que me rale,
Sair sozinha desse vale da tristeza...

A vida é triste (de Alma Welt)


                                                   Festa - Pieter Bruegel, o Velho


A vida é triste (de Alma Welt)

A vida é triste, e por isso a alegria
Tem sempre o sabor do inesperado.
Algo que há muito não acontecia
E que é preciso que seja celebrado...

Façamos festa, ergamos nossas taças
No brinde pela graça desse estado
Que congrega nossas diferentes raças
Sobre a Terra, território destinado.

Todos somos um por um momento,
Eis o dom da alegria: unificar,
Que implica perdão e esquecimento.

Amanhã voltaremos a ser tristes
Mas a lembrança das palmas vai restar,
Dos abraços, dos risos e dos chistes
...

Penélope do Pampa III (de Alma Welt)




                                          Penélope- de John William Waterhouse


Penélope do Pampa III (de Alma Welt)

“Por quê não te casas”- perguntaste
Como se eu fosse quase aberração

Pois meu modo de vida faz contraste
Com as gurias do Pampa ou do sertão.

Mas resolvi responder-te com candura
Depois de pensar por um momento:
“Casamento é efêmero, não dura.
Não merece confiança, o casamento.”

Mas na verdade consegui dizer somente:
“Casamento é destino, não me coube.
Fiz da literatura minha semente.”

E vi então que, abanando tua cabeça,
Não suspeitas que neste jogo eu roube
Nem contas com que eu teça mas desteça
...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Experimentemos (de Alma Welt)




                                          Antigo mapa do Ceilão- Taprobama

Experimentemos (de Alma Welt)

Tentemos não trocar nada em miúdos

Nem fazer as contas no final;
Não ir à guerra santa ou de Canudos
Para poder ir para casa no Natal...

Experimentemos ir além da Taprobama
Mas só se isso for dentro da alma...
Não sabemos arrumar a nossa cama
Nem consentir sobre isso, dar a palma.

Experimentemos, pois, dormir um pouco
Sobre os nossos louros e conquistas
E às trombetas fazer ouvido mouco.

E como no final dá tudo errado
Encontremos no erro novas pistas,
Pra saber onde estamos... De quê lado
?

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Inferno e Paraíso (de Alma Welt)

                           Dante e Virgílio no Inferno - ilustração de Gustave Doré
                           para A Divina Comédia

Inferno e Paraíso (de Alma Welt)

O Inferno são os outros, disse Sartre...
Mas também bem pode ser o Paraíso,.

Pois a vida contém sua contraparte
E nada é somente aquilo ou isso.

Pra tanto é preciso falsa rima
Para argumentar com alguma sedução
Como podem notar na quadra acima
Pois a tampa não se encaixa no caixão.

Pra que pisemos numa senda só de flores
É preciso fazer muita vista grossa
Para os lados do abismo e dos horrores.

Mas nisso está sabedoria ou esperteza
No melhor sentido que esta possa,
Pois malícia também sonha com a beleza...

A Ceia dos Valentes (de Alma Welt)


                                                            O Banquete - Filonov

A Ceia dos Valentes (de Alma Welt)

Aproximem-se os mais aquinhoados,
Que convido à minha mesa vos sentardes.
Não se trata de um banquete de abastados
Nem do tímido repasto dos covardes.

Aqui não se encontram os mais carentes,
Nem os tais que necessitam de consolos;
Nesta mesa só se sentam os valentes,
E que jamais nos confundam com os tolos.

Báh! Contemplem como alegres somos nós
Erguendo belos brindes à amizade
E aos amores que podem vir após...

E aos percalços passados e presentes,
Pois varamos mais de uma tempestade
Ainda que com risos delinqüentes...
 

A Entrevista (de Alma Welt)


Alma Welt ( A Entrevista Nua) - desenho de Guilherme de Faria
 
 
 
A Entrevista (de Alma Welt)

Te peço, não perguntes como vivo,
Como é a minha vida de solteira,
Ou qual é o meu processo criativo,
Se nasci no hospital ou de parteira.

Não me faças esta espécie de perguntas.
Somente escuta e deixa-me falar
Pelo fluxo da alma e mente juntas,
Que certamente só sei monologar...

Há muito abandonei todo diálogo.
Sinto muito se isto frustre a encomenda,
Já que não estava no catálogo...

Sou poeta e por isso mal respondo,
Escrevo versos, e só pra que se entenda:
Vivo nua no papel e nada escondo...

domingo, 13 de outubro de 2013

A Obra (de Alma Welt)


 
 Catavento da torre da Igreja Matriz
de São João de Lourosa, Viseu, Beira Alta, Portugal
 
 
 A Obra (de Alma Welt)
 
 
Que imenso labor é a nossa vida!
E mais se nos propomos uma obra,
O que torna nossa alma dividida
E sempre a trocar peles como cobra.

A cada obra nascemos e morremos
E passamos momentos carne-viva,
E é quando mais sentimos e sofremos
Ou nos fechamos qual frágil sensitiva...

Báh! Por certo há também os indolentes
A quem respeito um tal desprendimento,
Se forem puros, claros, inocentes,

Já que aqueles a quem basta só viver
Sem o verso, a torre, o cata-vento,
Têm a obra toda neles sem saber...
 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O lótus no jardim (de Alma Welt)


                                                  Stars - ilustração de Svetlana Valueva

O lótus no jardim (de Alma Welt)

“Nossos melhores passos deixam rastro
Como também os piores, na verdade.
  Não há nada que não fique no cadastro
De uma vida que só quer felicidade.”

“Nossas boas intenções não deixam marcas,
Somente nossos feitos são gravados,
Mas são ambos conferidos pelas Parcas
E finalmente no fuso são fadados...”

“Então pesem suas ações e intenções,
Se variam como o vento sempre muda
Ao capricho e ao sabor das estações...”

Assim dizia o mestre em meu Jardim,
Sentado em flor de lótus como um Buda
Enquanto em lótus eu pensava só em mim...