terça-feira, 28 de maio de 2013

No quarto (de Alma Welt)

No Quarto- Desenho de Guilherme de Faria, no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
 
 
No quarto (de Alma Welt) 

No meu quarto sou senhora, sou rainha
Reinando sobre coisas camufladas
Que pouco têm a haver com a minha vinha
E tudo com outras almas tão amadas...

Um tecido, uma cadeira, fita ou laço
Uma poltrona ou um retalho de cetim,
Podem dos mortos conter o melhor traço
Tanto quanto este soneto tem de mim.

E eu vago deslizando minha mão
Pela pele hipersensível disso tudo
Tateando o que de mim devolverão

Pois neste território insuspeitado
De colóquio sutil sereno e mudo
Meu próprio coração está plasmado.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A Última Ceia (de Alma Welt)


                                                        A Última Ceia - de Stanley Spencer 

A Última Ceia (de Alma Welt)

Também quero minha derradeira ceia
Entre amigos fiéis e não aflitos;
No centro da mesa uma candeia,
Sem sobressaltos, sem discussões e gritos.

Em paz, suavemente, em comunhão,
Com gargalhadas sóbrias, no limite,
Uma piada ou outra se permite,
Mas que não haja tumulto e confusão.

Sobriedade, se possível, se haja vinho.
Pois farei o balanço do caminho
Evitando o drama e o patético...

Mas eu, ao imaginar que tal congresso
Triste seria até para o mais cético,
Me emociono, desisto, e me despeço...
 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Equilibrista (de Alma Welt)


 
A Equilibrista (de Alma Welt)

Tenho tido estranho sonho recorrente
Mal pouso a cabeça sobre as fronhas
Pois do meu mundo é muito diferente
Andar na corda bamba entre montanhas.

Então de que assim vivo me dou conta
Mesmo no simples vagar pela coxilha
Que pela planura me põe tonta
Se antes não escolho alguma trilha...

Os pólos são Nascimento e Morte
E na trilha um monocórdio realejo
Mantém meu passo firme para o norte.

Então vejo que a vida é que é assim:
Vagando entre essas torres que me vejo,
E que são certezas únicas de mim...
 

domingo, 19 de maio de 2013

Bem gostaria (de Alma Welt)


 
 
 
 
 
 
 
  


O Pranto de Alma Welt - óleo s/ tela de Guilherme de Faria. 2006, 80x100cm 
Bem gostaria (de Alma Welt)
 
Bem gostaria eu de amar cantando
Como esses cantos de amor nos fazem crer,
Tanta candura romântica ostentando
Sem questionar jamais o Nada e o Ser...

Entregar-me assim ao outro por paixão
Como se fora uma donzela de outra era,
E chorar se fosse o caso e ir ao chão
Por ter acreditado em tal quimera...

Que digo? Já o faço em verso e prosa!
Não deixem, meus leitores, que lhes minta,
Nunca fui uma modelo que a si posa,

Mas talvez seja uma alma desbordada
Cuja dor demasiada se requinta
Em ser bem mais o amor do que a amada...
 

Reflexões da Alma (de Alma Welt)


                                                          foto de Alla Alborova

Reflexões da Alma (de Alma Welt)

Desamparados nós, por certo, todos somos
Diante da nossa sina sobre a Terra
Ao sabor do acaso ou sorte que dispomos
Quem de nós, tolos, na vida nunca erra?

Somos peregrinos, não no espaço
Mas nesse tempo de nós mesmos,
Nessa dura jornada pelo escasso
Com os parcos recursos que nós temos...
 
Existem, sim, os abonados reis e lordes
Mas nem sequer poderás tê-los em conta
A não ser no teu sonhar antes que acordes.

E se és rico de idéias e de sonhos
Nesse caso a tua alma já está pronta,
Podes distribuí-la aos mais tristonhos...
 

Odisséia (III) (de Alma Welt)

O remador - James Ensor
 
 
Odisséia (III) (de Alma Welt)

A vida é uma saga misteriosa
Com certos lances gratuitos incluídos
Muitas vezes tão dramáticos em prosa,
Em versos talvez mais divertidos...

Para estar à altura de nós mesmos
Como os seres poéticos que somos
É melhor arriar vela e ir a remos
Nos barcos precários que dispomos.

Mas é melhor remar sempre de costas
Para olhar só pra de onde nós viemos
E deixar sempre aos outros as apostas.

E se naufragarmos com as sereias
(que ouvidos a elas sempre demos),
Que o canto delas corra em nossas veias...

sábado, 18 de maio de 2013

Alma náufraga (de Alma Welt)

 

 Alma náufraga (de Alma Welt)

Quem sou eu? Sou marinheira de derrotas
À deriva em neblina de amplidão,
Tendo comido a sola das minhas botas

E os cadarços como fino macarrão.


Quem sou? Sou mesma a flor dos naufragados
Que escolheram a praia de si mesmos,
Onde perplexa fui dar com os costados,

Onde os porcos cozinham seus torresmos.


Princesa me erigi dos derrotados,
Aqueles que se voltam para os versos
Qual fosse a pátria-mãe dos exilados.


E se deliro um pouco ainda agora,
É que viva conheci dois universos:

Dentro e fora da caixa de Pandora...


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Notas

* Tendo comido a sola das minhas botas / e os cadarços como fino macarrão - evocação da famosa cena de A Corrida do Ouro, de Charles Chaplin, em que Carlitos faminto numa cabana no inverno do Alaska, cozinha e devora com requintes hilariantes a sua botina... 


 * onde os porcos cozinham seus torresmos - Este aparentemente estranho verso, na verdade alude à cenas do  magnífico livro de Michel Tournier, "Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico" (prêmio Goncourt) em que o autor francês reconta a saga de Robinson Crusoe como um retrospecto da jornada histórica da Humanidade através de sua lenta evolução social e espiritual. Ao chegar náufrago numa ilha tropical paradisíaca, não precisava na verdade de trabalhar para sobreviver, e ficava de molho junto com os porcos numa agradável água quente vulcânica por horas e horas por dia, até que afinal fez um imenso esforço para reagir ao marasmo mortal e construiu um arado para começar a jornada civilizatória de si mesmo, encontrar o nativo Sexta-feira, salvá-lo de outros nativos e em seguida escravisá-lo por anos, até percebê-lo como seu irmão em humanidade, afinal, e pedir o seu perdão e abraçá-lo...


quinta-feira, 16 de maio de 2013

O espelho e a sombra (de Alma Welt)



                                       Alma no Espelho - lito de Guilherme de Faria, anos 70

O espelho e a sombra (de Alma Welt)

Muitas vezes consulto a minha sombra
Que é mais confiável que o espelho
Que devolve uma imagem que me assombra
Pela brancura e o cabelo tão vermelho,

Mas também pelo cinismo e ironia
Com que responde à nota de ansiedade
Que é o cerne vital da minha poesia
Preocupada com uma única Verdade...

Mas a Verdade? A quê procuro? Vou dizer:
Saber da vida a oculta idéia e intenção
Com esse imenso mistério de morrer...

Quanto à sombra, esta imagem mais fiel,
Me acompanha como faz um nobre cão
Sem me mentir nem bajular, nem ir ao léu...
 

terça-feira, 14 de maio de 2013

O Livro Preto (de Alma Welt)

 
 
O Livro Preto (de Alma Welt)

Bem sei que os meus dias são contados,
E quem não os tem no Livro Preto?
Mas sabê-lo é o pior dos tristes fados,
Pois tal cômputo outrora era secreto.

Agora... como voam as minhas horas!
E não tenho o fecho pro arremate
Do meu último soneto de demoras
Enquanto aguardo o verso que me mate.

Então fico na varanda a olhar o sol
Que é como me consolo de morrer
Sonhando com meu último arrebol.

Debalde! Não me adianta o expediente,
Pois quanto mais intensamente sinto ser
Mais me dói abandonar a minha mente...

Também os lobos uivam (de Alma Welt)




                                                      Satimbancos - Picasso

Também os lobos uivam (de Alma Welt) 

Também os lobos uivam para a Lua
Como o fazemos nós desde os primórdios.
Nós, os angustiados de alma nua
Dedilhando teclas, cravos, clavicórdios,


Pintando telas, manipulando ceras,
Dando saltos no palco, saltimbancos
Nas praças das aldeias e nas feiras,
De pés quebrados, compondo versos mancos...

Agora tantos, só dois antes da malta,
Criados tarde no Jardim logo perdido
Pela mais discutível e ingênua falta

Somos homens, reunidos em quadrilhas
Ou solitários num mundo dividido
Em Inferno e País das Maravilhas...