segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O Jogo (de Alma Welt)

"A vida é aventura, puro acaso,
Como um jogo de dados permanente,
E não porto seguro, sem atraso,
A que chegas pura e simplesmente... "

Assim dizia minha avó plantando flores
Enquanto eu, curiosa, a observava
A formar um certo código de cores
Que parecia desmentir o que falava...

Então ali percebi, a certa altura,
Existe um jogo, sim, mas só de cartas,
Num balanço entre a astúcia e o acaso,

Com a ajuda das Musas do Parnaso,
Saber blefar, manter a cara dura,
Num jogo com a Moira antes que partas...

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30/10/2017

Manhã nublada (de Alma Welt)

Hoje o dia amanheceu triste e nublado
Como se as vidas nossas lhe pesassem,
Ou ainda não estivesse acostumado
Que suas próprias horas venham e passem.

Então eu me remonto àqueles dias
De minha meninice, em minha mente,
Em que nem precisava de poesias
Pois a vida era bela o suficiente...

Quanto esforço faço, na verdade,
Para conservar a alma alegre
Sem trocar meu belo gato pela lebre...

Então de novo olho o dia e agradeço
À manhã triste e sua generosidade
Pelo o que possa trazer que não conheço...

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30/10/2017

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Turista em Babilônia (de Alma Welt)

Imersa em falsas circunstâncias
Me vi de repente em pleno mundo
Cercada por ânsias e ganâncias
Das quais não avistava nem o fundo.

Dentro da grande Paulicéia estava eu
Como uma turista em Babilônia
Ou no Egito sem um José judeu,
Pobre bebê despencado da cegonha.

Eis que vi o mundo humano claramente
Mas ele era confuso, borbulhante,
Como um caldeirão efervescente...

Voltei ao meu jardim e à minha varanda,
E a mirar o poente deslumbrante...
Bah! O mundo? Já sei como ele anda...

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26/10/2017



Translation...

The Tourist in Babylon (by Alma Welt)

Immersed in false circumstances
I suddenly found myself in the middle of the world
Surrounded by cravings and greed
Of which I could not even see the bottom.

Within the great Paulicéia I was
As a tourist in Babylon
Or in Egypt without a Jewish Joseph,
Poor baby falling off the stork.

Behold, I saw the human world clearly
But he was confused, bubbly,
Like an effervescent cauldron ...

I went back to my garden and my balcony,
And looking at the stunning sunset ...
Bah! The world? I already know how he's doing ...

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10/26/2017

Free transliteration in rhymes:

The Tourist in Babylon (by Alma Welt)

Immersed in false circumstances
I suddenly found myself in romances
Surrounded by cravings and greed
Of which I could not even seed

Within the great Paulicea as an Alef
Or as a tourist in Babylon
Or in Egypt without a Jewish Joseph,
Baby falling off the stork for now on.

Behold, I saw the human world clearly
But confused, bubbly, I met
As an effervescent cauldron, or nearly ...

I went back to my garden and my balcony,
And looking at the stunning sunset ...
Bah! The world? I already know its agony.

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10/26/2017


Tradução literal da transliteração livre em rimas:

A turista na Babilônia (por Alma Welt)

Imerso em circunstâncias falsas
De repente me vi em romances
Rodeada de desejos e ganância
Os quais eu não podia nem semear

Dentro da grande Paulicea como Alef
Ou como turista na Babilônia
Ou no Egito sem um Joseph judeu,
Bebê caindo da cegonha, por enquanto.

Eis que eu vi o mundo humano claramente
Mas confuso, borbulhante, eu conheci
Como um caldeirão efervescente, ou quase ...

Voltei para o meu jardim e minha varanda,
E olhando o pôr do sol deslumbrante...
Bah! O mundo? Eu já conheço sua agonia.



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26/10/2017

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O fogo e a Luz (de Alma Welt)

Para ser merecedora de minha alma,
Atenta à sua provisória condição
De empréstimo ao pobre coração,
Tentei mantê-la doce, pura e calma.

Quantas faltas, pecadilhos, devaneios,
Entretanto esta minha alma cometeu,
Alvo de tentações por tantos meios
Desde o fogo que ganhou de Prometeu.

Perdoai, Senhor, arcaica alegoria
(bem sei que a vossa Luz é que vigora)
Foi somente para efeito de poesia...

Pois se a alma num cárcere é encerrada,
A beleza que me foi dada por fora
Tornou bem mais amena a temporada...
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25/10/2017



Notas

*Atenta à sua provisória condição/
De empréstimo ao pobre coração - A poetisa está dizendo que o coração, símbolo da nossa morada corpórea, recebe a alma somente por um período provisório, passageiro (o que não destoa do próprio cristianismo).

*Desde o fogo que ganhou de Prometeu- aqui Alma faz alusão ao mito grego do titã Prometeu, que tendo roubado o fogo dos deuses do Olimpo, doou-o aos homens e por isso foi punido por Zeus.

*Perdoai, Senhor, arcaica alegoria/
(bem sei que a vossa Luz é que vigora)- Alma pede perdão a Deus por referir-se ao mito pagão da posse do fogo pelos homens (origem da razão ou consciência) para designar o que na fonte judaico-cristã do nosso cristianismo é simbolizada pela Luz divina da Criação.

*Pois se a alma num cárcere é encerrada - Aqui Alma lança mão do mito órfico da alma encerrada no corpo titânico fulminado por Zeus e atirado na Terra, e de cujas cinzas Zeus criou o Homem, durante a grande batalha da Teomaquia (ou Titanomaquia) quando os titãs devoraram, Dionisos-criança (a alma) mas foram derrotados. A Alma é Dionisos que recupera as asas depois de dez ciclos de reencarnações e consegue libertar-se do cárcere corpóreo, e voando alçar-se ao ponto mais alto do Empíreo, a morada dos deuses e das almas purificadas.

*A beleza que me foi dada por fora/
Tornou bem mais amena a temporada - a poetisa Alma é grata a Deus por ter sua alma abrigada num corpo de extraordinária beleza reconhecida, o que lhe abriu muitas portas, e tornou a sua passagem na Terra menos penosa.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Ah! Meus amigos... (Quatro Fábulas) ( de Alma Welt)

Ah! Meus amigos, tão tolos quão formosos
Na nossa louca juventude ou logo após,
Acreditando-nos de algum modo poderosos,
Como alexandres a cortar mil górdios nós

Que o Destino apresentasse vida afora,
E que tudo estaria ao nosso alcance,
Como se o leão da vida a gente amanse,
E com Androcles nossa fera a ir embora...

Quanto a mim fiel fiei como Penélope
No tear a minha teia de sonetos
A esperar um rei nada a galope...

E se a espada pendurada por um fio,

De novos Dâmocles faz de nós suspeitos,
Já nada temo mais e apenas rio...

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23/10/2017



Notas
*Como alexandres a cortar mil górdios nós - alusão ao episódio mítico da vida de Alexandre da Macedônia, que instado a desatar o intrincado "Nó Górdio", da corda que atava o varal de uma carro de guerra a uma coluna de um templo (o oráculo predizia que quem o fizesse seria o rei daquela terra), sacou de sua espada e de um só golpe cortou o nó.

*E com Androcles nossa fera a ir embora - Alusão à fábula popular cristã de Androcles e o Leão, em que o personagem, um andarilho grego cristão encontrou na estrada um leão que sofria desesperadamente com um espinho na pata. Compassivo, Androcles se aproximou corajosamente da fera, que por instinto o deixou retirar o espinho, aliviando-o da dor. Anos mais tarde Andrócles, capturado pelos soldados romanos do imperador Nero, foi jogado na arena do Coliseu para ser devorado por um leão. Por coincidência era o próprio leão tratado pelo cristão, e que dele agora se lembrou e veio deitar-se ao seus pés, lambendo-os em sinal de gratidão. A multidão em êxtase pediu a César o perdão do condenado.

*Quanto a mim fiel fiei como Penélope- Todos conhecem a história contada na Odisséia de Homero, da fiel esposa de Odisseu, a rainha Penélope, que esperou por vinte anos a volta de seu marido da guerra de Tróia (dez anos de guerra e dez anos perdido em aventuras em seu retorno). Pressionada por príncipes estrangeiros pretendentes à sua mão e ao seu trono, que acreditavam Odisseu morto na guerra, Penélope sempre confiante no regresso de seu marido, para ganhar tempo empregou um estratagema: prometeu que escolheria um dos pretendentes mas somente quando terminasse de tecer uma teia que celebrava em imagens a façanhas lendárias que o povo contava sobre o bravo Odisseu. Ela tecia de dia no tear e de noite destecia os pontos para nunca terminar.

* De novos Dâmocles faz de nós suspeitos  - alusão ao episódio de Dâmocles, rei que dormia com uma espada suspensa por um fio de cabelo sobre sua cabeça. Este mito é interpretado como uma alegoria da coragem ou aceitação do nosso destino humano.

Depoimento da Alma (de Alma Welt)

Eu não fiz mais que cumprir o meu destino,
Fui somente a poetisa que me coube,
E se mais realizar não pude ou soube,
Bem... ao menos fui mulher de trato fino.

Minha mãe, mulher de outrora, dama fina,
Preconizava uma nobreza de atitudes
Que me ficou, malgrado a minha sina
De poeta atenta às finitudes.

E se alguma rebeldia pode haver
Em querer perpetuar o belo instante,
Senhor, só da Beleza fui amante...

Porque o que escrevo, sinto ou vejo,
Vem da guria que corria para ler
As promessas de um velho realejo...

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23/10/2017

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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A pergunta (de Alma Welt)

Estaquei ao ver as sombras avançando
E voltei ao meu jardim ainda florindo
Como se o mundo fosse bom e lindo
E o Bem ainda estivesse no comando.

E perguntei às rosas que não falam
(talvez sejam elas próprias as respostas),
Quais as perguntas, lançadas, que não calam,
Que na vida quase tudo são apostas...

Descobrindo que a melhor é a Beleza
Atravessei a varanda e a soleira
E como outrora me sentei à nossa mesa:

Lá estavam meus pais, irmãs e irmão,
Naquela prece profunda mas ligeira,
E logo os chistes, risos e o "Passe o pão!"

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18/10/2017

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O Mergulho (de Alma Welt)

Reconstruir a vida a cada verso,
A própria vida assim me coube,
Como pra não ter o olhar disperso
O pintor se cerca do que soube,

Quero dizer: dos seus quadros já cumpridos,
O quais não o deixarão desintegrar-se.
Ah! Teimosa criatura sem ouvidos,
Porque todos lhe pediam que parasse...

Sim, nada recomenda o verso e a tela:
Quanta dor para no escuro ver nascer
A pequena labareda de uma vela...

Mas quanta alegria e mesmo orgulho,
Quando a própria noite foi mergulho,
E o poema ou tela o alvorecer...

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16/10/2017

sábado, 14 de outubro de 2017

Um certo horror... (de Alma Welt)

Há um tom patético em nossa vida,
Um imenso desamparo universal
Que nos induz comprar brinquedos no Natal,
Pra criança nossa interna, presumida...

Pior é muita dor para além disso,
Ignorância e mortes corriqueiras,
Bebês não nascidos... com parteiras,
E um povo explorado e submisso...

Corrupção e roubo em todo nicho
Do tecido social virando lixo,
Torpe indução ao feio e ao vício...

E o nosso voto, em si, tornado fraude,
Tanto esforço empenhado, mas debalde.
Sim, há, um certo horror em tudo isso...

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14/10/2017

Entrevista com o artista (II) (de Alma Welt)

Prosseguindo do artista a entrevista,
Notei que em sua mesa de desenho
Não havia, pelo menos não à vista,
Caneta a indicar seu desempenho.

Não havia pena, de metal ou de bambu,
Normalmente encontradas nas pranchetas
Também sequer apareceu modelo nu
A indicar as ocultas, velhas tretas...

Então o mestre revelou, assim, sem mais,
Que aprendeu a desenhar de estalo
Não com Musachi, o maior dos samurais

Mas com o velhinho, no Cine Niterói,
Com a cena da rosa, e o corte no seu talo,
E a pincel, seu traço fluido, que não dói...

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12/10/2017

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Entrevista com o Artista (de Alma Welt)

"Muito tempo nadei contra a corrente
Enquanto isso era belo e diferente
Agora é o oposto e indigesto,
E ao fazê-lo dizem que eu não presto."

Assim disse o artista no ateliê,
Cuja imensa bagagem se notava
Pois como elo da corrente ele se vê
Numa longa tradição de vida brava.

Mas artista excluído e já sem preço
Disse: "Prefiro o isolamento e a rejeição
Como nos tempos heroicos do começo"...

"Ser aceito por este mundo agora
Continua covardia e sujeição,
Mas toda a Grande Arte foi embora"...

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11/10/2017

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Não tem jeito (de Alma Welt)

Não tem jeito, o mundo é uma desgraça,
Ninho de víboras ou saco de gatos;
Meu telhado tem um gosto de vidraça,
E meus pés são maiores que os sapatos.

A vida é chata, a gente se aborrece,
E o tédio grassa a bordo da goleta. *
O capitão quer que eu faça a prece,
E pra isso faz a "russa", a tal roleta.

Isso tudo ainda vai acabar mal,
As coisas não têm como dar certo,
A beleza recebeu a pá de cal...

Então, não avistando mais saída
E da Morte estando pois tão perto...
Suspendo o sonho mau e volto à vida.
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10/10/2017

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Nota
*E o tédio grassa a bordo da goleta - Alma alude ao impagável conto Acontecimentos a Bordo da Goleta "Banbury", do livro Bakakai, de Witold Gombrowicz.

O espelho e o poema ( de Alma Welt)

Pensei mudar minha vida ou ir além,
E fazer da minha lavra um testemunho,
Pois que da alma mesma ela provém
E as sementes caem do meu punho.

Mas não queria estar sozinha tão somente,
Pensando o mundo ou fruindo dos prazeres
Já que a alma não é auto-suficiente,
E o espelho não é ponte entre os seres.

Mas se todos nos espelhos nos miramos
Para ver como é que Deus nos fez,
Nem por isso nosso Ser capturamos...

E o poema tem bem mais acuidade:
Nele enxergo melhor e em nitidez,
Que Narciso no seu lago de vaidade...

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10/10/2017

sábado, 7 de outubro de 2017

Contos de minha boemia (I) (de Alma Welt)

Eu costumava entrar em certo bar
Na cidade no meu tempo de boemia,
Procurando, disfarçada, com o olhar
Aquela por quem meu coração gemia.

E tomava uns tragos feito homem
No balcão como se no Velho Oeste
E não onde os proletários comem
O prato feito de que fujo como peste.

Mas um dia, o barman que era o dono
Sussurrou-me ao ouvido no balcão
Uma espécie preventiva de abandono...

Disse:"Alma, tua gata não vem mais,
Não somente por amor da profissão,
Mas de medo desse olhar verde demais..."

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07/10/2017

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Contos de minha boemia (II) (de Alma Welt)

Eu caminhava nas ruas noite e dia
Procurando o amor que me faltava
E a me prostituir mesmo pensava,
Que àquela altura eu pouco me valia.

Alma perdida de mim mesma, ainda bela,
Quanto perigo corri sem me dar conta,
Chegando a dormir numa viela
E acordando cercada e meio tonta.

Foi quando umas freiras caridosas
Me levaram com elas pro convento
E me puseram pra cuidar das rosas.

Mas um dia a Superiora disse assim:
"Tua poesia é para o mundo e para o vento,
E Deus me disse pra te liberar enfim..."

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07/10/2017


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Contos de minha boemia (III) (de Alma Welt)

Não eram verdes tempos, mas cinzentos,
Minha casa estava longe e a inocência
Dos meus dias nos campos e nos ventos
A colher flores em torno da querência.

Agora estava solitária e à deriva
Como o barco embriagado de Rimbaud
Em que de certo modo ainda estou,
Mas queria experimentar a vida viva...

Corria ruas de Montmartre e Montparnasse
Como o faziam Lautrec e Modigliani
Que bebiam o absinto que calhasse...

Mas então disse: Chega! O que preciso
É alguém que me queira, e que se dane:
Vou voltar para o meu pampa e meu juízo.

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07/10/2017

O idioma da serpente (de Alma Welt)

Neste universo fomos postos a pensar,
E é o que fazemos noite e dia,
Muito embora deixe um pouco a desejar
O timbre, a qualidade e a valia...

Deus no legou o Verbo e o Logos
Que chegou a nós por extravio
Por meio da serpente e não dos fogos
Das estrelas de Deus em que me fio.

Ainda hoje a ouvimos sibilar
Dentro de nós, a rastejante criatura,
Nos incitando a nos apaixonar...

Conheço bem o idioma da serpente
Mas o uso só para a escritura
Dos poemas que Deus olha ternamente...

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07/10/2017

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O Maior dos Poetas (de Alma Welt)

Vir ao mundo para escrever poesia
Não me parece nada fútil ou em vão,
Pois Jesus fez poesia num sermão:
"Olhai os lírios do campo"... (e descrevia).

Também fez poesia em prosa na montanha,
A mais bela das respostas nos contando
De um pai diante de um filho e sua manha
Por ciúme do irmão pródigo voltando...

Poeta, e o maior que jamais vimos,
Que o Pai o enviou com esse dom
Para ao menos, por beleza, o ouvirmos.

Perdão, Pai, por puxar assim a brasa
Sem ter feito nada assim tão bom,
Só queria escrever um e ir pra casa...

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05/10/2017

A Verdade (de Alma Welt)

"A Verdade existe e está nos livros,
Cabe garimpá-la em meio aos tomos.
Mas, Alma, observe os seres vivos,
A que nos propusemos e o que fomos".

"Quanta torpe iniquidade mundo afora!
Sinceramente devo pois pedir perdão,
A ti, Alma, tuas irmãs e teu irmão,
Por trazê-los a este mundo aqui de fora."

Assim disse meu pai num mal momento,
Num raro, estranho modo ressentido,
Poucos meses após minha mãe ter ido.

Mas eu, que não sou poeira ao vento
Mas uma Alma entre mundos, imortal,
Disse: "Bobagem, meu paizinho, não faz mal...

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05/10/2017

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Oração para a Era do Equívoco (de Alma Welt)

De equívoco vivemos uma Era
Em que torpe confusão é o Juízo.
Todos gritam, os ratos viram fera,
Enquanto gatos, com medo, pedem guizo.

Como concurso para ver quem grita mais,
Assistimos a um debate de dementes
Em que nunca o derrotado volta atrás
Pois deixa, venenosas, suas sementes.

Senhor, com perdão, está na Hora.
Mas quem sou eu para pedir intervenção?
Não sei ,Senhor, se fico ou caio fora.

Quase todos somos tolos e daninhos.
Só vos peço: nos dai novo coração
Ou mudai em pura água nossos vinhos...

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04/10/2017

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Uma Luz! (de Alma Welt)

Ó Senhor, vivemos tempos tenebrosos,
A escuridão reina em todo canto.
Estão de volta os crimes escabrosos
Só registrados nos anais do espanto...

Não sou uma energúmena, Senhor meu,
Bem conheceis meu complicado coração
Que foi mesmo por um longo tempo ateu
Por medo, ignorância ou solidão...

Mas, Senhor, se não for pedir demais
Enviai um ser de Luz, que se faz tarde,
E já estamos afundando na maldade...

Uma luz, Senhor, em torno a Alguém,
Mas tão forte que comova e crie paz,
Nada mais será preciso, nem convém...

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03/10/2017

Primaveras (de Alma Welt)

Queria ter minha nova primavera,
Levantar em esperanças da minha cama,
Não triste como um fado da Severa, *
Nem como os de ainda hoje na Alfama.

Também não como baladas da Irlanda,
Por mais belas que elas sejam e dolentes,
Nem serestas brasileiras de varanda,
De serenos e ventinhos de repentes...

Também não de bosques de Viena
Ou de róseas cerejeiras japonesas,
Ou de um acordeão de beira-Sena...

Primaverona dos amantes, cotovia,
Sem noturnos rouxinóis das incertezas,
Mas com flores a explodir, pura alegria...

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03/10/2017
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Notas
*Não triste como um fado da Severa
- Severa foi a primeira grande fadista de Portugal, célebre, ainda no século XIX, que teria lançado as bases do estilo das fadistas de ainda hoje, passando por Amália Rodrigues, que consolidou o modo peculiar de modular mouriscamente os versos finais nas letras, quase sempre tristes, de fatalidade, de destino...

*Nem serestas brasileiras de varanda/
De serenos e ventinhos de repentes. - Alma faz alusão à canção folclórica brasileira, "Fiz a cama na varanda"...

* Primaverona dos amantes, cotovia/
Sem noturnos rouxinóis das incertezas
- (primavera grande de Verona) Alma alude à famosa cena de Romeu e Julieta, os amantes de Verona, de Shakespeare, em que o casal passa a primeira noite juntos, após se casarem em segredo, e Julieta desperta alarmada com o canto da cotovia e eles devaneiam incertos se ainda é o canto noturno do rouxinol ou a cotovia da manhã, pois ele não pode ser encontrado no quarto dela, em sua casa paterna, ou será morto.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Volto ao Jardim (de Alma Welt)

Ter meu jardim por dentro em meio ao caos,
Foi em vão sem as rosas desta estância.
Aqui passo momentos bons e maus
Mas foi fácil distingui-los à distância...

Malfadado auto-exílio que me impus!
Nada era muito claro: tateava,
E entre os amigos novos que supus,
Devo reconhecer: ninguém me amava,

Mas como cobiçavam meu corpinho!
E por esta cabeleira rubra e brava,
Outras rubras fantasias no caminho...

Então disse: Basta, isto me trava,
Estou a dar a quem não me merece!
Volto ao jardim... e o samba cesse. *

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02/10/2017
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Nota
*Volto ao jardim... e o samba cesse - Alma alude ao famoso e belíssimo samba do Cartola, "As Rosas Não Falam"...

Aquela que fica (de Alma Welt)

Quantas vezes pensei em ir-me aos mundos
De encontro aos perigos e aventuras;
Subir montanhas, descer vales profundos,
Contar com leais sherpas nas alturas...

Sentar em flor de lótus frente a um mestre,
Esperar e ver prodígios dos humanos,
Ou assumir minha condição pedestre,
Cruzar o mundo a pé por alguns anos...

Aquela sou que quer partir e sempre fica.
Mesmo partindo, fica, fica, como o Campos
Aquele Álvaro que o Poeta exemplifica.

Mas assumo o que em mim mais belo resta:
Simples mulher, pôr no cabelo os grampos,
Pôr roupa pra secar, ver mundos pela fresta...

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02/10/2017

Meu diálogo com a varanda (de Alma Welt)

Minha varanda, mirante do poente...
Quanto me viste na cadeira balançante
Não somente a mirar o circundante.
Mas a observar minha própria mente...

Não te assustes, velha, minha varanda,
Não confesso deste modo a ruptura
Em duas almas e que uma já desanda:
Sou eu mesma, a passada e a futura...

"Alma pensas mirar tua própria mente
Mas estás a fazê-lo ao teu umbigo.
Vê só como o mundo é diferente:

Vê os homens nos Campos do Senhor,
Como labutam no limite do perigo...
Vê quanta dor, coragem, e quanto amor!"

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02/10/2017

domingo, 1 de outubro de 2017

Primavera fria (de Alma Welt)

Primavera tristonha em seu começo...
Como me faz lembrar outras, passadas,
E malgrado um ou outro vão tropeço,
Uma infância feliz, das mais amadas...

Manhã gelada, mas clara, auspiciosa,
Em que saio de um casulo de invernada
Como noturna, deslocada mariposa
Em lúcida manhã, meio ofuscada...

Quero viver, reviver, tudo de novo,
Insaciável de vida e de experiências
Num contato ainda vivo com meu povo...

Mas levanto, me dirijo ao meu teclado,
Meu virtual espelho das vivências
De um tempo mais real... abandonado.

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01/10/2017