segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Revisitando o cão e o lobo (de Alma Welt)

É quase tudo tão triste nesta vida,
Já que até o amor nos causa dor
E a beleza é como uma ferida
Causada pelo espinho à própria flor.

Eu sei que o antigo rimar amor e dor
É coisa de poesia meio ingrata,
Mas nem quero mais versos compor,
Estou bem mais pra dizer tudo na lata.

A verdade é que ninguém mais diz
Que é de lágrimas nosso belo Vale
E de vôos baixos, sorrateiros, de perdiz.

Mas como loba ia fazer uma besteira,
É bem melhor, portanto, que eu fale
Que não troco a liberdade por coleira... *
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31/08/2020

Nota
*...não troco a liberdade por coleira - alusão à fabula O cão e o lobo, de La Fontaine.

As rosas que falam (de Alma Welt)

É no jardim onde mais tenho saudade
Da avó Frida, podando suas rosas
Para crescerem mais e mais vistosas
Porque assim elas falam, na verdade.

A beleza das rosas é uma fala
E não roubam o perfume de ninguém,
Mas a poesia do Cartola ainda me cala
E me falta quem devia vir também...

Assim meus olhos têm esse ar tristonho
E faz tempo que meus sonhos eu exibo
Para alguém sonhar comigo, eu suponho.

E volto ao jardim sem mais certeza
Porque já não tem ninguém da minha tribo
E minha beleza é uma flor na correnteza...

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31/08/2020




O Solar do Deus Dará (de Alma Welt)

Sou antiga mas escrevo num teclado
Estas bem traçadas linhas, bem rimadas.
Sou a derradeira prenda lírica do prado,
Sem trovas em peleias charqueadas.

Um ou outro gaúcho ainda me escuta
E me chama para declamar sonetos
Enquanto as chamas lambem nos espetos
Carnes gordas em churrascos de disputa.

Eu, patética como a última guará,
A quem cobiçam somente o pelo ruivo
Declamo meus sonetos como um uivo.

Depois chorando eu corro pela trilha
Que eu mesma abri de andar pela coxilha,
Para voltar ao meu solar do "Deus dará"...

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31/08/2020

A Loba-Guará (de Alma Welt)

Vocês podem imaginar a solidão
De uma sonetista em pleno pampa?
Mais sozinha e deslocada que um cão
Que caiu do caminhão subindo a rampa.

Ó Alma, essa metáfora é batida!
Não é digna do teu belo lirismo...
Mas do cãozinho a imagem tão sofrida
Na verdade, no meu caso é otimismo.

Estou mais para uma loba na coxilha
Contra o disco da lua em longo uivo
E como último guará, uma andarilha

De longas pernas e o pelo muito ruivo,
Mas tímida, em perigo de extinção
Como os poetas puros sempre estão...

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31/08/2020

domingo, 30 de agosto de 2020

Conselhos para mim mesma (de Alma Welt)

Que meu único artifício seja a rima
E o ritmo cantante, também, claro,
Se com a boa métrica combina,
Mas de truques, por aí, eu logo paro.

Não serei hermética ou obscura:
Não turvar a minha água por profunda *
É um preceito bom que sempre dura,
Embora haja gente que o confunda...

Mas é preciso ter muito o que dizer
Como se me estivesse pela goela
E não fosse possível mais conter.

Mas, veja, a experiência é o que conta, *
Só ela, os sentimentos, sim, revela,
E faz com que a poesia nasça pronta...

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30/08/2020
Notas
*Não turvar a minha água por profunda - alusão à famosa frase de Nietzsche: "Há poetas que turvam suas águas para parecerem profundas."

*Mas, veja, a experiência é o que conta - alusão a um conselho do grande poeta alemão Rainer Maria Rilke, nas suas "Cartas a Um Jovem Poeta", num certo parágrafo que começa assim: "Os versos não são sentimentos, os versos são experiências..."

A Louca do Soneto (de Alma Welt)

Meu amor pelo soneto é insuspeito
Pois meus leitores a cada dia somem,
Quero dizer: o quorum é rarefeito,
Catorze versos é demais, e eles dormem.

Então por que os escreve, Alma louca?
E eu respondo que é pura vocação:
Os de Shakespeare uma centena são,
E os trezentos de Camões é coisa pouca.

Petrarca, Dante, Rilke, até Vinicius,
Este mais chegado em outros vícios
Continua eterno enquanto dura...

Mas eu, que já os conto em cinco mil,
O faço só para manter a alma pura,
Que a vela queima enquanto houver pavio...
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30/08/2020

Conselhos de meu pai (de Alma Welt)

"Teu limite é o outro", assim dizia
Meu pai, um verdadeiro Salomão.
"A tua liberdade é a poesia,
Não a queiras muito além da solidão."

A amizade é, sabemos, outro reino,
Com regras quase como um pacto,
Mas a liberdade nela exige treino
Para enxergar um pouco além do fato.

"Complacente, sim, até um limite,
Mas não serás conivente com maldade
Se a justiça ela muito bem imite...

Se teu amigo passar além do ponto
Dos tempos do "contigo eu sempre conto",
Não caminharás com ele por saudade"...

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30/08/2020


Advices from my father (from Alma Welt)

(translation to english with rimes by Guilherme de Faria)

"Your limit is the other", so I guess,
Said my father, a true Solomon.
Poetry, thist is your freedom
Not too far beyond loneliness "

"Friendship is, we know, another kingdom,
With rules almost like a pact,
And requires training its freedom
To see a little beyond the fact.

Yes, be compliant, up to a limit,
But not be conniving with evil too
That imitates the freedom you meet.

If your friend goes beyond that no returning,
From the times of "I always count on you",
You will not walk with him out of longing ".

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Depois do Intermezzo (de Alma Welt)

Estão longe, nestes tempos, os amigos,
Voltados, de repente, aos seus umbigos.
E eu solitária por essência e vocação,
Deveria por à larga o coração...

Mas sinto saudades... que sei eu?
Daquelas diferenças de critério
E de tudo que entre nós nunca bateu,
Que faz da amizade esse mistério...

Dizer que a gente brigava vou negar:
Não mais que tolerância amigos são,
Sem esquecer de puro mel adicionar.

E me pergunto como a gente vai estar,
Se voltaremos de novo do saguão,
Quando a cortina do intermezzo levantar...

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28/08/2020

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A Senda (de Alma Welt)

Num mundo escolhido de beleza
Tão somente aceitar meu movimento
Para assim construir meu monumento
Não é coisa de respeito, com certeza...

Mas, reparem, não é isso o que eu faço:
Pois andando num caminho pedregoso
Dou topadas e as transformo em gozo.
Quase como se não fosse meu mau passo.

Caminhar numa senda num penedo
Meu caminho escolhido, não de pronto
Mas de flores orlado é meu segredo...

E se a queda e o fracasso são as favas
Contadas, eu de antemão as conto
Se não, tu leitor, nem me encontravas...

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27/08/2020




Nonsense (de Alma Welt)

"Sejamos céleres", disse o D'Artagnan
Para outro mosqueteiro sem mosquete;
"Gosto de "céleres" , "ótimo" disse o fã,
E cavalgou, aquele pobre diabrete...

Quanto a mim que gosto de nonsense
Ri no cinema quando quase ninguém riu
E mais ria se a gente ainda pense
Que eram quatro os três que o mundo viu.

Assim pouca coisa mesmo faz sentido
Mas nem por isso é preciso lamentar
Mas fazer da má notícia um desmentido.

Aquilo que fecha e não se encaixa,
Estar por dentro e "pensar fora da caixa",
O humor é o inesperado... a se esperar.

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27/08/2020

A língua (de Alma Welt)

O mundo é complicado, o pai dizia,
Se a explicação causasse espanto,
Achando que assim me pouparia
De um grande e precoce desencanto.

Na verdade eu queria saber tudo
Como se o saber assim fosse possível
Num mundo que talvez começou mudo
E logo veio a algaravia incrível...

Nesta Babel aquela torre infame
Jamais cessou de subir e de ruir
Como uma falsa ópera de arame.

Todavia a minha língua bem domino
Como se nela eu pudesse construir
O meu próprio labirinto do rei Mino.

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27/08/2020

O Ensaio (de Alma Welt)

A vida é triste, me dizia a amiga
Talvez querendo, à toa, me abater...
Inveja, pretensão, ciúme e intriga,
Eis o mundo em que iremos nós viver.

Mas eu botava a mão em sua face
E a olhava com carinho também triste,
Apenas num segundo nesse impasse
Porque este coração jamais desiste.

E sacudindo logo o mau encanto
Me veria, ela, então resplandecer
No meu quarto todo, e ela num canto.

E eu me punha a girar como um pião.
Rindo muito e sem sequer desfalecer,
Eis que saudava meu futuro turbilhão...

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27/08/2020

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Sacudindo a cabeleira (de Alma Welt)

Inimiga insidiosa, eu a combato,
A sutil melancolia dentro em mim,
Que ameaça crescer como esse mato
Que observo avançar em meu jardim,

Ervas daninhas de foscos pensamentos
Sombrios, que ameaçam a minha mente
Frágil diante de adversos elementos,
Nau em busca de um naufrágio dissolvente.

Eis que sacudo a minha rubra cabeleira*
Como aquela de um inusitado frevo
Na voz grave de um cantador famoso,*

E então me ponho em pé nesta soleira
Mirando meu pampa em novo enlevo
Apesar do vento frio como esposo...*
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25/08/2020

Notas
Eis que sacudo a minha rubra cabeleira - alusão ao verso "É quando o Tempo sacode a cabeleira/ a trança toda vermelha"...do notável e surrealista Frevo Mulher, dos anos 70, do compositor e cantor nordestino de voz grave, Zé Ramalho.

*Apesar do vento frio como esposo - o "minuano", vento frio que sopra no pampa no inverno.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Penélope de mim (de Alma Welt)

Exerço em mim a minha forte resistência
Contra a tristeza só enquanto feia.
Minha arma de verdade é uma teia
De Aracne de espera e paciência...

Penélope de mim vou assim tecendo
E desfiando nas noites cada ponto
Embora sem um Ulisses combatendo
Longe por mim conforme o belo conto.

Pra morrendo não voltar somente ao pó,
Meus sonetos são os pontos desta teia,
Que sendo astuta não dou ponto sem nó.

Aliada nesta luta inglória e bela
Tenho uma, percebida a quem me leia:
A beleza interior que me revela...
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21/08/2020

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O Girassol (de Alma Welt)

Tanto à Natureza estou ligada
Que de minha alma o clima é dono
E sinto como que seu abandono
Quando a manhã está assim nublada.

E me encolho debaixo do meu domo,
Esta bolha que inventei pra não morrer
Porque me vem uma tristeza de viver
Da qual mal sobrevivo, e não sei como.

És sensível demais, me disse alguém
Pois ninguém como flor deve ser frágil
E essa bolha, de tão fina, nem convém.

Mas por isso enquanto flor sou girassol
Que para o encarar me ponho ágil
Pois eu vivo na esperança do meu sol...

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20/08/2020

Não poderia (de Alma Welt)

Diante do esboroar-se deste mundo
Minh' alma vive à beira de um enfarte,
Embora bem pra lá de Passo Fundo,
Ligada ainda estou na Grande Arte.

E afirmo que eu viver não poderia
Se não houvessem Capelas Sistinas
Ou se Museus do Louvre não havia
E se no Prado faltassem as Meninas.

Não poderia viver sem Monas Lisas
Ou sem do Rafael suas Madonas
E seus grandes afrescos que são missas,

Não poderia viver sem Notre Dames
Embora esteja longe, em outras zonas,
E viva esta vidinha em rame-rames...

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20/08/2020

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Narcisa (de Alma Welt)

Tão cercada de mim mesma, refletida,
De Narciso a feminina encarnação,
Exemplo vivo de "terra prometida"
Numa imagem do meu próprio coração,

Assim seria eu não fosse artista
E portanto feita só pra ser exemplo
E ao outro refletir sua própria vista
Espelhos frente a frente como templo.

Não me acusem meramente de vaidade
Que dessa me absolvo a cada verso
Que devolvo de minh'alma ao universo.

No final, humilde indo ao meu repouso
Esvaziada de mim, sem ansiedade,
No leito, não do lago, a face pouso.

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19/08/2020

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Depois do pesadelo (de Alma Welt)

Sonhei com a cidade esvaziada
Onde só a cachorrada perambula
E onde havia restos de queimada
Alguns roendo os ossos de uma mula.

Eu estava tão sozinha vendo tudo,
Perguntando ao céu se Deus existe,
Num cenário estranho surdo e mudo
De um filme em preto e branco muito triste.

Então olhei o céu com novo apelo
Para pedir ao Senhor que me acordasse
Para um mundo que melhor O espelhasse.

Então eu acordei do pesadelo
Indo à janela que dá para o jardim
E vi as flores que Deus fez para mim...

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17/08/2020

As Três Graças (de Alma Welt)

Gostava de jogar o pique-esconde
E até hoje o faço em meu jardim
Com as crianças que são filhas de conde,
Inclusive com aquela que há em mim.

E depois logo brincar a cabra-cega
Que me faz pensar na minha vida
Tateando no escuro, decidida
A pegar um amor que então se entrega.

Mas com o jardim vazio nas manhãs
Eu gostava de formar com minhas irmãs
Todas nuínhas as Três Graças do Mito.

Até que fui flagrada em pose plena
Por um olhar intruso mas bendito
Que do trio me desfez sem muita pena...

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17/08/2020

O Baile das Cartas (de Alma Welt)

Cercados de fantasmas do passado,
Um quase palpável e ainda belo,
Carregamos essa corte num castelo
De cartas, quando não desmantelado.

Mas no meio dos naipes coloridos
Há sempre um coringa meio escuso
Que temos entre achados e perdidos
Ou fora do baralho ainda em uso.

Por isso jogo o meu truco popular *
Que exclui os malditos saltimbancos *
Que expõem nosso fiasco em pleno ar.

Sou rainha de uma corte meio inglória
Pois nas copas os valetes vão aos trancos
Neste baile final da minha história...
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17/08/2020
Nota
*Por isso jogo o meu truco popular
Que exclui os malditos saltimbancos - No pampa do Rio Grande do Sul, terra da Alma Welt, os peões tiram fora a carta do coringa para jogar o truco.




Nova História do Patinho Feio (de Alma Welt)

Que lindos olhos têm nossos amores!
Nós os vestimos com nossos padrões,
Sempre lhes atribuindo nossas cores,
Quase sempre de nossas invenções.

Mas é então que "quebramos nossa cara"
Como diz a plebe rude e ignara
Quando o outro sacode o nosso jugo
Fazendo, inesperado, aquele expurgo

Quando grita: "Não sou o que tu pensas!
Teu doce olhar contém um certo medo,
Me queres moldar às tuas expensas,

E só me queres de terno e de gravata,
Nos atribuis por certo um grande enredo,
Nunca fui filho de cisne, mas de pata..."

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17/08/2020

A História recontada (de Alma Welt)

Na verdade fomos dados uns aos outros.
Ninguém já nasceu sozinho neste mundo,
Nem pintos, nem bezerros, nem os potros,
Nem mesmo se quiserem ir mais fundo.

Somos entregues nos braços de alguém,
Salvo apenas acidentes de percurso,
Exceções que ser lembradas nem convém
Já que tudo faz parte de um concurso.

Es solitário? Ó tolo, com restos de poeira!
"Não é nada bom que o homem viva só"
Disse o bom Deus nos moldando de seu pó.

E arrancando uma costela fez o esposo
Para uma mais fecunda companheira,
Esposa e mãe até com algum gozo...
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17/08/2020

ORAÇÃO NUA (de Alma Welt)

Lembro sempre estes dois olhos que Deus deu
Além dos quatro ou mais outros sentidos
Os quais, conforme o que Seu filho prometeu,
Descartaremos junto com nossos vestidos.

Aliás, o corpo todo, tão pesado,
Será deixado para trás sem mais saudades
Embora ainda às vezes adornado
Destes seios ainda cheios de vontades.

Se for logo, descartar não será fácil
Abandonar esta silhueta grácil,
Lindas coxas com a fenda meio rosa.

Senhor Deus não me leves pois tão cedo
Porque desta roupa ainda estou prosa,
Da nudez dada, ainda nenhum medo...

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17/08/2020

domingo, 16 de agosto de 2020

O Grande Jogo de Dados (de Alma Welt)

Como bonitos são os nossos passos!
Quão belos são os nossos movimentos!
Não precisamos ter réguas nem compassos,
Somos projetos de nossos monumentos.

Não é nem preciso ser malabarista,
Ainda menos uns hábeis bailarinos
Pra que coreografia plena exista
Em nossos fins, trajetórias e destinos.

Deus nos coloca num imenso tabuleiro
E joga com a gente, assim, com dados,
Coisa que um físico nega por inteiro. *

Mas o que vale são nossos movimentos,
Inquietos saltimbancos sobre os dados,
Os grandes cubos que rolam muito lentos...

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16/08/2020

Nota
*Coisa que um físico nega por inteiro - alusão à famosa frase de Einstein: "Deus não joga dados com o Universo".

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Não Quero (de Alma Welt)

Às vezes fico triste de verdade,
Quase morro, e não de deprimida
Mas só de pensar em outra vida
Não na minha terra e esta herdade.

Não, não quero ir pro céu, que Deus me guarde.
Não que eu tenha algo contra os anjos,
Que tocam harpas pra não fazer alarde.
Já pensou se fossem pífaros e banjos?

Pro Inferno também não, nem Purgatório,
Que me lembra um remédio pra criança
Cujo nome é por si um vomitório.

Deixai-me Deus ficar aqui quietinha
No meu pampa e nesta velha estância.
Nunca quis nada além do que eu já tinha...

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10/08/2020

sábado, 8 de agosto de 2020

A maçã do amor (de Alma Welt)

Não se dissiparam as minhas dúvidas,
Aquelas desde o início, em tenra idade,
Pois que na verdade, nada estúpidas,
São legítimas da nossa humanidade.

Por quê a morte existe, exatamente?
Por quê a espantosa fedentina?
Por quê nos transformamos na vermina,
Depois pálido espantalho sorridente?

Por que parir em dor como o castigo
Por um pequeno roubo? Faz favor!
Meu vizinho não fez isso comigo.

Era pequena e invadi o seu pomar
E lhe roubei o que chamei "maçã do amor",
E ele, rindo, convidou-me pra lanchar...

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08/08/2020

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A Jovem Pária (de Alma Welt)

Nesta minha vidinha solitária,
Despercebida dos grandes desta terra,
Escrevo meus sonetos como pária
Ou como quem a si mesma se desterra.

Pois tenho sim algo em mim da hindu jovem
De uma ária de Delibes que em mim resta
Com aquelas campainhas que comovem
Para afastar meu próprio tigre na floresta...

Eis um aspecto simbólico flagrante,
No operístico resumo que me ocorre,
Se tal comparação não for pedante...

Mas que posso dizer mais de mim mesma
Se afasto da fera a abantesma
Com sininhos de meus versos, e ela corre?

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07/08/2020

https://youtu.be/gMO0KFL3E58

Ou va la jeune Indoue, Filles des Parias, Quand la lune se joue, Dans le grand mimosas? Elle court sur la mousse Et ne se souvient pas Que partout on repousse L'enfant des parias; Le long des lauriers roses, Revant de douce choses, Ah! Elle passe sans bruit Et riant a la nuit. Labas dans la foret plus sombre, Quel est ce voyageur perdu? Autour de lui Des yeux brillent dans l'ombre, Il marche encore au hasard, e perdu! Les fauves rugissent de joie, Ils vont se jeter sur leur proie, Le jeune fille accourt Et brave leur fureurs: Elle a dans sa main la baguette ou tinte la clochette des charmeurs L'etranger la regarde, Elle reste eblouie. Il est plus beau que les Rajahs! Il rougira, s'il sait qu'il doit La vie a la fille des Parias. Mais lui, l'endormant dans un reve, Jusque dans le ciel il l'enleve, En lui disant: 'ta place et la!' C'etait Vishnu, fils de Brahma! Depuis ce jour au fond de bois, Le voyageur entend parfois Le bruit leger de la baguette Ou tinte la clochette des charmeurs!


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Nevermore * (de Alma Welt)

Nunca mais! disse o corvo, também digo.
Nunca mais! (repetirei a cada erro).
A própria vida consiste no perigo,
Vivemos num primordial desterro.

Há um lado sinistro incontornável
No nosso dia a dia pouco justo,
Sobrevivendo de modo confortável
Enquanto pousa o corvo em nosso busto.

Bah! Já estás desconsolada outra vez!
Apaga tudo, acorda! É um novo ano!
Estás só: não há corvo nenhum...

Mas repito: Nunca mais! (a cada mês)
Pois este é o fatal destino humano:
Repetir nossos pecados um por um...

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06/08/2020


Nota
*Nevermore - respondia o corvo do poema The Raven, de Edgar Allan Poe, pousado num busto de Palas Atena.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Ariadne em Naxos (de Alma Welt)

Quantas vezes só em mim mesma me perco
E me vejo em labirintos sem respostas
Prevendo o Minotauro pelo esterco
Quer dizer, francamente: pelas bostas...

Báh! Psique de poeta em quarentena
Frágil como se cortado o esperto fio *
Como a doce Ariadne, tão serena,
Abandonada no leito já vazio. *

Esperando a Alegria que vier *
Nem que seja com os truques do improviso
Para aquele vão consolo que se quer, *

Na Naxos sem nexo em que me encontro
Meu herói de mim partiu sem dar aviso, *
E ele mesmo era meu temido monstro...

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05/08/2020


Notas
*Frágil como se cortado o esperto fio -
referencia ao truque do fio de Ariadne princesa filha do rei MInos, que atando a ponta do novelo na cintura do herói ateniense Teseu, por quem se apaixonou, pode este entrar até o centro do Labirinto de Creta e matar o Minotauro, livrando assim Atenas do tributo anual a Creta dos catorze jovens (sete moças e sete rapazes virgens) para serem entregues ao monstro para serem devorados. Esse tributo era cobrado pelo rei Minos de Creta a Atenas porque seu filho, grande atleta, tendo vencido a Olimpíada causara inveja aos atletas atenienses que o assassinaram. O rei Minos para se vingar, então declarou guerra a Atenas e tendo vencido, para não destruí-la cobrava esse cruel tributo anual havia décadas. Até que o príncipe Teseu filho do rei Egeu, de Atenas, se dispôs a ir com a nova remessa de jovens ateniense afim de tentar matar o monstro de Creta e libertar seu povo daquele tributo.

*Abandonada no leito já vazio -
Após Teseu ter matado o Minotauro e conseguido dair do labirinto graças ao estratagena do fio de Ariadne, eles fugiram juntos de Creta e no caminha aportaram na Ila de Naxos uma Ilha anódina onde nada acontecia. Ali Teseu teve afinal tempo de possuir Aradne engravidando-a. No dia seguinte, despertando, Teseu reuniu seus homens e partiu. Quando já estava em alto mar percebeu que esquecera de Ariadne que deixara dormindo (!!!). Quis voltar mas as velas da naus gregas tinham velas quadradas e só se deslocavam a favor do vento, e portanto não podendo voltar abandonou Ariadne em Naxos e prosseguiu de volta para Atenas. Com esse percalço se esqueceu de trocar a vela negra da nave por branca como combinado com seu se pai se saísse vencedor. O rei Egeu que ficava no alto do promontório olhando o mar esperando por seu filho, avistou ao longe a vela negra e pensando seu filho morto atirou-se ao mar, que então recebeu o seu nome: Mar Egeu.

*Esperando a Alegria que vier -
O verso faz alusão à vinda de Dioniso, o deus do vinho, do riso e da alegria, que peregrinando à toa chegou na Ilha de Naxos e não sendo muito chegado em mulheres tinha inventado um falo de madeira, depois chamado de "consolo" com que possuiu a Ariadne (para deixá-a mais alegrinha?) ou o foi o contrário que aconteceu e foi a Ariadne que o possuiu?

Por incrível que pareça os gregos puseram mesmo tais coisas no Mito original, o que fez com que os psicólogos da Mito-análise junguiana no século XX, se empenhassem em analisar os conteúdos psico-sexuais desses estranhos detalhes (!!!)
Quanto ao soneto da Alma Welt, percebe-se que ela incorporou o Mito do Labirinto, do Minotauro e do Herói interno atrapalhado e esquivo, como forma de expressar com certo humor os seus próprios conflitos de um momento de quarentena interiorizada.
(Guilherme de Faria)

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Alma gaúcha (de Alma Welt)

Como escabreio ante às tristezas
Como a novilha num laço de peão
Em meu esforço de manter o coração
No verde lado do pasto das certezas...

Não suporto viver em seco pasto
E vivo só em tempo de invernada
Neste meu pampa solitário e vasto
Peregrinando em mim e sem manada.

Tão gaúcha que dá nojo hoje acordei
E quisera ser a prenda de outra era
Quando a lei da bombacha é que era lei.

E passe a cuia, guri, na mesma bomba
Deste chimarrão que ainda espera
Meu sorvo como arrulho de uma pomba...

.
04/08/2020

Volto ao Jardim (de Alma Welt)

Como era belo o meu velho jardim
Naquele tempo da minha avó Frida...
Eu a vejo ainda dentro em mim
Enquanto com a roseira a gente lida.

Ninguém está ao léu solto no vento
Pois carregamos os vetustos ancestrais
Que nos ancoram bem firmes no Tempo
Na sua baixa maré do Nunca Mais...

Agora o meu jardim está capenga
E por certo não possui o mesmo viço
E as rosas até fazem lenga-lenga,

Tão mudas quanto as rosas do Cartola,
Mas, roubado, o perfume deu sumiço,
E nos olhos meu sorriso pede esmola...

.
04/08/2020

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Poeta como Vidente* ( Alma Welt)O

Cumpro o meu triste destino de pensar
Muito mais do que viver a vida ativa,
Olhando o povo vivo se agitar
Na casual coreografia de quem viva.

Mas por que precisaria eu reviver
A experiência de escalar uma montanha
Ou num abismo por um fio louco descer
Ou num ring aprender como se apanha?

Assim persisto nesta minha lassidão
De poeta com este meu atroz talento
De antever o exato fim de toda ação...


Mas me diz uma voz n'algum momento:
Tens o falso pensamento dos covardes
Se aches que a Morte assim retardes...

.
03/08/2020
Nota
*O Poeta como Vidente - o titulo certamente alude ao famoso texto de Arthur Rimbaud, conhecido como a " Lettre du Voyant" (Carta do Vidente).

domingo, 2 de agosto de 2020

Soneto de Quarentena (de Alma Welt)

Pra navegar neste mar de incertezas
É preciso confiar em portulanos
Ou seguindo as antigas correntezas
Apostar nas velhas lendas e arcanos.

E no auge do torpor das calmarias
Até contar com canto de sereias
Como alívio para o tédio destes dias
Em que sequer calçamos nossas meias...

Quarenta dias no Dilúvio vai a Arca,
Quarenta anos os hebreus peregrinaram,
Quarentena nos persegue e é a marca.

Ó Senhor, dai-me fé ou mais constância
Porque a vida nada é que me contaram
E não flui como lembro em minha infância...

.
02/08/2020

Para a Última Dança (de Alma Welt)

Entre encanto e horror o olhar balança
E com ele meu coração confuso
Com dois passos diversos de uma dança
Como roca a rodar um duplo fuso.

Tudo tem seu contrário ou desmentido:
Descompasso de São Guido* e uma valsa 
(que ao fazer girar as almas já as alça),
E uma dança grotesca sem sentido.

Mas devo confessar o meu fascínio
Pelo timbre picaresco que permeia
Toda história humana desde o início.

Pro gran finale como quem se esmera
Já preparo meus ossos, volta e meia,
Para a Dança Macabra que me espera...

.
02/08/2020

Nota
*Descompasso de São Guido - na Idade Média as convulsões espasmódicas da epilepsia eram chamadas de "Dança de São Guido".

A Fonte (de Alma Welt)

O Sol é a fonte universal do Amor
Por Deus escolhido entre as estrelas,
E seu carinho é tanto, que ao se por
À noite, insones, nos permite vê-las.

Essa era toda ciência que eu sabia,
Cedo apreendida no colo do meu pai
(talvez com leve toque de poesia)
Que então disse: "É tudo. Agora vai!"

E eu então saí correndo pro quintal
Com aquela sensação de saber tudo
Sobre o Conhecimento Universal...

Uma vida desde então se me passou,
E depois de labor e muito estudo
Eis a ciência que em meu coração ficou...

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02/08/2020

sábado, 1 de agosto de 2020

As perguntas que não querem calar (de Alma Welt)

E se o fruto não era o da Razão
E estávamos perdidos no Pomar?
E se o nosso exílio foi em vão
A que bispo devemos reclamar?

E se a rota era errada desde o porto
E fomos dar além da Taprobana?
E se devíamos ainda estar no Horto
Vivendo da dieta de banana?

E se ainda não estamos prontos,
Por que estamos a pagar o mico
Do vexame de sermos só uns tontos?

Se tomamos da História o bonde errado
E não tínhamos culpa nem um tico
E o endereço apenas era ao lado?

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01/08/2020