sábado, 30 de setembro de 2017

Sinais na tempestade (de Alma Welt)

"Estão em ti teu pai, mãe, avô e avó,
E digo que a morte é uma ilusão,
Que nossa vida não se reduz ao pó,
Somos almas em breve transição..."

Assim dizia o padre em seu sermão
E o repetiu quando veio aqui em casa
Pensando em dar-me a extrema unção
Por alarme que desta estância vaza...

"Alma está morrendo!" (murmúrio dos peões).
"Não viram os sinais na tempestade?
Na casa escura já nem vemos lampiões!"

Então percebo como meus humores correm:
Se sofro os que me amam também sofrem.
E me alteio de mim contra a vontade...
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30/09/2017

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Quase, tudo (de Alma Welt)

Ouvi de mim quase sempre o coração
E esse "quase", quase foi minha desgraça.
O "quase" mesmo, não o orgão-diapasão
Que afina tudo o que por ele passa.

Deus me deu uma mente prodigiosa
Capaz de tudo traduzir em mil sonetos,
Numa linguagem próxima da prosa
Mas vinda de além-mar e não dos guetos.

A Portugal e a Camões devo o acento
E mesmo um pouco aos castelhanos
E a até seu invasor envolto em panos.

Mas se me falta às vezes um alento,
Dentro em mim um lampejo do Walhalla *
Não me permita, ó coração, cair na vala...

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27/09/2017
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Notas
*E a até seu invasor envolto em panos - Alma se refere aos árabes e seus albornozes e mantos, que pela conquista da península Ibérica influenciaram a língua portuguesa e espanhola.

"Dentro em mim um lampejo do Walhalla - Alma alude ao seu sangue alemão por parte de pai, ou ao seu inconsciente coletivo germânico, cujos arquétipos guerreiros permaneceriam no seu íntimo mais profundo.

Meu retrato nu (de Alma Welt)

                             Grande Nu - óleo s/ tela de Guilheme deFaria, 1991, 140x120cm

Meu retrato nu (de Alma Welt)

Quando bem jovem morei na Paulicéia
E no ateliê de um bom velho pintor
Me desnudei como se fora ateia
Ou mesmo após o pomo, sem pudor...

E então ele me disse: "Ao retratar-te
Precisarei te amar demais, sem restrições.
Retrato nu tem que ser obra de arte
Que a nós expulse, a ambos, dos salões."

E eu, claro, caí na sua lábia
E logo o amei de mais, pernas pra cima,
Descobrindo então que nasci sábia.

Mas voltei ao Sul sem meu retrato
Porque o pintor a sua pintura mima
Retocando-me sem fim, fora do trato...

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27/09/2017

Quase (de Alma Welt)

Ouvi de mim quase sempre o coração
E esse "quase", quase foi minha desgraça.
O "quase" mesmo, não o orgão-diapasão
Que afina tudo o que por ele passa.

Deus me deu uma mente prodigiosa
Capaz de tudo traduzir em mil sonetos,
Numa linguagem próxima da prosa
Mas vinda de além-mar e não dos guetos.

A Portugal e a Camões devo o acento
E mesmo um pouco aos castelhanos
E a até seu invasor envolto em panos.

Mas se me falta às vezes um alento,
Dentro em mim um lampejo do Walhalla *
Não me permita, ó coração, cair na vala...

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27/09/2017

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O que virá (de Alma Welt)

Quando me sento pra escrever, o que virá?
Essa incógnita é uma esfinge da minha mente,
E quase sempre o resultado é surpreendente:
De minha alma... o que agora sairá?

Sou eu mesma minha caixa de Pandora
Mas não de demônios e outros bichos,
Mas de entes e arquétipos de outrora,
Colocados todavia em novos nichos.

Consciente dos tesouros que carrego
Percorro este mundo que me aponta
Como o judeu errante que não nego,

Guardando ouro para uma Terra Santa
Mas da alma, que a riqueza já nem conta,
E como um rei trovador que apenas canta...
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26/09/2017

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Nota
*E como um rei trovador que apenas canta - Alma parece evocar D. Dinis I, O Poeta (Lisboa, 9 de outubro de 1261 – Santarém, 7 de janeiro de 1325), que foi Rei de Portugal e do Algarve de 1279 até sua morte. Era o filho mais velho do rei Afonso III e sua segunda esposa Beatriz de Castela.
D. Dinis I foi grande amante das artes e letras. Tendo sido um famoso trovador, cultivou as Cantigas de Amigo, de Amor e a sátira, contribuindo para o desenvolvimento da poesia trovadoresca na Península Ibérica. Pensa-se ter sido o primeiro monarca português verdadeiramente alfabetizado, tendo assinado sempre com o nome completo. Foi o responsável pela criação da primeira Universidade portuguesa, inicialmente instalada em Lisboa e depois para Coimbra.
(Fonte: Wikipédia)






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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Lembranças de minha avó (de Alma Welt)


                                                         Frida Welt, a avó da Alma - lito de Guilherme de Faria


Lembranças de minha avó (de Alma Welt)

"A vida é dura, não adianta reclamar.
Se queres o melhor pra ti e pros outros,
Monta tu e teu irmão aí nuns potros
E vão vós mesmos, galopando, lá buscar."

Assim dizia minha avó meio matuta,
No jardim ou pondo a mesa pro jantar.
E eu, calada, em permanente escuta,
Aguardava seu espantoso gargalhar.

Eu pensava que minha avó era uma bruxa,
Que assim diziam os peões e suas prendas
Que apontavam seu nariz e a boca murcha.

Então dizia uma besteira, simples chiste,
E sua risada que deixava o pelo em riste,
Vinha do fundo ancestral de antigas lendas...
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25/09/2017

Aos meus amores (de Alma Welt)

Amores meus, já por mim abandonados,
Me perdoem minha imensa solidão,
Pois poupei-lhes dos custos e dos fardos
De uma vida mental, de pouca ação...

Sou apenas a andarilha de mim mesma
E nem preciso sair do meu jardim
Porque todos os mundos vêm a mim,
E de noite sou eu mesma a abantesma,

Alguém que toda sociedade abandonou
Como o Frankenstein disse de si,
O monstro mesmo, não o gênio que o criou...

Mas se isso não logrei completamente,
É que o amor, uma ternura, algo que ri,
Continua a fluir da minha mente...

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25/09/2017

Há quem pense... (de Alma Welt)

Há quem pense que poesia é abstração,
Que ela requer viver em devaneio.
Mas garanto que é o contrário: é pura ação
Do real sujeito nosso sobre o meio...

E é pegar quase tudo no concreto
Como fazem as crianças e é tão belo,
Pois permite o ilimitado ao objeto
Como as vozes de um coral de violoncelo.

Como Gump, esperar o bus do filho, *
E a tarde toda aguardar o seu retorno
No banco, como trem não sai do trilho.

O poder do poeta é seu pimpolho
Que sabe que o cavalo oculta o corno
E que mesmo a noite escura tem um olho...

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25/09/2017
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Nota
* Como as vozes de um coral de violoncelo - Alusão ao conceito musicológico que se tornou popular, de que o violoncelo é o instrumento que mais se aproxima do timbre da voz humana. Se você diz isso a uma criança ela provavelmente imaginará um violoncelo com boca, cantando.

*Como Gump, esperar o bus do filho - cena final do belíssimo filme americano, "Forrester Gump, o Contador de Histórias", em que o personagem ( atuação magnífica de Tom Hanks) espera o ônibus escolar no banco, à beira da estrada em frente de sua casa, e quando ônibus chega ele diz ao menino: "Quando você voltar estarei aqui esperando por você". O menino sobe, o ônibus parte, e Gump permanece sentado, quase duro, na mesma posição, dando a entender que esperará mesmo, sem sair dali um minuto sequer, a volta de seu filho. Uma penugem aos pés dele é focalizada pela câmera, e sobe brincando, levada pelo vento, como a alma brinca no ar, como o pó brinca infinitamente na luz...

As três perguntas (de Alma Welt)

O que sou, de onde vim, pr'onde correr
São perguntas que não precisei fazer,
Ou nasceram no meu caso, respondidas,
E gastei minhas energias noutras lidas:

Ler os clássicos, quase todos, de enfiada,
Vivendo minhas Troias na cabeça,
Não como complexa empreitada,
Mas aventura e diversão à beça...

E instrumentalizada como poucos
Pude sentar e escrever o primo verso
Com a clareza universal dos loucos.

Eis que me voltam as perguntas sobre o Ser,
Cujo sentido permanece imerso
Nestes mares que navego sem saber...


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25/09/2017
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Transliteração para o idioma inglês:

The three questions (by Alma Welt)

What I am, where I came from, where to run
These are issues that are not need
Or in my case answered by fun,
So I spent my energies on read and read:

Read the classics, almost all, of threadbare,
Living my Trojans in the head,
Not as a complex undertaking and bare
But adventure and fun as I already said.

And instrumentalized, although a little sad
I was able to sit down and write the first verse
With an universal clarity of the mad.

Behold, they turn as questions about the Self,
Whose meaning remains immersed
In the seas I sail and ask about myself...
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25/09/2017

Que revertido literalmente, ficaria assim:

As três perguntas (por Alma Welt)

O que sou, de onde eu vim, onde correr
São questões que não são necessárias
Ou no meu caso respondidas por diversão,
Então eu gastei minhas energias em ler e ler

Leia os clássicos, quase todos, na raça,
Viver meus toianos na cabeça,
Não como uma empresa complexa e nua
Mas aventura e diversão como já disse.

E instrumentalizado, embora um pouco triste
Pude sentar e escrever o primeiro verso
Com uma clareza universal de louco.

Eis que eles se tornam perguntas sobre o Eu,
Cujo significado permanece imerso
Nos mares que eu navego e pergunto sobre mim...
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25/09;2017

sábado, 23 de setembro de 2017

Nós, Verônicas (de Alma Welt)

A vida é triste, a beleza a justifica
Como a dor no turbilhão da Rimini,*
Ou quando assisto um filme do De Sicca
Ou um do novo realismo de Fellini ...

Que queres dizer, Alma? A vida é bela?
Então só isso é que tens a nos dizer?
Ora pois, poetisa, não engambela!
Quê beleza é suficiente pra viver?

Então me lembro da pobre Gelsomina, *
E da Cabíria presa num armário, *
Encarnadas pela mesma atriz Masina.

Choro de dor e de beleza pela vida,
Pelas verônicas, suas faces no sudário,
Sua própria face no véu reproduzida... *

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23/09/2017
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Notas
*Como a dor no turbilhão da Rimini - . Alusão ao episódio do canto 5 da Divina Comédia de Dante Alighieri, em que este encontra as almas dos amantes clandestinos Paolo e Francesca da Rimini, em punição eterna suspensos abraçados num turbilhão sem fim. Uma curiosidade: Rimini é também a cidade natal de Federico Fellini.

*Gelsomina - a personagem que Giulietta Masina encarna no grande filme "La Strada", da fase do Neo-realismo italiano de Fellini, e que rendeu a ela, com justiça, o título de "Carlitos de saias".

"E da Cabíria presa num armário - Alma se refere à personagem da pobre prostituta Cabíria, do filme Noites de Cabíria, que é esquecida trancada no armário de um cliente quando este é surpreendido pela volta e reconciliação com a amante. No dia seguinte é solta, e muito triste, caminhando pela estrada é seguida de maneira alegre, saudada por belos jovens, rapazes e moças que montadas em Vespas (lambretas) que como anjos fazem evoluções em torno dela enquanto caminha, despertando-lhe um sorriso, que fecha o filme ...

* Pelas verônicas, suas faces no sudário/
Sua própria face no véu reproduzida - Alma alude ao episódio da Via Crucis, em que a jovem Verônica enxuga com um véu o rosto suado e ensanguentado de Cristo, ficando a imagem do rosto de Jesus estampada no véu. O nome Verônica deriva de "vero ícone" (verdadeira imagem ). Alma sugere que a verdadeira imagem surgida nos véus das "verônicas", as mulheres tristes e sofridas, é a da própria imagem delas mesmas...



Desencanto (de Alma Welt)

Esta vida, meus amigos, que loucura
Quando olho pra trás, meio de esguelha,
Vejo erros, sim, nunca impostura,
Que em nós todos havia uma centelha...

Tínhamos anjo, no dizer dos castelhanos,
E portanto algum talento não faltava
Aos nossos primeiros trinta anos,
Acreditando que o futuro assegurava...

Nossos feitos passaram, só eu lembro.
O sucesso é fogo de artifício,
Menos saúda que despede de Dezembro.

E alguns nos vimos às voltas com rotinas
Ou roendo os ossos de um ofício,
Só trocando a meia sola das botinas...

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23/09/2017

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Cartas de corso (de Alma Welt)

De tão alto o meu sonho mal revelo,
Que é a ambição de todo artista
E ao pudor e sensatez apelo,
E possa eu decolar do chão da pista....

Pois é como arrasar montanha inteira
Ou então ceifar sozinha um bom trigal;
Rolar um rochedo à cumeeira
Para lançá-lo no círculo inercial...

Tal é o meu sonho grandioso de poeta
Uma vez que transmutar o mundo em versos
É entre todas, a mais difícil meta.

Um pé na terra outro no mar é necessário
Ao poeta para unir mundos dispersos,
Com a sanha e a coragem de um corsário...

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22/09/2017



Nota
*Cartas de corso - tratava-se de um documento da coroa inglesa autorizando de maneira não oficial (como se faz por exemplo aos espiões) um pirata a fazer abordagens, saques e pilhagens a navios estrangeiros entregando uma porcentagem do roubo à coroa. Um dos mais conhecidos corsários foi Francis Drake, o favorito da rainha Elisabeth I da Inglaterra (note-se que se um corsário fosse derrotado e aprisionado por uma potencia estrangeira, o seu governo não o reconheceria, isto é, não se responsabilizaria por seus atos.

Entre terra e céu (de Alma Welt)

Aqui no plaino estou entre terra e céu,
Meu pampa é suspenso território
E olho as nuvens que me cobrem como véu,
E embaixo, o capim, meu escritório...

Aqui sobre a relva escrevo versos
Que me levam pelo mundo com o vento,
Estou na confluência de universos.
Não há muros, por aqui, pro pensamento.

E quando estou cansada de pensar,
Estendo a mão ao léu, colho uma flor
E esvazio o pensamento ao aspirar...

Então ao longe, ouço o grito da Matilde
Me chamando pra almoçar, seja o que for,
No terreno da matéria sou humilde...

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22/09/2017

Nosso Muro proibido * (de Alma Welt)

Em Novo Hamburgo, guria aventureira,
Nas brincadeiras não ficava para trás.
Meu irmãozinho, um pequeno satanás,
De um abismo vivíamos à beira,


Um dia me induziu pular um muro
Que havia no fundo do quintal
Para ir à casa de um vizinho obscuro
De estranha luz vermelha no portal...

Mas fomos recebidos pelos fundos
Por uma bela moça de corpete
Sorrindo para nós (dentes imundos).

"Ora, ora, aqui temos dois lindinhos!
Vieram ver seu papai, o de colete?
Primeiro a dar boas vindas de vizinhos..."

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22/09/2017

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Perséfone (de Alma Welt)

Mirante do Tempo, a minha varanda
Com sua velha cadeira de balanço
Sobre os campos com cheiro de lavanda
Em que observo das sombras o avanço,

Imagino-a vazia, muito em breve
Com todo este casarão espectral
Quando a terra me for pesada ou leve,
Num sepulcro a pedir sua mão de cal...

Pára com isso, Alma, estás lúgubre!
Esse gótico sinistro nos revolta...
Esse teu gosto estranho pelo fúnebre...

Vê os pastos florindo sob as reses:
Core pois de ti mesma, estás de volta
Aos braços de tua mãe por mais seis meses...*

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21/09/2017

Nota
*Core pois de ti mesma, estás de volta /
Aos braços de tua mãe por mais seis meses - Duplo sentido peculiar à Alma: Ao mesmo tempo que significa "envergonha-te de ti mesma", significa "Perséfone de ti mesma", remetendo ao "mito de Core" nome latino da Perséfone grega, jovem princesa filha de Deméter (a deusa das colheitas), que foi raptada no campo quando colhia flores, por Hades, deus dos Infernos, que a fez sua esposa. Desesperada, Demeter implora a intercessão de Zeus, que arbitra que Perséfone deve passar meio ano no mundo subterrâneo com seu marido, e meio ano na superfície dos campos com sua devotada mãe.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Pedra rolada (de Alma Welt)

Venho mostrando em versos meu percurso
Desde o inocente jardim de minha avó.
Não, por certo, em um linear discurso,
Como simples trajetória rumo ao pó...

Quanto voo, rodeio, circunlóquio
Fez esta mariposa em torno a luz!
Quantas tolas aventuras de Pinóquio
Antes de encontrar quem me supus.

Se não da alma, a construção do Ser
Se fez como escultura, por desgastes,
Ou como arado no campo, a revolver...

Senhor, eis-me então, já burilada
De minhas crespas facetas e contrastes,
De Vosso rio, afinal, pedra rolada...
.

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20/09/2017

Transliteração* livre para o inglês, com rimas:

Rolling Stone * (by Alma Welt)

I have been showing my poetic course
From my grandmother's garden without lust.
Not, of course, in a linear discourse,
As simple trajectory towards dust ...

How much flight, rodeo, and few ventures
made this rebel Soul like a moth.
How many silly Pinocchio adventures
Before I found who I thought I was.

The construction of the Being, if not the Soul,
Was made not like carved busts
Or as an arid camp with a plow ...

Lord, behold, I have been done
the polishing of my facets and contrasts,
From Your river, at last, rolled stone ...
.
20/09/2017

O que, de volta ao português, literalmente, daria:

Pedra rolada (por Alma Welt)

Tenho mostrado meu curso poético
Desde o jardim da minha avó sem luxúria.
Não, é claro, em um discurso linear,
Como simples trajetória em direção ao pó...

Quanto vôo, rodeio e poucos empreendimentos
fez com que essa alma rebelde fosse uma mariposa.
Quantas aventuras tolas de Pinóquio
Antes de encontrar quem pensei que era.

Se não da alma, a construção do Ser
Não foi feita como bustos esculpidos
Ou no árido campo com um arado

Senhor, eis que já está terminado
o polimento de minhas facetas e contrastes,
Do Vosso rio, afinal, pedra rolada...

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Notas
* Transliteração - Termo criado pelos poetas brasileiros Augusto e Haroldo de Campos para designar uma tradução livre que preserve rimas, e às vezes até métrica, tomando liberdades ao criar novas imagens ou metáforas, sem trair o sentido e substância do poema original.

*Rolling Stone - esta expressão inglesa deriva do provérbio também existente em português: "Pedras rolando não criam limo", que quer dizer que a dinâmica do Ser evita a deterioração viciosa.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Gruppo di famiglia in un interno (de Alma Welt)

Meu pai colecionava quadros belos
Que cobriam desta casa as paredes
Como aqueles mais ricos castelos,
Do tal tempo do "vós sois" e do "vós vedes".

Mas morto meu pai começa a sanha
E meu irmão jogador leva um quarto,
Que no jogo de poker perde e ganha
E diz que até co' a Morte fez um trato.

Minhas irmãs levaram outros pra vender
Num leilão qualquer em pleno inverno
Enquanto, eu desolada, quis morrer.

Mas um que a mim me coube, que escolhi:
"Gruppo di famiglia in un interno",
Recompõe em fantasia o que perdi...
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18/09/2017

Nota
*"Gruppo di famiglia in un interno"- Alma com este soneto parece querer homenagear o último filme de Luchino Visconti (que tem este sugestivo título), obra-prima inesquecível, que fecha com chave de ouro a carreira do grande cineasta italiano, e também a do maravilhoso ator americano Burt Lancaster...

O Concílio falhado (de Alma Welt)

Na juventude, já paga e sem estorno,
Conclamei dentro de mim os velhos deuses
Para um concílio com visas ao retorno
Mas sem levar em conta seus adeuses.

Não estavam os deuses mortos, mas doentes,
E pior: transfigurados em neuroses,
Suas manhas e manias só latentes,
Apenas não se ouviam suas vozes.

Electra e Édipo, mortais, chamei num canto
E disse: "Amigos, todos matam mãe e pai,
Mas já houve um casal que era santo...

C'o Nazareno vamos pois nos encontrar
E tentar um novo acordo... Ou ninguém vai?"
Mas os deuses nem quiseram despertar...

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18/09/2017

domingo, 17 de setembro de 2017

Bicho pequeno (de Alma Welt)

Eu guria, na borrasca de uma noite,
Me vi numa escuridão absoluta,
E compreendi de um raio o forte açoite
Que evidenciava a eterna luta.

Luz e trevas, sim, eu compreendi
Não com tais sutis palavras, claro,
Que estas pouco são como eu as vi,
As forças em combate nada raro...

Minha alma meio virgem (quem diria?)
Lembrou-se da primeira expulsão
Quando a espada do Anjo reluzia...

"Deus, poupai tanta energia, não mereço:
Sou um bicho pequeno, ando no chão,
Mas com nome conhecido e endereço..."

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17/09/2017

O cão de mim (de Alma Welt)

Juntei as mãos e de joelhos perguntei:
"Meu Senhor Deus, que fizeste o céu azul,
Também, de noite, o cruzeiro do meu Sul
E este pampa infinito que nem sei..."

"Dizei, Senhor, o que fiz pra merecer
Tantos dons, privilégios e presentes,
Quando vejo ao redor seres carentes
Que me fazem ter vergonha de assim ser?"

"Além de bela, poeta me fizestes
Com o dom incompreensível do soneto,
Num tempo de miséria e de pestes... "

Então, envergonhada de minha prosa,
Vi o céu azul mudar ficando preto,
E cão de mim, encolhi-me, temerosa...

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17/09/2017

sábado, 16 de setembro de 2017

O Corifeu (de Alma Welt)

Pra descrever a vida escrevo versos,
Antiga forma de distinguir os fatos,
Já que neles convergem os universos
As formas-pensamento, os entreatos.

O Poeta é o corifeu do espetáculo
E anuncia o que a vida descortina
Batendo no tablado com um báculo,
Proclamando que quase tudo é Sina.

E as lágrimas, o riso e sua catarse
São a comporta aberta da represa
Antes do vale dos aflitos inundar-se.

Mas se no palco a alma se apresenta
Com a máscara fatal no rosto presa,
Ri o poeta e o duplo rosto ostenta...
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16/09/2017

Flor de cactus (de Alma Welt)

"Podermos enxergar a realidade
É o nosso atributo superior...
Fantasia, o sonho nosso sem idade
É um mero paliativo para a dor."

Assim dizia minha avó, colhendo flores
Um pouco antes de se por a divagar
Contando estórias de seus velhos amores,
Do kaiser da Alemanha, e do czar.

E eu, ingênua guria deslumbrada,
Não lograva separar sonhos e fatos,
Sem saber o que era anjo ou mera fada.

Então para me aproximar da vida,
Eu não evitaria a flor dos cactus,
A beleza que nos dói quando colhida...

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16/09/2017

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A Mariposa, uma oração (de Alma Welt)

Senhor, dai-me nova chance, serei digna,
Tentarei baixar o tom, bem mais humilde,
Embora nunca tenha sido uma Brunhilde,
Mas, Senhor, minh'alma é pura e fidedigna.

Sei que Sois uma imensa Luz Brilhante
Segundo a descrição forte de Dante
(quando levado até Vós por Beatriz)
Mas, meu Senhor, irei ousar e pedir bis...

Talvez seja inconveniente tal discurso,
E nem chegue a enxergar a Vossa Luz,
Já que vou queimar as asas nesse curso...

Sabeis, sou simples mariposa, amo a lua
Porque ela, humilde, a luz do Sol reduz;
Só por isso, ó Senhor, eu vivo nua...

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14/09/2017

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

À Margem (de Alma Welt)

Fui ao mundo e me encontrei em Babilônia,
O caos instalado envolto em névoa
De ignorância e ira malévola,
De tanta insensatez sem parcimônia.

Uma aridez total tudo cercava
E julguei estar no mármore do Inferno;
Hibernavam todos sem inverno
E o sonho da razão monstros criava...

Então ergui o punho e invectivei:
"Ó cidade de tola iniquidade!
De mal e ignorância, ó cidade!"

Mas a resposta veio como aragem
Vinda de outro tempo e outra lei:
"Aproveita, Alma, o dom de estar à margem..."

.
13/09/2017

terça-feira, 12 de setembro de 2017

A rebelde natureza (de Alma Welt)

Se não houvesse o verde, flores, aves,
Eu não desejaria estar no mundo
Que malgrado os obstáculos e entraves
Estranha perfeição mantém de fundo.

Os animais com seu ânimo laborioso
Num come-come infinito pela vida
Carregando o fardo tão sem pouso
(pois não devia atingi-los nossa dívida).

Entretanto um estranho equilíbrio
Nos faz pensar de Deus a hábil mão
De titereiro atento a cada brio,

Que Deus nos quer rebeldes já suspeito,
Antes que fracos, passivos e em vão
Um punho contra o céu, outro no peito.

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12/09/2017

A Espera (de Alma Welt)

Contra o mal incapaz de remédio,
Afasta-te e espera, disse um sábio;
E dei-me conta que ainda que sem tédio
Passei a vida a folhear um alfarrábio,

Sim, a Realidade, mas nos livros,
Que aqui fora não a vejo com clareza
A não ser muito conflito entre os vivos,
Controvérsia, maldade, e esperteza.

Vê como tiram o pão da boca do povão
E o jogam no chão dos corredores
Sem repouso, sem consolo, sem razão...

Um mundo-pesadelo, de delírios,
De uma realidade cheia de pavores,
Onde nem aos pobres mortos cabem círios...

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12/09/2017
                                                   "El sueño de la razón produces monstruos"- gravura de Goya

Sin el sueño de la razón (de Alma Welt)

Nesta manhã levantei-me do meu leito
Com uma estranha esperança no futuro,
Eu, que poucas ilusões trago no peito,
Que de toda embarcação enxergo o furo.

Bem sei que quem se impõe é a Natura,
Malgrado nós e nossa tola presunção
De afetar sua lei mais forte e pura
Que amiúde se apresenta em furacão.

E a Deus agradeci minha lucidez
Que me faz amar o mundo sem condão,
Sem abóbora e cristal como calçado.

Assim pensei antes de por o pé no chão,
Clara e desperta, tal como Deus me fez
Tendo o Sonho da Razão bem afastado...

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12/09/2017

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Arte e o Mundo (de Alma Welt)

Melhorar este mundo em que vivemos
É tarefa muito nobre par' os poucos
Que serão tomados como extremos
E frequentemente como loucos.

Te concentra, alma minha, em teu quintal
Se és capaz de o varrer e de cuidá-lo
Bem antes de julgar o mundo mau
E a enxergar o burro no cavalo...

Fui ao mundo, olhei, não vi remédio
A não ser criar outro meio à parte
E doá-lo a quem possa interessar...

E descobri que isto é a pura Arte
Que se não pode nosso mundo transformar
Quer ao menos despojá-lo do seu tédio...

.
11/09/2017


domingo, 10 de setembro de 2017

El Grande Festival de Tonterías (de Alma Welt)

Com o mundo é preciso paciência,
Pois que ele é de modo a endoidar;
Nada recomenda sua ciência
Que em matéria de cinismo não tem par.

Pra se viver é preciso vista grossa,
Ouvidos moucos e também "bocca chiusa",
Não só pra cantar como uma musa
Na varanda ao luar belo da roça...

Porque é um festival de "tonterías"
Como dizem os simpáticos hermanos,
Que da cegueira são também decanos.

Pois se vais por aí por essas vias,
Esquerdopata, fabiana ou radical,
Como a tal canção do Chico: "Cê vai mal..."

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10/09/2017


Nota
*... "bocca chiusa"/
Não só pra cantar como uma musa/
Na varanda ao luar belo da roça - Alusão à cantilena da Bachiana n° 5 de Villa-Lobos, que é cantada, na repetição do tema, em "bocca chiusa" (expressão italiana que significa boca fechada, o som saindo pelo nariz), pela soprano lírica.
Com a boca fechada, Alma completa a imagem dos três macaquinhos da prudência (ou da omissão e alienação) : vista grossa (olhos fechados), ouvidos moucos (ouvidos tapados), bocca chiusa...


sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O Fruto (de Alma Welt)

Construir um universo de palavras
Foi sempre minha metódica ambição;
Então arei e semeei as minhas lavras
Com humilde e exemplar dedicação.

Como? Lendo tudo ao meu alcance,
Noite e dia, das estantes copiosas,
Com uma ênfase no reino do romance
E as poesias colhendo, como rosas...

Um dia disse: "Basta! Agora escrevo,
Que de Deus palavra e imagem herdamos,
Do Logos o mistério em que me inscrevo."

Quanto à felicidade, o pomo procurado,
Fruto que pomos onde não estamos, *
De tanto tenho a escrever... deixei de lado.

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08/09/2017

Nota
*Fruto que pomos onde não estamos - alusão aos versos finais do belo soneto "Felicidade", do imortal poeta de Santos, Vicente de Carvalho:

"Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos."

Monólogos (de Alma Welt)

Não tentes, meu amor, me seduzir,
Foi-se o tempo inocente da beleza,
E certamente não me posso permitir
Ser artigo, assim, de cama e mesa.

Se queres que eu te siga, diga um verso
Que seja a este momento pertinente;
Seja irônico, mordaz, e controverso,
Mas não dobre à esquerda de repente.

Assim dizia, em sonho, a um belo jovem,
Mas acordei quando ele ia responder
E só as boas respostas me comovem.

Então pensei, comigo, que o sonhado
Somente se refere ao que se quer
E nunca propriamente ao ser amado...

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08/09/2017

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O anátema de um dia (de Alma Welt)

Ser o que sou e viver para a poesia
Foi meu dom e privilégio relativo,
Pois formada de tudo o que eu lia,
Quanta dor deixei passar pelo meu crivo.

Dor do mundo, eu a conheço em empatia,
Mas conheci de fato uma expulsão,
O flagrante e o anátema de um dia, *
Uma injustiça de Deus... Peço perdão.

Passei a vida com quem flores colheu
No jardim de minha avó (que mais fiz eu?)
A olhar de longe o mundo e seus clamores.

Me perdoe, outrossim, leitor amigo,
Acaso olhe demais pro meu umbigo,
Referencial talvez de poucas dores...

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07/09/2017

Nota
*Mas conheci de fato uma expulsão,
O flagrante e o anátema de um dia - Alma se refere ao trauma fundamental de sua infância: a guria Alma, de oito anos, foi flagrada em inocente brincadeira sexual com seu irmãozinho Rodo (irmão adotivo), debaixo da macieira do pomar do casarão, por sua mãe, Ana Morgado, que fez um escândalo e os puniu com uma separação que durou anos, enviando o menino para um colégio interno. Alma se refere a este episódio arquetípico (o "pecado original" e a expulsão do Éden) em inúmeros textos e sonetos, como sendo o fundamento primal de sua poesia.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

A cavaleira, ou O novo pacto (de Alma Welt)

Senhor, peço, preservai minha poesia
Que me destes e que vem toda do anjo,
E que pouco recorre à fantasia,
Verdadeira que é e a qual esbanjo.

Já não falo de fadas fazem anos,
E conquanto sejam vossas criaturas
Colocavam sobre a vida quentes panos
E a dor minimizavam, mas sem curas.

Então chamei o anjo que me destes
E fiz com ele precioso novo pacto
Quando a um com a loucura estava prestes...

Eis-me pois, Senhor, por ele ungida
Como vossa cavaleira em novo trato
E com cota e burel com a cruz vestida...

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05/08/2017

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

As três perguntas (de Alma Welt)

De onde venho eu, que tão sem rumo
Vivo como se meu caminhar levasse
A algum lugar, além do prumo
Que já se esperaria a quem andasse?


E saberei quem sou, chegada a hora?
O espelho ou um oráculo me dirá?
O enigma do Eu e do agora
Terá a solução? Deus me dará?

Para onde irei, se o céu nós temos
E o Inferno, arremate de absurdos
Do purgatório, já que este conhecemos?

Tais perguntas permanecem sem respostas
Como o nosso gesticular aos surdos
Ou como espelho cego a quem te mostras...

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04/09/2017



Nota
 D'où venons-nous? Que sommes-nous? Où allons-nous? - escreveu Gauguin na sua grande tela do Paraíso...

sábado, 2 de setembro de 2017

A Palavra e o Desejo (de Alma Welt)

Só a Beleza justifica a Vida
Já que é inerente a quase tudo,
E até mesmo ao sofrimento mudo
Menos à maldade presumida...

Longe de mim pontificar, julgar, punir
Meus pares neste mundo, tão perplexos
Quanto eu mesma entre o agora e o devir
Ante essa dura carga dos dois sexos...

Mas ao amaldiçoar nosso Desejo
Quis o nosso Criador, ou deu ensejo
A que dele o Mal do mundo derivasse...

Senhor, foi Vosso o Desejo que me fez
Com a Palavra herdada, num impasse:
Poeta Vossa, calai-me então, de vez!

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02/09/2017

De versos e ruínas (de Alma Welt)

De tão mal ficou o mundo já não posso
Escrever minha poesia "de vidente"
Já que a superfície apenas roço
No esforço de a captar somente.


Há quem possa dizer:"O mundo esqueça,
A poesia tem seu próprio universo;
Vá fundo na vida, o fogo aqueça,
Use o som e a fúria no teu verso." *

Rimbaud profetizou como "voyant" *
O poeta do futuro e estava certo,
Mas não contava com os truques de Satã.

E eis-me a contemplar a feia ruína
De um belo mundo que parecia perto
Mas que virou à esquerda numa esquina.

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31/08/2017

Notas

*Use o som e a fúria no teu verso..." - Alusão ao famoso monólogo do Macbeth de Shakespeare.

" Rimbaud profetizou como "voyant" - Alma alude à famosa "Lettre du Voyant" (Carta do Vidente) onde Rimbaud diz que o poeta do futuro deveria se tornar vidente.