terça-feira, 29 de março de 2022

Me perguntaram (de Alma Welt)

Me perguntaram se tenho algum amor....
Mas amor mesmo, dizem... carne e osso.
Eu respondo: "Não sou "carne de pescoço",
Pois amo tanto que já morri de amor..."

Estou até rimando amor com amor...
Como ousam a mim tal coisa perguntar?
Cada palavra que profiro é uma dor,
De tanto amor, de tanto o amor amar.

"Caramba, Alma, nos estás levando a mal!
Percebemos que tocamos na ferida
Mas veja, és também a nossa vida..."

"Pois o quê é o poeta senão isso?"
Eu então baixo esta "cabeça universal"
E choro por nós todos desde o início...
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29/03/2022

domingo, 27 de março de 2022

Assum-preto num toco (de Alma Welt)

                                   Assum-preto da tarde - o/s/t de Guilherme de Faria, 2013, 30x40cm 


Assum-preto num toco (de Alma Welt)

Assum-preto num toco observando
A queimada muito longe na chapada
Foi a visão que retive desolada
Nas retinas e que vem de vez em quando...

Então pedi ao meu pintor que registrasse
Esse sonho acordado, numa tela,
Para que de me assombrar logo parasse,
E pra tal acendi até uma vela.

Porém quando a tal telinha ficou pronta
A beleza já a tinha conquistado
E nos apresentava a sua conta.

Assim é sempre a Arte e a Poesia:
Só querias dar apenas um recado,
Mas o "como", não o "quê, o transcendia...
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26/03/2022

A Memória (de Alma Welt)

A memória é tudo que eu possuo.
Nada mais é meu, nem corpo e alma,
Estes a Deus somente eu atribuo,
Mesmo a linha mestra da minha palma.

"O futuro a Deus pertence", mas lembranças
ELE não liga já que são tão pessoais
A não ser quando nos doem, assim, demais
E sugerem uns pecados e lambanças...

Cada folha, seca ou verde Deus comanda:
Nada cai sem Sua ordem, nem farfalha,
E no palheiro Ele está em cada palha.

Mas lembranças? Eu as guardo humildemente.
Pra pecadilhos meio fora de demanda
Meu Senhor faz vista grossa, felizmente...
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27/03/2022

quinta-feira, 24 de março de 2022

Pequena Fábula Pictórica (de Alma Welt)

                                O Pintor- desenho de Guilherme de Faria, 70x50cm, 1974

Pequena Fábula Pictórica (de Alma Welt)

Como artistas só fazemos o que somos,
Não há como falsear fazendo arte.
Se forçando ou procurando noutra parte
Colheremos simulacros, falsos pomos.

Um pintor cansou de si num certo dia
E a pintar como seu mestre começou.
De tal modo acreditou no que fazia
Que a si mesmo, com agrado, se enganou.

Pelo seu mestre então foi visitado
Que lhe disse: "Estás pintando muito bem.
És um bom imitador, fico encantado... 
"
E o pintor, de repente envergonhado,
Recomeçou a pintar inconformado
Já que a pintura é só terra de ninguém.
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24/03/2002


quarta-feira, 23 de março de 2022

A Mancha (de Alma Welt)

 

Grande Nu (Alma Welt) - o/s/t de Guilherme de Faria, 1990-2018, 140x120cm


A Mancha (de Alma Welt)

Pro meu pintor posei desnuda a me despir
Em pose improvável e caprichosa,
Jarrão com flores, talvez pra distrair
De uma mancha no tecido, capciosa...

Meu pintor é realista, sem malícia,
Mas cobriu-me sutilmente aquela parte
Mas traiu-se ou me traiu com sua arte:
Uma mancha de carinho ou de sevícia...

Perdoei-o e até ri da sua saída
Com a feminina intimidade captada,
A mais funda numa obra já exibida,

Que vendida afinal foi devolvida,
Por comprador e sua esposa indignada:
"Sua modelo, senhor, tá menstruada!
.
23/03/2022
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Nota
Esta história é absolutamente verdadeira. Esta tela foi vendida e depois de alguns anos foi trocada pelo colecionador por outra tela minha, porque sua esposa não a suportava, porque via nela uma mancha de menstruação, nuns toques vermelhos do panejamento. A tela está comigo até hoje e hesito em apagar o tal vermelho...
(Guilherme de Faria)

A Náufraga (de Alma Welt)

Naufrágio - o/s/t de Guilherme de Faria, 2021 50x40cm


A Náufraga (de Alma Welt)

Como barca que a tempestade encalha
Estive desolada algumas vezes,
A esperar dos ventos e revezes
Qualquer areia que afinal me valha...

Não me queixo, estou apenas recordando,
Sobrevivente orgulhosa de remar,
Embora exausta depois sair andando
Como uma Crusoé de outro lugar...

Pois como aquele refiz a trajetória
De toda humanidade passo a passo
Dentro em mim, que me dei tal moratória.

E afinal o meu percurso culminei
Com a tal liberdade de um abraço
Em mim, que fui fiel e me encontrei...
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23/03/2022

Oroborus (de Alma Welt)

Se tudo na minha vida foi retorno,
Para isso tive então que andar pra frente
Mas não só mordi a cauda qual serpente:
O caminho me fazia olhar em torno...

Báh! E como foi belo o meu caminho,
Que, artista, para ele tive olhar...
Mas olhar desvelador do comezinho,
E até de reis que eu soube desnudar...

Mas não fui palmatória do universo,
Que moderei-me o crítico severo
Optando escolher o bom e o vero

Como quem deixa o resto, displicente,
Ou sílabas que excedem no meu verso,
Busquei rimar a vida, simplesmente...
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23/03/2022

terça-feira, 22 de março de 2022

Nem Narcisa nem Medusa (de Alma Welt)

                      Alma Welt como Perséfone - o/s/t de Guilherme de Faria, 2020, 60 cm de diâmetro

Nem Narcisa nem Medusa (de Alma Welt)

Vivo e durmo qual se o mundo fosse bom
E desperto nas manhãs espreguiçando,
Quero dizer que a manter o mesmo tom,
Se não apaixonada, muito amando.

Na verdade meu amor é por mim mesma
Mas lhes peço não me acusem de "narcisa",
Refletida não sou minha abantesma,
Meu espelho é ser esta poetisa...

Na verdade minha beleza foi percalço
Confundindo alguns leitores pelo olhar:
É com ela que nas mentes eu me alço?

Meus cabelos são de fogo, não serpentes,
Sim, sou boa, embora cheia de repentes,
Os que me amarem não irei petrificar...
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22/03/2022


Mito e coragem (de Alma Welt)

"Pra viver é só preciso ter coragem",
E meu pai a teria como um ogro,
Reconhecendo porém a desvantagem
Da mulher, que a necessita em dobro.

Pois saí com a cara e a tal coragem,
Fui ao mundo que nos livros eu amava
Mas que ao vivo era só sede e voragem
(é verdade que a cara me ajudava...)

Olhos cinzas de uma doce nostalgia,
Cabelos ruivos que não herdei de Ana *
Mas de uma estirpe de região mais fria,

Meio caminho andado, eu admito,
Rosto branco de fina porcelana,
E portas já se abriam para o mito...
.
21/03/2022
Nota
*Cabelos ruivos que não herdei de Ana - Alma se refere {a sua mãe Ana Morgado Welt, de estirpe açoriana, de cabelos negros. Os cabelos ruivos da poetisa vem dos Welt, germânicos...
Neste soneto, Alma admite que sua beleza física a ajudou a conquistar um público e a criar seu mito, o que me parece válido num mundo em que a beleza agora corre perigo...

segunda-feira, 21 de março de 2022

O Poeta (de Alma Welt)

Pensar a vida e a morte é meu mister:
M'o arroguei quando ainda era guria
Que com as outras contar o mal-me-quer
Era só o que esperavam e eu devia...

O Poeta tem estranhos fortes ombros
Para arcar com o peso deste mundo
Sendo escriba à margem dos escombros
Com, dos anjos, o coral soando ao fundo.

Então penso que me alego vãos poderes,
Que o poeta é um simples serviçal
Que só entrava pela porta do quintal

E nos castelos comia com os criados;
Ah! Bebia e farreava sem deveres,
Com os versos e os dias seus contados...
.
21/03/2022

domingo, 20 de março de 2022

A Porteira (de Alma Welt)

"Dar conselhos eu me esforço para evitar
Embora o tenha feito alguma vez;
Uma palavra solta ou fora do lugar
É uma porteira aberta e vai-se a rês..."

Assim me disse meu pai fazendo gênero
De "galtcho" estancieiro de bombacha
(este seu, na verdade, lado efêmero),
Sendo mais para Tolstoi na sua "dacha".

De muito poucas reses mas mil livros
E um negro e caudaloso Steinway,
Era um último romântico entre os vivos.

E eu que o tinha entre os sábios,
Conselhos mesmo, de verdade, nunca dei:
A porteira com que Deus selou meus lábios...
.
20/03/2022

domingo, 6 de março de 2022

Anima Mundi (II) (de Alma Welt)

Pensar muito estraga a pele - ela dizia-
Minha mãe, alta, bela e elegante,
Embora com a ponta de ironia
Que me deixava ainda mais distante.

Já meu pai, me queria inteligente,
Não de língua afiada de comadre
Ou pontificante como um padre,
Mas trocando as lentilhas pela lente.

Conquanto sem menosprezar a prosa,
Pondo o saber a serviço da poesia,
Sem falsear os espinhos de uma rosa...

Ao trocar a superfície pelo fundo,
Eu já estava em minha própria Economia:
Alma de mim, também Alma do Mundo...
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06/03/2022

quinta-feira, 3 de março de 2022

O Espéculo (de Alma Welt)


                                    Alma Welt - o/s/t de Guilherme de Faria, 2020, 60cm diam.

O Espéculo (de Alma Welt)

Contra a tal nostalgia me rebelo,
A saudade irmã dileta da tristeza,
A prisioneira da torre do castelo
Apesar de toda a sua beleza..

Báh! Alma, tuas figuras de linguagem
Traem todo romantismo que há em ti,
Responsável por te colocar à margem
Como o salgueiro mais choroso que já vi.

Chega! Para! Retorna ao nosso século!
Pensas que o Mal, olhando-se no espelho
Sabe de ti por aquele franco espéculo?

Bem... o contraste do cabelo tão vermelho
Com a brancura impossível de tua pele...
Não admira que fatal destino sele.
.
03/03/2002

terça-feira, 1 de março de 2022

A Eremita (de Alma Welt)

Há muito, onde quer que eu pouse olhares
Nasce um verso, sonetos, um artigo...
"Báh! Lá vens tu de novo a te gabares",
Suponho exclamar logo um inimigo

Ou amigo, não sei, faltam-me as provas
De sucesso verdadeiro ou de fracasso:
A solidão só me fornece novas trovas,
Seu faro pro prestígio é meio escasso.

Eis a sina de eremita do poeta,
Repetindo sua oração dileta
Mas com vocabulário à saciedade.

Sim, sei que até me alcançam no deserto,
E enquanto ouço uns aplausos da cidade,
Mastigo um gafanhoto pouco esperto...
.
01/03/2022