quinta-feira, 30 de março de 2017

A torrinha (de Alma Welt)

"Perante a enormidade dos antigos:
 Michelângelo, Leonardo, Rafael,
Somos pigmeus, anões, tolos nanicos
Querendo erguer uma torre de Babel."

Assim dizia um professor que tive
E que no entanto era um dos bons,
Cuja amizade e colaboração mantive
Porque não lhe agradava meios tons.

Como ele, amava eu tanto o passado
Que de me vi paralisada de repente,
Incapaz de dar um passo e ir em frente.

Então vi que o soneto era olvidado
E que eu renová-lo ainda podia
Erguendo minha torrinha de poesia...

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30/03/2017

terça-feira, 28 de março de 2017

Os pintores (de Alma Welt)

Blasfemar contra vida, Deus me poupe
Embora o tenha feito contra o mundo,
Pois este se tornou um quadro imundo
E não limpo e claro como um Volpi...

Quanto a nós mulheres, bem queria,
Que fossemos sempre nuas, sensuais,
Um desenho do Guilherme de Faria
Ou do Klimt, nada menos, nada mais...

Mas o cenário, bá! um bom Van Gogh,
Monet, supremos gênios do campestre,
De um brilho de deixar a gente grogue.

Do bom Deus aprendizes empenhados,
Se esforçaram para superar o Mestre,
Que sorria ao olhar seus belos quadros...

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28/03/2017

domingo, 26 de março de 2017

O mundo dentro (de Alma Welt)

Reconstruir o mundo a cada dia
Pra não deixá-lo dentro esboroar,
É minha tarefa sempre ao acordar,
Se não o faço, a vida se esvazia.

"Acaso és o mundo?"-perguntais-
"Ele gira muito bem sem teus aplausos,
Seu grande livro nem registra os teus ais,
Não és mais que um contador de "causos".

Não é só dentro de mim que ele existe
Mas dentro de cada um, claro, também:
O de fora é o espectro que persiste.

Se queres mudar o mundo e a vida,
Muda-te a ti mesmo para o bem
E verás tua humanidade agradecida...

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26/03/2017

sábado, 25 de março de 2017

Revisão (de Alma Welt)

Piedade, peço eu pro pobre Judas
Que traiu porque estava combinado,
E foi, pelo seu Mestre, industriado,
Que precisava uma ou duas ajudas.

Sim, o outro foi São Pedro, o Negador,
Para quem Mestre Jesus deixou barato
Já que estava tudo tudo no contrato
Firmado entre nós e o Criador.

Porque, claro, Jesus bem nos conhecia,
E quão mal a gente escolhe e já escolhia.
Sim, estamos envolvidos nesse imbroglio...

Como posso separar o pobre honesto
Da escória, da caterva e do resto,
Se eu mesma mal distingo o que nem olho?

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25/03/2017

sexta-feira, 24 de março de 2017

O Mistério da Vida (de Alma Welt)

O mistério se renova dia a dia,
Não há como solvê-lo num repente.
Enigma é a vida no presente
E o passado não nos serve mais de guia.

Com os meus botões meditava eu, assim,
Quando passa um guri de bicicleta
E num simples aceno para mim
Meu retrato desta vida se completa.

Tudo é simples, Alma Welt, não complica,
Mistério é (talvez) não haver mistério,
Assim disse o Caeiro muito a sério...

E segui, de repente solta e leve
Na trilha que se chama Vai e Fica,
Onde se me alonga a vida breve...

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24/03/2017

quinta-feira, 23 de março de 2017

O Poeta (de Alma Welt)

O poeta não dorme, sempre alerta,
Ou vive encantado, adormecido?
São duas as espécies de poeta?
É um ser ressaltado, esmaecido?

Primeiro, não lhe queira rotular
Que ele pode estar bem ao teu lado
E deves convidá-lo pra jantar
Pois me parece bem esfomeado.

É normal... vive de brisa o infeliz
Porque voa em voo raso de perdiz
Mas tão só no que concerne às finanças.

Tudo isso é apenas seu esboço:
Se o deixares depois de dar-lhe almoço,
O verás brincando com as crianças...

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23/03/2017

quarta-feira, 22 de março de 2017

Autorretrato II (de Alma Welt)

De repente, eu no mundo me vi solta
Como uma folha a rodar na primavera
Como se um outono fosse em volta,
E eu, a doidivanas que não o espera.

Com o mundo, não um certo descompasso,
Mas maior fluência, como um rio.
No mais um bom porte e um belo passo
E beleza, de que não me vanglorio...

E por fluir, correndo um pouco à frente,
O que causa desconforto para alguns
De um certo tipo "auto-complacente".

Enfim, uma Alma feita pra Poesia
O que não significa soltar puns
Com perfume de rosa ou maresia...

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22/03/2017

terça-feira, 21 de março de 2017

Afinal (de Alma Welt)

Afinal, será o mundo como o vemos?
Poderemos confiar nos nossos olhos?
Conosco mesmo é que nós nos comovemos,
Barco em perigo, no meio dos escolhos...

Somos pilotos sem bússola, astrolábios,
A não ser dos nossos preconceitos
Que são por nós mesmos mal aceitos
Trancados, na verdade, em nossos lábios.

Não dizemos a verdade plenamente
E quase sempre resistimos à tortura
Sem o fundo entregar, da nossa mente.

E no final levamos para o nada
Segredos que só mesmo a morte cura
E ostentávamos há tempos na fachada...

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21/03/2017

sábado, 18 de março de 2017

Autorretrato (de Alma Welt)

Tem um lado nesta vida que é banal
E o aceito, confesso, mas a custo.
Procuro num riacho o vão e o vau,
E estou a esculpir meu próprio busto.

Atravessar o fútil e o vazio,
Um caminho de areia, não de rocha,
Pra não molhar somente o meu pavio
No meu pobre triunfo, a minha tocha.

Haverá quem me acuse de soberba,
Ou que preguiça nublou meu desempenho
Já que alta poesia é tão acerba...

Mas falar tanto de mim é meu direito
Pois o faço com paixão e tal empenho
Como se levasse o mundo pro meu leito...

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18/03/2017

sexta-feira, 17 de março de 2017

Colido ou escapo * (de Alma Welt)

O mundo é só um caleidoscópio
Formado de mandalas e ilusões
Como que causadas pelo ópio
Com arranjos, simetrias e fusões...

Assim dizia um filósofo-poeta
Que inventei e comigo não durou
Por descobri-lo, senão um bom pateta,
Um iludido que a vida mal olhou...

É preciso olhar por baixo e de viés,
E para ver o que o mundo mesmo é
É necessário por no chão os pés

E tomar um coletivo um dia ao menos
No Capão, Vila Matilde ou Tatuapé, *
E pegar trens sem a poesia dos acenos...

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17/03/2017

Notas
*Colido ou escapo - trocadilho da palavra "caleidoscópio" inventado pelos irmãos Campos em sua criativa transliteração experimental do Finnegan's Wake de James Joyce.

* No Capão, Vila Matilde ou Tatuapé - Alma, na sua temporada paulistana que durou apenas quatro anos, morou nos Jardins, num ateliê na rua Oscar Freire, onde a conheci. Entretanto acho possível que tenha se aventurado uma única vez em ônibus ou trens lotados para ir a outros bairros ou à periferia para conhecer realmente a cidade.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Vida, Medusa (de Alma Welt)

A beleza tão terrível desta vida
É o que me dá vontade de chorar,
Embora a possa, a custo, encarar
Se não como à Medusa, parecida...

Tanto horror, hecatombes, holocaustos,
Que nos tiram até o gosto de viver,
Deixando-nos vazios e exaustos
De tentar assimilar ou compreender.

Então, como pode ser tão bela,
Se tem uma outra face tão horrenda
Que diariamente a nós revela?

Não é porque a olhamos nos seus olhos
Que, petrificados, não se a entenda:
Fomos feitos de lama, com escolhos...

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16/03/2017

O eterno retorno (de Alma Welt)

"Alma, podes retornar"- o Anjo disse -
"Não chegaste a terminar os teus sonetos."
E fez ligeiro esgar, como se risse,
E me jogou a chave dos tercetos.

"Ei, me espera, Anjo, isso não basta!"
Eu fui gritando, de novo revoltada...
"Estive confinada em minha casta,
Não aprendi desta vida quase nada!"

O arcanjo riu, voltando abriu as asas
E retorquiu: "Quê mais queres, queridinha,
Tens um dom, e até por isso não te casas..."

E eu: "Não quero me casar, eu quero o mundo
E saber como seria ir mais fundo
Sem precisar escrever uma só linha..."

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16/03/2017

terça-feira, 14 de março de 2017

O jogo das cadeiras (de Alma Welt)

A vida é um jogo, bem sabemos,
Cadeira para todos nunca houve.
Não importa o quanto bem joguemos,
O súbito silêncio é o que se ouve.

Um tem que cair fora, é uma pena
Mas a cadeira que sobrou será tirada
Para o mesmo contumaz jogo de cena:
Alguém caindo de costas na calçada.

Reparem na música, é um engôdo.
Ela cessará, assim, de súbito,
E alguém sobrará, e em decúbito.

Mas, pobre de ti se não jogares:
Serás invisível entre teus pares,
Um penetra, de pé, o tempo todo...

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14/03/2017

segunda-feira, 13 de março de 2017

Ser poeta (de Alma Welt)

Ser poeta é ter tanto o que fazer
Que não dará mais pra fazer nada.
É ficar com a alma exausta, esvaziada
Para enchê-la de novo ao bel prazer...

É também especular com os espelhos
E sabendo que não confiáveis são
Então neles dirigir na contramão
E tomar os verdes por vermelhos...

É procurar a infância no silêncio
Das nossas entrelinhas misteriosas
Como sobre o abismo a ponte pênsil

Ser poeta é ser formiga atarefada
E pra poder cantar sem ser calada
Travestir-se de cigarra em meio às rosas...

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13/03/2017

sábado, 11 de março de 2017

Ainda a Infância (de Alma Welt)

Contei muito do meu tempo de criança
E do quanto era feliz e bem sabia...
Não que eu o rimasse com Esperança
Porque o Futuro mesmo nem havia...

A vida era um Presente em duplo senso,
E eu o desfrutava como em festa
Com inocência e um prazer imenso
Que até hoje ele em mim ainda resta.

É claro que outros tempos me vieram
E no mínimo cruéis, perturbadores,
E deixaram suas marcas, suas dores...

Mas vejo que a reserva que disponho
De tudo o que os meus minutos eram,
Vem quando me transporto àquele sonho...

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11/03/2017

sexta-feira, 10 de março de 2017

Inspiração (de Alma Welt)

"Uma inspiração é necessária
Pra cada dia e noite em nossa vida,
Sem ela, tu não passas de gregária
Peçinha no rebanho, indefinida..."

"Enche o peito e solta devagar,
Sente a vida entrando nesse alento;
As formas e as idéias vêm no ar,
Não somos senão filhos do vento..."

Assim dizia um guru que nunca tive
Mas que bem pude imaginá-lo
E que, por tempos, simbólico, mantive.

Mas, de Deus, que mediações pouco tolera
No que tange à Arte e ao trabalho,
Ouvi: "Labuta, Eu chego, só espera..."

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10/03/2017

quinta-feira, 9 de março de 2017

Da vida... (de Alma Welt)

A verdade é que não se conformavam
Os antigos com a Morte, veja os túmulos!
Toda uma tralha consigo carregavam,
Uma vida inteira em seus acúmulos...

"Minha filha, desta vida tu não levas
Senão a saudade que deixares..."
Assim dizia minha avó catando ervas,
As daninhas e as finas pros jantares...

E eu que aprendi mais com minha avó
Do que com a biblioteca de meu pai,
Bem tentei preparar-me para o pó

Desapegando-me de tudo, ai de mim,
Por saber que do que entra nada sai,
E não carregas nem o cheiro do jasmim.

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09/03/2017

As perguntas (de Alma Welt)

Tenho medo da Morte e seu escuro
Como se ainda fosse bem pequena
E soubesse daquela sombra no muro
Esperando só para entrar em cena.

Os adultos não falavam, era tabu.
Por quê não respondiam minhas perguntas?
De meu avô também o rabo de tatu,
Dois enigmas e duas questões juntas...

Tudo aquilo que evitamos responder
A uma criança, boa coisa não será,
E eu prometi jamais algo esconder.

Entretanto descobri que não sabemos,
Então vivemos por isso ao Deus dará
Na mesma ignorância em que nascemos...

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09/03/2017

quarta-feira, 8 de março de 2017

Como pipas (de Alma Welt)

Para compreender a vida lanço versos
E como quem empina ao vento pipas
Os contemplo a produzir seus universos
Com apenas um papel e duas ripas.

Se os versos são a síntese do mundo
Quem os pode julgar em consciência
Se o seu voo ora sobe ou vai ao fundo
Com a mesma clara competência?

Com meus aéreos versos permaneço
A mirar a tela onde os levanto
Com a mesma alegria e mesmo espanto

De um jogo de crianças contra o azul
E com a mesma inocência do começo
Quando pipas empinava ao vento sul...

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08/03/2017

terça-feira, 7 de março de 2017

A Verdade (de Alma Welt)

Grandes sonhos e ilusões não tenho mais,
Mas conservo o mesmo gosto pelo Belo
E também os ideais de amor e paz,
Hoje apenas som ao fundo, como um celo...

O mundo não é senão saco de gatos,
Ou pior, ninho de cobras, como dizem
Aqueles que acreditam só nos fatos
Que com sigo, estes mesmos não condizem...

Descobrir o sentido, até me esforço...
Saberemos nós o que é a Verdade?
Até Jesus se calou ante a pergunta...

Pois a Razão foi feita pro remorso
Mas não para explicar o que nos junta,
Que é, no erro, nossa vã cumplicidade...

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07/03/2017

domingo, 5 de março de 2017

O Misantropo (de Alma Welt)

Mostrar aquilo mesmo que nós somos,
Quantas vezes resisto a essa bravata
Que o mundo não perdoa e põe em ata
Para cobrar mais tarde em cinco tomos...

Não diga ao mundo o que tu pensas, por favor,
Se a alguém tua opinião for ofensiva
Ou se ousares maldizer teu Criador,
Que a poucos interessa a carne viva.

Alceste, o Misantropo da comédia
De Moliére, acabou só, em uma ilha,
Talvez reescrevendo a Enciclopédia.

Não há, pois, como viver em sociedade
Se dizes o que pensas sem maldade,
Quanto mais se teu dente cerra e rilha.

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05/03/2017

sábado, 4 de março de 2017

O Congresso escuro (de Alma Welt)

"Ó homem! D'um abismo vive à beira,
Ignorando dos mortos o clamor..."
Assim dizia, sentado numa esteira,
O espectro de um velho professor.

Dizia uma caveira: "Riam agora,
Pois será meu todo e qualquer riso,
Pondo à mostra até dente do siso,
E isso lhes garanto, não demora."

Lá do fundo, toc, toc, um anjo branco
Então entrou neste congresso escuro:
"Bons senhores, me desculpem meu tamanco"

"Mas não pude deixar de interferir,
Deus me mandou dizer que existe o puro,
Que o reconhece pelo seu jeito de rir..."

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04/03/2017

sexta-feira, 3 de março de 2017

À Deriva (V) (de Alma Welt)

Ai de nós, que mal sabemos onde estamos
Por só acalentar velhas certezas;
O capitão perdeu seus portulanos
E estamos ao sabor das correntezas...

Capitão, meu capitão, o barco afunda
Desde que deixamos nosso cais...
Nossos porões a água já inunda
E não ousamos nem olhar pra trás!

Um bote salva-vidas e à deriva
É o que havia de restar, eu bem sabia,
Logo mal agradecida de estar viva...

Nau frágil não é só o que apavora
Quando a navegante o ser se arvora,
Mas toda a amplidão que se anuncia...

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03/03/2017

quinta-feira, 2 de março de 2017

A caravana (de Alma Welt)

Como não voltar à minha infância
Se lá já estava todo o meu querer,
Não aquele que redunda em jactância,
Mas da mente ansiando por saber?

Tudo era por fazer e descobrir
Mas também como se já houvesse sido
E estivesse esperando ser colhido,
Como a alma conspirando pra cair,

Repetir da humanidade cada passo...
E a jornada não seria assim tão clara
Como rota nas areias do Sahara,

Mas com cães latindo, estardalhaço
Seguido de um silêncio sem mordaça
Com que toda caravana altiva passa...

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01/03/2017