terça-feira, 27 de novembro de 2012

Alma sem cordéis (de Alma Welt)




 Fotograma modificado de uma animaçâo de Zdenko Basic
 
Alma sem cordéis (de Alma Welt)

Alma sem cordéis, em liberdade,
Um Pinóquio de madeira mas de saias,
Tratei de ser guria de verdade
Cortando os assovios e as vaias.


Então me transformei no ser amável,
Sonetista com a arca sempre cheia,
Mas sobretudo bela e desejável
Pois quem quer uma poetisa feia?

Encontro que não precisou de armário
Como da branca loba da alcatéia
Com o lobo da estepe, solitário...

Esperto cordelista, e sem revolta
Ele tratou de criar sua Galatéia
Pois criada a criatura sempre volta...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Alma incandescente (de Alma Welt)


 
Alma incandescente (de Alma Welt)

Quando avisto o mundo ao meu redor,
Não somente o horizonte e o poente,
Que é o momento de esplendor
E o repouso da alma incandescente,

Eu sinto que o sol é o nosso espelho
Tão grande é o potencial do nosso ser
A baixar o seu reflexo vermelho
Que quase nada a Deus fica a dever...

“O que é isso? Então somos divinos?
Será isso que propõe tua soberba,
Que confunde minuano com rei Minos?”

Não (eu respondo)! É reverência
Pela nossa Criação, a mais acerba
Devida à Divina Providência...
 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A vida que eu vivi (de Alma Welt)



“A vida tem que ser mais do que isso!”
Confessou o caixeiro em nossa sala,
Chegado da cidade e a serviço,
Apontando a sua própria mala.


Também disse o professor na escola
Desejando dar um súbito sumiço
Para longe da bagunça e tanta cola...
“A vida tem que ser mais do que isso!”

Grita o marido ao ver a esposa
No sofá frente à tevê vendo novela,
A linda filha ensaiando a mariposa...

Então, ouvindo isso, eu prometi
Que seria o que eu fizesse dela
A maravilhosa vida que eu vivi...

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Flautista mágico (de Alma Welt)





                                         O flautista- desenho de Guilherme de Faria

O Flautista mágico (de Alma Welt) 

Sempre poderás sonhar teu sonho,
Isso não te poderão roubar jamais.
Apostar tudo no real é que é bisonho,
Por que o queres assim banalizar?

Atribuir tanto valor à realidade
Não é coisa muito digna do artista,
E duvidar do nosso dom quem há de,
Se de Hamelin somos o flautista?

Levar os ratos todos para abismos
Ao som de uma alegre melodia
É coisa que fazemos todo dia...

Também a tua inocência conduzimos
Com a flauta forte ou doce da poesia
Numa estrada mais real... da fantasia...

Serenidade (de Alma Welt)




                                       Serenidade- Lito de Guilherme de Faria, 1979


Serenidade (de Alma Welt)

Serenidade... Báh, quanto te busquei!
Pois que não eras minha de nascença
Nem mesmo por direito te herdarei,
Que dos Welt a inquietude é a doença...

Provei o duro exílio após flagrante
De tentação debaixo de uma árvore,
E a saga do casal jovem amante
Só não se completou no frio mármore.

Depois a longa espera do eleito
Nas minhas noites solitárias a tecer
E a destecer de dia o que foi feito.

Também a luta interna, de família,
Para o meu triste vinhedo não perder,
Rubro ocaso a sangrar nesta coxilha
...
 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Síndrome de Deus (de Alma Welt)





                             O Pranto de Alma Welt, óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2004
 
 
Síndrome de Deus (de Alma Welt)

Poetas se criam e até se matam
Pela complexa “síndrome de Deus”
Que os acomete, e não se fartam
Nem na hora do epílogo ou adeus.

Há mesmo quem os queira abatidos
Com dois tiros com aquela carabina
Dos desenhos animados divertidos
Ou somente afogados numa tina...

Mas eu que fui criada por um deles
Que apaixonou-se por mim, eu percebi,
Tanto lhe implorei: não me reveles!

Pois por mim não terão mais reverência
Se acharem que por isso não sofri,
Quando a própria dor é minha essência...

Eu, Heterônimo (de Alma Welt)


                                                                   Foto de Yaroslav Datta


Eu, Heterônimo (de Alma Welt) 

Poeta que se sabe um heterônimo,
Toda minha existência é no papel,
Orgulhosa de não ser um pseudônimo
O meu próprio nome é meu troféu.

Pois vivo, fui criada ou me criei
Não está claro e seguro nem pra mim
Que ao longo dos versos me forjei
Como também nos versos tive fim.

Pois por eles, onde soube minha saga,
No velório descrevi meu corpo nu
E minha própria mão meu rosto afaga...

Mas a morte que encontrei sem o alfanje,
Tenho receio de contar em tom mais cru
Pois ao próprio criador ela constrange

In Verso Veritas (de Alma Welt

 
 Capa do romance A Herança, de Alma Welt
 - retrato da poetisa pintado por Guilherme de Faria

In Verso Veritas (de Alma Welt)

O meu reservatório de memórias
É rico demais porque as amo
E não as distingo das estórias
Que crio às dezenas cada ano.


Pois tudo o que penso é vivido,
Ação e pensamento são o mesmo
E no nível da poesia faz sentido
Como feijoada com torresmo.

Viva pelos versos me descubro
Tal como o ferreiro malha firme
E molda o duro ferro, mas ao rubro.

Assim também me forjo e ruiva fico
Pela inspiração que ao verso imprime
Minha face final que reivindico...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

De sombras e candeias (de Alma Welt)





                                   Menina cantando -de Georges de La Tour 1593-1652

De sombras e candeias (de Alma Welt)

No casarão em noites de tormenta
Cai a força, acendemos as candeias,
A sensação de aconchego nos aumenta
E nos transporta àquelas velhas ceias

Aqui na estância no tempo dos avós
E nós, guris, ainda mais felizes,
Pois que a aventura vinha a nós
Com mistérios de sombras sem matizes...

Rodo, eu e Lucia... irmãs e irmão
A correr, com a Mutti em polvorosa,
Três ou quatro a escorregar no corrimão.

E agora quando acende-se uma vela,
Ainda hoje me ponho, sim, chorosa
Pelo tanto que a vida me foi bela...

 Georges de La Tour - A descoberta...

Advertência (de Alma Welt)


 
                           Alma Welt- pinturas de Guilherme de Faria
 
 
Advertência (de Alma Welt)

Se vieres pela estrada da coxilha
No rumo e sentido do oriente
Verás o casarão como uma ilha
E a varanda, mirante do poente.

E talvez me avistes já de longe
Com meu longo vestido até o pé,
Não como visão que o sono esponje
Mas como uma donzela de outra fé

Às vezes confundida com uma prenda
Por quem reparar só no detalhe
Destas mangas com punhos de renda,

Que advirto ao expor o meu carisma:
Do tempo dos Farrapos e seu cisma
Sou delirante antiga, com este talhe...

 

O Aval (de Alma Welt)





                                            Veronica Veronese - Dante Gabriel Rossetti

 O Aval (de Alma Welt)

Noite e dia em sintonia com meu anjo
Por escrever o que na minha alma está,
Meu estro e meu tempo não esbanjo,
Que acredito que lamentar não vá...

Sentada na varanda ou a vagar
Pelo jardim em torno e na coxilha
Vivo aqui em constante maravilha
Que não deixo por menos meu passar

Por esta vida de poeta, sim, maior
Que me coube por certo em privilégio
Já que podia ser sofrido ou só pior...

E agradecer a Deus e ao anjo seu aval
Não pensem que é só meu sortilégio
Pra na “cozinha” não perder a mão do sal...
 

Scherzo (de Alma Welt)

                                    Scherzo for Brass Instruments by Walter Spies, Oil on Board, 1939


Scherzo (de Alma Welt)

As belas horas passadas em folguedo

Com estas lindas crianças que me cercam,
São o que de melhor vivo, sem medo
Daquelas que perdidas, clamam, imprecam.

Pois à Natureza é grato o riso,
A dinâmica dos pulos, energia,
Exclamações ingênuas de improviso
Entre gritos e palmas de alegria...

E quisera que a vida sempre fosse
Tais momentos de jogos e scherzo
Antes que triste adágio se me aposse

Em lágrimas de beleza comovida,
Que é a outra máscara a que rezo,
Para que a morte seja bela como a vida...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Rumo à Luz (de Alma Welt)


                                    Paradiso, canto 31, Divina Comédia, Dante Alighieri, gravura de Gustave Doré.
 
Rumo à Luz (de Alma Welt)

Para se viver melhor e ser feliz
É preciso aceitar a incoerência
Ou a falta de sentido por um triz
Que a vida apresenta com freqüência.

Que digo? Nada faz muito sentido
Sob determinado ponto de visão
Mais lúcido e até mais divertido,
Nossa perplexidade e confusão...

Mas se adicionarmos os afetos,
Nem digo o amor, que é soberano,
As coisas revelam seus trajetos

Rumo à luz que tudo e todos chama
E que é o mais profundo arcano,
Tão claro que a luz do sol empana...
 

Códice (de Alma Welt)

Página de um códice de Leonardo Da Vinci
 
Códice (de Alma Welt)

Sinto o tempo por meus dedos escorrer,
Que nada posso fazer para detê-lo
Senão na memória me rever

E correr para trás, a contrapelo,

Até chegar ali no aconchego
Desse círculo dos dias encantados
Em que tudo era amor e não apego,
Que é o afeto dos desesperados...

Então viver, eu me sinto, e reviver
Mil vezes a saga que me coube,
Que nada do que fui pude esquecer...

Por isso num descomunal diário,
Como códice, leio-me ao contrário
Por ter o fim comum que eu sempre soube...

sábado, 10 de novembro de 2012

Perto da vida (Alma Welt)


                                                   Perfil de Alma Welt, 2001- desenho de Guilherme de Faria,
 
Perto da vida (Alma Welt)

O soneto me segue e me revela
Desde quando guria na coxilha
Descobri Camões, Will, e a Florbela *
Que bate-me na anca e na virilha. *

E por certo não poderia mais viver
Sem rimar e versejar o tempo inteiro
Como amar e respirar até morrer
E não mais precisar tinta nem tinteiro.

E se me perguntam se estou louca,
Coisa que ocorre a algum pachola
Nunca aos gaudérios de voz rouca

Que cantam com o fole ou a viola,
Eu respondo que estou perto da vida
Demais para avistar outra saída...

______________________________________
Nota
*Camões, Will e a Florbela- Will é William Shakespeare, Florbela Espanca. Alma cita os três grandes sonetistas que a inspiraram, e graciosamente imbute o sobrenome da poetisa na expressão "bate-me na anca"...
 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A Nave (de Alma Welt)


                                         Flaming June - Lord Frederic Leighton- Museu Nacional de Porto Rico


A Nave (de Alma Welt)

Nunca mais presenciar nenhum poente,
Da varanda, na cadeira de balanço,
Os últimos fulgores do ocidente,
Descendo no horizonte pra descanso...

É triste demais pensar assim,
A menos que morrer seja essa vela,
Da nave dourada do meu fim,
Do meu leito avistada, da janela...

Mas algo em mim descrê e desespera,
Uma parte, talvez mais desconhecida,
Que teme, luta, rebela-se e duvida,

E que está na raiz da minha poesia
Por mais que o sonhar seja, como era,
A nave que me leva
e extasia...

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os amigos voltam (de Alma Welt)



Os amigos - Peder Severyn

Os amigos voltam (de Alma Welt)

Os amigos, quase todos reunidos,
Congreguei-os depois de tantos anos
Dispersos que estavam e entretidos
Com os seus sonhos, cartadas e arcanos,

Cada um só à procura de seu rosto
Quando já me parecia conhecê-los
E nada lhes faltava pro meu gosto,
Que não lhes fazia falta novos pelos...

Então em meio aos risos e abraços
Em seguida nos brindes com os bons vinhos
Lhes noto nas feições os novos traços.

E procuro aquele toque de candura
Disfarçado nas palavras e risinhos
Onde o cinismo agora se pendura...
 

domingo, 4 de novembro de 2012

Valsa lenta (de Alma Welt)



 
Valsa lenta (de Alma Welt)

Do casarão outrora iluminado,
Me perdoe, senhor, luz tão mortiça.
Esta triste penumbra é resultado
De uma espera longa e submissa...

Meu amor que há tempos foi levado
Ao baile que há atrás do horizonte,
Deixou-me este andamento sincopado.
Esta noite, no serão, talvez lhe conte...

Por enquanto, senhor, releve um pouco
Esta hospitalidade desatenta
E o meu aparente ouvido mouco.

Tornei-me distraída, me desculpe,
E os peões me seguem a valsa lenta,
Por isso, lhe peço, não os culpe...

sábado, 3 de novembro de 2012

A Torre (de Alma Welt)


 
A Torre (de Alma Welt)

É tão belo me sentir entre os Poetas
Cujo estro admirei desde guria,
E entre as poetisas mais seletas
Formando um ramalhete da Poesia.
 
“Não será cedo?” alguém pode perguntar
“Para juntar-te a ti mesma sem consulta
Ao público leitor, e alardear
Participares de plêiade tão culta?”

Sim e não, pois escrevi com sangue,
E tornei-me torre auto-erigida
Embora exausta e quase exangue...

E se a mim mesma alto me coloco
É para até o fim manter-me o foco,
Morrer mirando longe a própria Vida...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Os mortos não são fúteis (de Alma Welt)




 
Os mortos não são fúteis (de Alma Welt) 

Os mortos não são fúteis, não, jamais!
Leviandade é coisa que descartam
Malgrado alguns inquietos e sem paz
Que parece que da vida não se fartam.

Esses, de nítidos dois tipos, a saber:
Os que nos perseguem com suas queixas
Com as quais temos mesmo algo a haver
E os que deixam docemente doze deixas

Que são as aquelas badaladas dos relógios,
Aqueles negros com uns pêndulos dourados
Que sempre acreditei mal-assombrados...

E pra encerrar dos mortos seus relatos,
Eis porque fazemos necrológios
Falseando a feição forte dos fatos...

Os mortos murmuram (de Alma Welt)


 
Os mortos murmuram (de Alma Welt)

Os mortos murmuram sob os mármores...
Alguns até gritam e não ouvimos;
Outros caminham sob as árvores
E não os vemos nem sentimos...

 Mas se estás atento ao teu destino
Vês que já estás no meio deles
E até podes ouvir teu próprio sino
Que já dobra por ti e não por eles...

Não deplores, pois, os teus amados.
Eles apenas se foram pouco antes
Porque teus medrosos passos foram tardos.

Somos para a Morte, é o que dizem...
Importa é que eu ouça o que tu cantes,
Enquanto as doces brisas nos alisem...
 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Meu trem fantasma (de Alma Welt)


 
Meu trem fantasma (de Alma Welt)

Meu trem eterno é bastante pontual
Pois chega somente quando o espero
E os outros não o vêem como real
E me dizem que sou louca quando quero.

 
Sim, nisso sou forçada a concordar,
O real nunca foi meu território
E se ouço o velho trem resfolegar
Fico com este olhar quase simplório.

E na plataforma dos meus sonhos
Bato palmas como quando era guria
E os meus encantamentos mais bisonhos.

Então leva-me contigo, trem fantasma
No teu branco vapor que apita e chia,
Em que meu verdadeiro ser se plasma...

Odisséia nerd (de Alma Welt)


Odisseu e as sereias - James Draper -1863/1920)
 
 
Odisséia nerd (de Alma Welt)

Quem chega pela estrada da coxilha
Avista ao longe o nosso casarão
E na varanda como praia de uma ilha,
A mim, a perscrutar a imensidão


Na minha eterna espera de Odisseu-
Rodo, jovem jogador pelos cassinos,
Que se chegar será com grito de pneu
E não com o bater lento de sinos...

Mas ao mastro no meio do arrecife
Daquelas belas Marias-pano-verde,
Vai Odisseu, chegado nas sereias,

Enquanto eu, sem mais fichas nem cacife,
No tear-computador, como uma nerd,
Eternamente a desfiar as minha teias...

A Leste do Éden (de Alma Welt)


 
A Leste do Éden (de Alma Welt) 

A guria que fui me é tão sagrada
Que olhando-a sempre me enterneço.
Mas deploro como fui atormentada
Por uma culpa que sei que não mereço...

Por quê, meu Deus, escandalizam os guris
Sob a mais pura macieira do pomar
Como se acaso houvessem feito coisas vis
Quando estavam tão somente a brincar?

Falta aos adultos o verdadeiro humor,
É isso que lhes falta, me perdoem,
Se simplesmente não lhes faltar amor.

Quanto a mim, para abrandar a abantesma
Dos gritos que na alma ainda me doem,
Na poesia vou-me ao leste de mim mesma...

Sob o véu (de Alma Welt)


 perfil de Alma Welt- desenho de Guilhermee de Faria 2001
 
Sob o véu (de Alma Welt)

Vou entre a tristeza e a alegria
Talvez demais num oscilar sem fim,
Mas quisera explodir-me na Poesia
Como uma mulher-bomba de mim.


Báh! Como recordo minhas andanças
Por aí antes do tempo das tormentas
Quando minhas jornadas eram mansas
Com seu aconchego de horas lentas...

Como eu era bela, Deus do céu!
E agora já enxergo as minhas olheiras
Quando me atrevo a erguer o véu

Da angústia que me toma de repente
Sob a capa de lendas corriqueiras,
Eu mesma antes do pomo e da serpente...