quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A dubiedade da vida (de Alma Welt)

A vida é corriqueira- disse alguém.
Não! Não" É aventura! - outro afirmou.
E eu, no meio, tinha opinião também,
Que ficava entre os dois, com um "e/ou".

Tudo na vida é uma e outra coisa,
E para evitar um certo acúmulo
Escrevemos nos dois lados da lousa,
Que esta servirá ao mesmo túmulo.

"Era um bom homem", diz um lado.
"Aqui jaz um pecador empedernido",
Estava escrito também, mas apagado.

E num mundo regido pelo dúbio
Agora temos um defunto reunido
Consigo mesmo num mais feliz conúbio...
.
31/12/2020

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A bela Morte (de Alma Welt)

Se contra o teu Destino nada podes,
Faça-te ao menos desejável como poucos.
Diante do inevitável te acomodes,
Que os outros se comportem como loucos...

Morrer como os antigos cavaleiros
Declarando sua lealdade ao rei,
Ou talvez à sua dama dos salgueiros...
Como eram belas essas mortes que sonhei!

Morrer assim, em honra e em beleza,
Como queria o homem de armadura
Nesses tempos heroicos da  nobreza...

Que o poeta em ti também o queira,
Porque como Percival tens a alma pura
E o Graal procuraste a vida inteira...
.
30/12/2020

Resposta ao Mensageiro (de Alma Welt)

Rumo ao silêncio, devagar, solene,
A caminhada é uma marcha de agonias.
Já vai longe a grande fé em utopias,
Sob o peso do Nada, o mundo geme... 

"Em vão acalentaste um paraíso,
Nos teus versos, canções, polifonias,
Restaurando-o, ingênua, nos teus dias
Como tela no instante do teu riso..."

O que resumes, Mensageiro, não sou eu...
Não me diz respeito... quero o Eterno!
A minha prole verdadeira é um Museu.

Reconstruí a vida em Arte, passo a passo,
Não sou ursa de mim, jamais hiberno,
Uma vida, pro artista, é tempo escasso...
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30/12/2020

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O Grande Jogo (de Alma Welt)

Entre lutar na vida e observar
Eu fiquei sempre no alto da colina,
A cavalo em mim, assim, de cima,
Generalíssima de mim por comandar...

Mas não foi preciso estardalhaço,
A batalha final por mim perdida
Só se passou no silencioso espaço
Onde a alma vive e luta a sua vida.

No cenário de guerra, o campo aberto,
Tabuleiro de xadrez transfigurado,
As peças traçam seu destino certo...

Ainda que meus lances sempre eu cante,
Nosso jogo se faz de trás p
ra diante,
Porquanto o cheque-mate já foi dado...
.
27/12/2020

O Enigma (de Alma Welt)

Persisto em decifrar a minha vida,
Essa esfinge pessoal que em mim vislumbro
E que ameaça fazer de mim comida:
Alquimia de virar o ouro em chumbo...

O enigma que rege o meu destino,
Na verdade não é nada pessoal,
Pertence a todos o dobrar final do sino *
(continente ou uma ilha colossal?) *

Todavia posso só falar por mim
(o mistério do todo em cada um),
Eu que sempre achei mais verde o meu jardim..

Quê imensa solidão clica o Destino,
Enquadrando com a sua lente zum
O que em nós ainda é só o menino!...
.
28/12/2020

Nota
*Pertence a todos o dobrar final do sino *
(continente ou uma ilha colossal?) -
Nestes dois versos Alma faz alusão ao famoso poema de John Donne, poeta inglês elisabetano (século XVI) celebrado pelo verso "Nenhum homem é uma ilha" ( todos fazemos parte do Continente) e que termina com os célebres versos finais: "Por isso não pergunte por quem os signos dobram/ eles dobram por ti.

sábado, 26 de dezembro de 2020

O rastro luminoso (de Alma Welt)

O soneto me acompanha a vida inteira
Como sombra luminosa (se é possível),
Ou de uma barca a clara esteira,
Rastro da lua no plancto visível...

Sim, deixo a trilha de onde passo
Liberada para aqueles que rastreiam
Batedores, que atentos, me campeiam
Os vestígios luminosos do que caço...

Mas cá estou a falar de sutilezas,
Filigranas da psique ou só firulas
Inúteis ao meu palco de incertezas...

Porque caço ou pesco coisas que não sei,
E quando as tenho nas mãos, às vezes, fulas
Voltam às águas de onde as mal tirei...
.
26/12/2020

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Natal Gaúcho (de Alma Welt)

Tenho saudades do Natal da minha infância
No casarão paterno, na estância,
Com a chaleira assoviando no fogão
E a família reunida em chimarrão.

Lá fora os peões churrasqueando
E trazendo lascas gordas e pingando,
O tilintar de esporas no assoalho,
Que jamais afiveladas pro trabalho... *

Ataviados os gaúchos, de alto a baixo,
O chapéu de aba dobrada e barbicacho,
Punhal de prata na faixa das cinturas.

Sua bombacha de Natal, bordada,
E de bolas, boleadeiras muito duras,
Graças a mim, só pendentes, pra mais nada...*
24/12/2020

Nota
* * Alma Welt, protetora dos animais da estância, ainda guria "exigiu" que seu pai proibisse o tradicional uso gaúcho de esporas e boleadeiras...

Os Signos (de Alma Welt)

Interpretar a vida é bem possível,
Metáfora que ela é, mesma, de si.
Seu signos até são reconhecíveis
Como o da velha Morte... e esta ri.

Mas os símbolos da Vida, mais dispersos,
Raramente são risonhos ou amenos.
A criança que sorri desperta versos
Com menos frequência, muito menos... 

Mas os signos de luta e de potência,
Sobretudo o da antiga Rebelião,
Quando não os de cólera e demência,

Estes assombram mesmo a alma pura
Quais fantasmas que habitam o coração
E não o deixam descansar na noite escura...
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24/12/2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Teoria da Conspiração (de Alma Welt)

Que surpresa será sempre outro soneto!
Piso na lua antes de meu sol se por,
Aventura, passo grande que cometo,
Se pequeno para a humanidade for...

Astronauta do papel ou do teclado,
Me aventuro no cosmos da poesia
Com meu velho escafandro remendado
Tantas vezes à beira da anoxía.

Lançar um verso a esmo, que ousadia!
Não sabes nunca de antemão onde vai dar,
E vão de ti em preto e branco duvidar...

Se escreves porventura uma besteira
Darás margem pr'aquele que avalia
Que essa tua lua é bem rasteira...
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23/12/2020

As rosas da aventura (de Alma Welt)

A aventura diária continua
A nossa vida inteira até o fim.
Se a velhice não nos pegar na rua,
Aventureiros, pois, sejamos de jardim.

Como assim? Tu perguntas intrigado...
E respondo que a Frida, minha avó
Que fez de suas roseiras seu legado
Floriu o mundo antes de voltar ao pó.

"Mas isso é pouco!" Insistes, queres mais.
E eu afirmo que uma alma desabrida
Reviverá as aventuras nos quintais...

Minha avó liderava os nossos passos
Com hábeis mãos, se talvez olhos escassos,
Nestas rosas que espelham nossa vida...
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23/12/2020

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A Caçadora (de Alma Welt)

Caçadora de poesia, me embrenhei
Nas florestas da vida verdadeira,
Aquelas que só existem na moleira,
Como dizia alguém que já nem sei.

Não que fique à espreita com meu arco,
Mas captando tudo ao meu redor
Pois a poesia não é um grande marco,
Ou a praia de coqueiros no outdoor ...

No dia a dia e no instante comezinho
Encontrei-a até na porta do vizinho
Ao sair para jogar o lixo fora...

A criança que doou-me o seu sorriso
Sentadinha na soleira, aqui e agora
Me deu um verso ao menos, sem aviso...
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22/12/2020

Coragem e Prudência (de Alma Welt)

Um mundo de perigos me espreitava,
Assim dizia minha mãe sobre o meu berço,
Depois continuou contando o terço,
Pois com minha coragem não contava...

"Vai em frente!" Por meu pai era incitada
Quando afoita e inocente eu corria
Em direção aos potros e a manada
Que abúlica ou terna me acolhia. 

Entre o medo e a coragem fui criada,
Que pelo menos o mistério me legou
Entre o acolhimento e a cilada...

A prudência não é filha da fraqueza.
O covarde um jogo seu jamais ganhou
Com receio de deitar cartas na mesa...
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22/12/2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

Realidade e Verdade (de Alma Welt)

Se a Realidade é controversa
Contar ainda podemos co'a Verdade,
Esta nunca transige ou tergiversa
E abrange tudo em Unidade.

Mas se a Verdade é uma só, o quê fazer
Destes nossos infinitos desacordos,
Se sua visão podemos mesmo distorcer,
Como iremos distinguir pardais e tordos?

"O que é a Verdade?" - indaga o Poncio
Àquele justo em sua frente tão sereno,
Que de seu sangue nas mãos estava cônscio...

Mas o Homem que assim foi indagado
Manteve um silencio concentrado,
A Verdade era só dele e era seu Reino...
.
20/12/2020

sábado, 19 de dezembro de 2020

Nós e o Labirinto (de Alma Welt)

O que nos poupará de grandes dores?
A mente humana é posta a andar à tonta,
Mas assim que de si mesma se dá conta
Por um fio retornará dos corredores...

No centro está, claro, o Minotauro;
Já terás tido como ele uns tête-à-têtes.
Mas como isso é passível de restauro,
É melhor que atravessar o rio Letes.

A vida humana é saga mitológica...
Acaso pensas que vieste a passeio?
O labirinto é real, fruto da lógica,

Se a entrada é a saída, tem o meio.
Quem não quiser seu próprio touro tourear,
Irá com brancas velas falsas navegar...
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19/12/2020

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Como me livrei do "mal do mundo" (de Alma Welt)

Houve tempo em que achei o mundo horrível,
De não mais querer sequer nele viver.
Entretanto meu cenário era aprazível
E eu ainda tinha flores pra colher...

Então me apercebi contaminada
Pelo mesmo "mal do mundo" incipiente
Que moldou a Criatura revoltada
Contra o Criador e sua semente...

Então num auto-exorcismo até banal
(pois excluía o restante ritual),
"Vade retro!" exclamei, exagerada...

E acreditem, fiquei leve de repente:
Não mais tinha a companhia da Serpente,
Não queria um "mundo novo" pra mais nada...
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18/12/2020


Nota
Para quem não entendeu o subtexto deste soneto, eu explico: a poetisa Alma, com a expressão "mundo novo" está veladamente se referindo à falaciosa promessa do socialismo/comunismo, de um mundo ideal, que costuma contaminar os jovens idealistas, secretamente chamados de "idiotas úteis" pelos próprios comunistas (a "Serpente")...

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O odor deletério (de Alma Welt)

O penoso encontro com a Verdade
E que se dá em meio à fantasia,
Me lembro, tive eu em tenra idade
Ao velar o cadáver de uma tia.

Nossa triste condição se apresentou
Aos meus olhos muito abertos, de menina,
E mais, à outra brecha que encontrou
E que foi, infelizmente, minha narina...

O odor deletério (eu percebia)
Se insinuava no velório e na casa
E eu senti que do cadáver ele saía.

E eu quis perguntar para um adulto:
"Senhor, a alma cheira quando vasa?"
Mas por sorte percebi ser um insulto...
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17/12/2020

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A flor nos lábios (de Alma Welt)

O que estou a pensar? Não, não te direi.
Este soneto é tão só pra disfarçar.
Há coisas que dizer não poderei,
E escritas outras somente pra rimar...

Desde guria conservei o meu mistério
Até perante meus irmãos e os peões
Que diziam, garanto, com ar sério:
"Esta prenda abalará os corações..."

"Esta princesa nasceu para rainha.
Vê, gaudério, o fogo em seu cabelo!
Resta saber se será a tua e a minha."

E eu passava, disfarçando meu sorriso,
Num pudor inexistente, mas que viso,
Com uma flor nos lábios, como selo...
.
16/12/2020

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

"No popular" (de Alma Welt)

Repartir meu sonho e meus desejos
Nem que seja numa fila de sopão
Ou em leito de palha e percevejos.
Se me faltar não os sonhos, mas o pão...

O "Por quê eu? Por quê eu?" Jamais pergunto,
Já que nunca troquei lebre por gato,
E se trocar por mortadela meu presunto
Se o fizer não cuspirei depois no prato. 

Se nasci e fui posta em manjedoura
E se esta a minha pele já não doura,
Fiquei branca numa torre de marfim...

Princesa não de estirpe e sim de porte
(não que na verdade isso importe),
Mas porque desde guria eu sei de mim...
.
15/12/2020

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O Duo (de Alma Welt)

Já não sei o que pensar, se me perguntas.
Está tudo tão incerto... mais confuso....
Se mentiras e verdades andam juntas,
Há muito já entrei em parafuso...

Chegou o Tempo da "final tribulação"
E já não há tempo hábil pra mais nada,
É o que dizem os profetas de plantão,
E apenas somos parte da manada... 

Não, eu me recuso! Sou Alma, sei quem sou!
Há muito solitária e deambulo
Jamais despercebida aonde eu vou...

Sou um triunfo vivo do "Individuo",
E de máscara qualquer jamais circulo,
Só co'a Verdade a Beleza faz um duo...
.
14/12/2020

domingo, 13 de dezembro de 2020

Ainda a Teia (de Alma Welt)

Lutar contra a tristeza, única luta
Que engloba as outras na incerteza.
Ela, a insidiosa, a vã tristeza,
A nos envenenar como a cicuta.

Bem cedo a conheci, estranha luta,
Coroando momentos de alegria
Como se premio fosse na disputa
Entre a depressão e a euforia...

"Ora, Alma, és "bipolar", já o confessas...
Então não falas de algo universal,
Cala-te pois, que nos estás fazendo mal."

Mas se falo só de mim, de minha aldeia,
E desfaço meus pontos, não me impeças
Pois refaço o mundo inteiro em minha teia...
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11/12/2020 
Nota
Como podem notar, a "Teia de Penélope" é recorrente na obra da poetisa gaúcha, como sua metáfora predileta...


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A "Comédia" (de Alma Welt)

(para uma amiga em depressão)

Penetrar da alma a "noite escura"...
A todos chega um dia este momento.
Não poderás fugir ao teu tormento
Mas enfrentá-lo a seco é tua cura.

Não te enganes, não existe "cervejinha"
Que o "inho" e a "inha", retrocesso,
São muletas, o atalho que encaminha
Só para a inicial porta de acesso...

Para saíres do Inferno que te coube,
Você tem que olhar pra frente e caminhar
Para que a ti mesma a luz não roube...

"Então vamos!", disse Dante, para o guia
"Já passamos" -disse este, e por magia
Já estavam sob estrelas, e ao luar...
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11/12/2020

A procura (de Alma Welt)

Procurar? Pra mim só se for "o não sei quê".
A poesia nasce dessa pré-loucura
Que começa, desenvolve e não tem cura
E contamina também quem muito a lê...

"Ora, Alma, bem precisas de leitores,
Não os afaste com tiradas alarmantes.
Querias ser solitária como antes,
Quando não repartias riso e dores?"

Compartilho agora mais que dúvida,
A volúpia da procura em estado puro
Faz a ponte com o que restou do muro...

E se não posso esclarecer o obscuro,
Posso ao menos entreter alguma vida,
Como eu, ávida assim, assim perdida...
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11/12/2020

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A Salamandra (de Alma Welt)

A solidão para todos nós aumenta,
E nada pode revertê-la, não adianta...
No entanto ela os sonhos nos fomenta
E começámos a sonhar depois da janta.

Serões... Báh! Não mais existem os serões
Com o pai e a família reunida
A lembrar jogadas de peões
No tabuleiro imaginário que é a vida...

Como Cellini a salamandra eu vi *
Pequeno lagarto sobre a chama
Na lareira, e depois na minha cama...

Mas foi a do Jarau, que me encantou,
E os tesouros do tal Cerro revivi,
Que esta noite minha alma os visitou...

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10/12/2020

Notas
*Como Cellini a salamandra eu vi-
Na sua célebre autobiografia, o escultor ourives e escritor florentino renascentista, Benvenuto Cellini (Florença, 3 de novembro de 1500 – Florença, 13 de fevereiro de 1571), começa contando como num serão silencioso, após a ceia, seu pai, de repente aponta a lareira acesa e exclama: "Olhe! Olhe, meu filho!" Cellini, menino, olhou e viu nas na lareira um pequeno lagarto de aspecto vítreo, brincando nas chamas. Seu pai então disse: "Olhe bem, meu filho, essa é a Salamandra! A poucos homens é dado ver isto..."

*Mas foi a do Jarau, que me encantou,
E os tesouros do tal Cerro revivi -
Alma se refere à famosa lenda A Salamanca (salamandra) do Jarau . O Cerro do Jarau fica no extremo sul do pampa gaúcho riograndense. Esta lenda popular gaúcha ficou célebre na versão escrita por Simões Lopes Neto (1865 – 1916).

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Pequena fábula de areias (de Alma Welt)


Ilustração de Gustave Doré 
para o episódio da areia movediça, 
das Aventuras do Barão de Munchausen.

Pequena fábula de areias (de Alma Welt)

Era uma vez... me vi desesperada,
Sem esperança, mesmo, ao pé da letra,
Desolada, lamentosa, derrotada,
Sem mais poder reagir a qualquer treta...

Então me lembrei da aventura
De um certo barão da velha Prússia
Que alçou-se de uma sua desventura
Com seu cavalo e tudo, por astúcia...

Sim, ele ergueu-se por seu punho
Puxando-se pelo seu próprio chinó,
Que dos velhos guerreiros tinha o cunho.

Quanto a mim, para evitar a paranoia
Comecei a desfazer meu próprio nó,
Até eu mesma voltar de minha Tróia...
.
09/12/2020

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Ao Senhor dos Realejos (de Alma Welt)

Que o meu medo do mundo não me tolha
De bondade um impulso eventual,
A Bondade que atua contra o Mal
E é de sua botelha única rolha...

Que a caixinha de Pandora não me caiba
Pois sem ela já saí do Reino Escuro
E não quero pra ninguém mesmo (qu' eu saiba)
Os tormentos que provei atrás do Muro. 

Que da alma ou coração as duras penas
Não corroam minha face de candura
Nem branqueiem cedo as minhas melenas.

Eis, Senhor, a minha prece de desejos
Que vos dirijo assim, na caradura
Mas tão grata, meu Senhor dos Realejos...
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07/12/2020
Nota
*Senhor dos Realejos -
Quero esclarecer ao leitor que a poetisa não está sendo blasfema, ao invocar Deus com esse original epiteto. Com essa "licença poética" Alma está ironizando os desejos como os com os quais ingenuamente consultamos os realejos de periquito. Alma, simbolista como sempre, critica veladamente e com humor, as "preces de desejo", que estão no fundo de todas as orações, ao contrário das de pura louvação e agradecimento preconizadas pela verdadeira Fé...

domingo, 6 de dezembro de 2020

O coração faminto (de Alma Welt)

Ó meus amores, em mim adormecidos...
Mais uma vez a vós dirijo a minha voz,
Que estais, eu sei, em mim entorpecidos
No berço mago de uma tal casca de noz.

Os meus amores em mim permaneceram
Distantes de suas vidas verdadeiras
Que há muito tempo livres das coleiras
Dos meus sonhos e anseios, mais prosperam.

Pouco sei de vossas vidas, quase nada,
Mas compraz-me essa dupla natureza
Que vos atribuí, como uma fada...

E não podeis cobrar-me a usurpação,
O que me destes, agora é minha presa:
Só devolvo ao meu faminto coração...
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06/12/2020

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A Faroleira do Fim do Mundo (de Alma Welt)

Só sei da minha vida, e mal e mal...
Não me perguntem sobre astros e futuro.
Direi que a Deus pertence e coisa e tal,
Não esperem da repórter nenhum furo.

Sou aquela que observa a coisa toda
E a cada dia menos sei, nem adivinho,
Como se penetra fosse numa boda
Contando com mudança d'água em vinho...

Mas se queres narrativa iluminada
Pela forma que clareia o conteúdo,
Nesse caso sou farol: não cobro nada.

Faroleira do farol do fim do mundo,
Ilumino tudo aquilo que não mudo,
E fico a ver navios que vão ao fundo...
.
04/12/2020


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O Enigma (de Alma Welt)

Meu tempo não é este, e com orgulho
Há alguns séculos me vejo claramente
Destinada a outro tempo, pra semente,
Este tempo em que perplexa mergulho. 

Mas comigo trago o tempo das donzelas,
Também dos cavaleiros que as amavam,
Que a elas suas lanças destinavam
Adornando-as de fitas amarelas...

"Ora, Alma"- direis vós- "não exageres!
De donzela só tens o olhar de corça,
Sei bem que és guerreira quando queres."

Como o favo na caveira do leão
(belo enigma proposto por Sansão)
Então conto que a doçura é minha força...
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03/12/2020

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A Poesia (de Alma Welt)

"Se me falta o poema, ai de mim,
Como posso enfrentar o dia a dia?
Tudo é... digamos, tão chimfrim
Se não troco por um pouco de poesia..."

Assim dizia minha amiga, uma Maria
Se esforçando para ser interessante,
Quando a rebati no mesmo instante:
"A poesia não é mais que o dia a dia."

"Não precisamos descartá-lo", disse eu.
"Coisas simples o homem sempre amou
Já o dizia, na Odisseia, o Odisseu..."

Sob a capa da grandeza de seu feito
Está o mendigo que pra casa retornou
Menos por tronos que pelo oculto leito...
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02/12/2020

Nota
*Menos por tronos que pelo oculto leito - Na Odisseia de Homero, Odisseu após vinte anos de aventuras retorna ao seu palácio camuflado de mendigo com um manto com capuz para no momento certo massacrar os pretendentes de Penélope, sua esposa, e recuperar o seu trono e o dela.
Entretanto ele ainda deveria passar pela prova de descrever o leito oculto do casal, que era um segredo íntimo deles...