segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Brinde ao Ano Novo (de Alma Welt)



Entrar no novo ano com os amigos
É o último luxo que ainda guardo.
Mas, vêm eles de tão longe, em perigos,
Cada poeta com seu fardão ou fardo?

Proust, Valéry, Rimbaud, Verlaine,
Baudelaire trazendo cruéis flores...
Temo é que com elas me envenene
E não possam me valer velhos amores.

E então peço a Hugo que me explique
O ananque do coração humano, *
Talvez só o que a vida nos complique...

Mas cobrarei de todos eles alegria
Erguendo nossas taças pelo ano
Do qual descobriremos a poesia!

____________________________

Nota
* O ananque do coração humano - Para entender este verso,
 leiam o prefácio original de Victor Hugo para o seu romance "Os Trabalhadores do Mar".

domingo, 30 de dezembro de 2012

Soneto à moda antiga (de Alma Welt)



                 Frigga, deusa tecelã da mitologia germânica (ilustração de autor desconhecido)

Soneto à moda antiga (de Alma Welt) 

Como éramos felizes e cientes,
Fruindo o amor e a juventude
Em dias memoráveis, inocentes,
Que tentei perpetuar enquanto pude!

Mas, cruéis, alguns quiseram apartar-nos
Ou foram simplesmente os ventos
Que em duas direções logram soprar-nos
Tornando desde então meus passos lentos

Pois que minha juventude desce a rampa
Dos precoces poetas decadentes
Que afinal não são a marca deste pampa...

E eis-me agora esta perdida castelã,
De sonetos doloridos e carentes
A tecer a interminável teia vã...
 

sábado, 29 de dezembro de 2012

Sobre sonhos e carência (de Alma Welt)



 
Sobre sonhos e carência (de Alma Welt)

Quisera que meus sonhos terminassem,
Mas são eles tão mais fortes do que eu!
Uns sonhos permanecem, outros nascem
E o tempo pra cumpri-los nunca deu...

 
Sempre desejei mais de uma vida
Para botar a minha vida em ordem...
A alma é preguiçosa e dividida,
E alguns erros o calcanhar me mordem.

Mas o que me trai é a indulgência
Que sempre tenho tido pra comigo,
E por certo um tanto de carência.

Querer tanto ser amada me perdeu...
Passo a vida mirando o meu umbigo,
Que bela é esta marquinha que Deus deu!

domingo, 16 de dezembro de 2012

Onde nasce a Poesia (de Alma Welt)

                                         Poente  - de Ferdinand Georg Waldmüller



Onde nasce a Poesia (de Alma Welt)

A poesia não nasce dos ventos,
Sinto-me obrigada a lhes dizer...
Nem pensem que de amáveis sentimentos,
Mas do profundo desespero de viver,

Mas do debater-se nos horrores
Dessa atroz consciência de morrer,
Em meio a tão inúteis estertores
Depois da falta de sentido do viver.

Mas também da imensa nostalgia
Da beleza deslumbrante dos poentes
Que arrastam o olhar que se extasia

Até os pagos ignotos do Divino
Que nos deixou aqui perplexos, carentes
A perseguir a luz, um toque, um sino...

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Iceberg (de Alma Welt)


 
O Iceberg (de Alma Welt)

Não sabemos muita coisa de nós mesmos
Pois a nossa mente é um iceberg
A vogar nos mares, nos extremos,
Sem que o nosso segredo nos entregue.

Com apenas a ponta a descoberto
Nosso mundo de sonho é bem maior
Embora o seu lastro fosse aberto
Pelo velho mergulhão desbravador,

Sigmund, o grande aventureiro
Que submerso ousou descer mais fundo
Como uma espécie rara de sendeiro

Quando só os poetas já desciam
Nesse plano oculto deste mundo,
De raízes que em poemas floresciam...
 

Jogos de Deus (de Alma Welt)


                                        Mefistófeles e Fausto- desenho de Delacroix

 Jogos de Deus (de Alma Welt) 

Tudo na nossa vida tem seu preço,
Dizem uns, embora alguém conteste.

Mas a alma imortal teve seu teste,
Não mudou, a pecadora, de endereço...

O dúbio Fausto foi salvo pelo gongo
Ou melhor: por um anjo adolescente.
Percebam que em detalhes não me alongo:
De Mefisto o olhar foi indecente...

Distraído, o demônio foi burlado
Por Deus que nem sempre joga limpo
Se de um amigo se trata do traslado.

Pois fraudar a sentença do Juízo
É coisa do colega lá do Olimpo,
Mas Deus precisa povoar o Paraíso...

A Dama na Água (de Alma Welt)



                          Fotograma do filme Lady in the Water, de M. Night Shyamalan

A Dama na Água (de Alma Welt) 

Muito pouco ao realismo me obriguei,
Que dele lancei mão como tempero,
Não tão real nem realista como o rei
E em doses controladas com esmero.

Também me reconheço solitária
Como loba longe da alcatéia
Uivando para a lua a minha ária
E nunca uma rainha de colméia.

Pouco me faltou pra ser maldita
E escapei por pouco dessa sina
Embora quatro vezes interdita.

E no final me vejo assombrada,
Como uma dama da água de piscina
Ruiva e branca, triste e desnudada...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Os Cronistas (de Alma Welt)


 
Os Cronistas (de Alma Welt)

Observamos a vida no detalhe
E nada nos escapa, ao nosso crivo.
Inventamos tudo aquilo que nos calhe
Para o quadro completar, louco mas vivo.
 
Não se trata de crítica, ao contrário,
Aceitamos quase tudo como é,
Mais como uma crônica ou diário
Em que o Cristo até abraça o Maomé.

Mas nunca pensem em nós como piegas,
Longe disso, somos puros, mas sagazes
Para jamais tatear aí às cegas...

E no final temos retrato acurado
Um pouco mais real em certas fases
Noutra, os olhos, dois do mesmo lado...

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Os aventureiros (de Alma Welt)



 
Os aventureiros (de Alma Welt)

Flertamos amiúde com a loucura,
Nós aventureiros do entorno,
Que pra muitos isso não tem cura,
Despenhamos num abismo sem retorno.



Para nós o horizonte é desafio,
Pois a vida será sempre além dos montes,
E a nossa passarela é mesmo um fio
Que jamais reconhecemos outras pontes.

Nós que amamos, não a dor, mas o perigo,
Queremos atingir pontos mais ermos,
Muito, muito além do nosso umbigo.

Pois não há prisão mais dura que o ego,
“Nosso eu”, contradição em termos,
Pois o rei caolho é o maior cego...

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Imagem tradicional alterada por Guilherme de Faria
 

A todo custo (de Alma Welt)


                                                   Detalhe do Juizo Final de Michelangelo na Capela Sistina.

A todo custo (de Alma Welt)

Como é fina e frágil a razão nossa!
Uma tênue fronteira do delírio;
Um passo em falso e eis a fossa,
Ou já temos entre as mãos aquele círio.

Agarramos a vida a todo custo
Mesmo que a tal loucura nos aposse
E mal durmamos num Leito de Procusto
Para acordar só com uma tosse

E não encarando o nosso medo
Como erva daninha que em nós medra
E que não nos deixará livres tão cedo...

Mas, queremos mesmo a vida como é:
Um pé sobre o outro numa pedra
E água suja subindo com a maré...
 

Alexandrinos de bico (de Alma Welt)

                                                                                  
                     Trigal no Pampa- óleo s/ tela de Guilherme de Faria 2012, 30x40cm

Alexandrinos de bico (de Alma Welt)

Busquei fazer as coisas habilmente
Sem esforço, sob formas despojadas.
Isso é claro, desagrada a certa gente,
As formigas diligentes, esforçadas.

Embora observe alexandrinos
Me sai como pássaro abre o bico
Para gáudio dos gaudérios pouco finos,
Primeiro aqui na estância onde fico.

É verdade que nem sempre os submeto
Pois tenho confiança no meu taco,
E meu território é o soneto...

Mas se ao observá-lo vou mais fundo,
Ao vagar por ele não empaco
Pois sempre caminhei no fim do mundo...

domingo, 9 de dezembro de 2012

Spleen (de Alma Welt)

Charles Baudelaire- por Gustave Courbet
 
Spleen (de Alma Welt) 

Tudo o que é humano compartilho,

Então confesso o tédio vez por outra
Embora ao fazê-lo até me humilho,
Pois pra isso desculpa não se encontra.

O tédio é o pendor dos fúteis, sim,
Conquanto já afetasse o Baudelaire
Sob o vago e estranho termo spleen,
E ao que consta não foi falta de mulher.

Joguemo-lo na conta de uma febre
Que produz, assim, na alma, desencanto
De quem soube que comeu gato por lebre...

Pois a vida nos mantém apenas vivos,
A noite não nos cobre com seu manto
E não “era uma vez” como nos livros...

sábado, 8 de dezembro de 2012

Espelho meu (de Alma Welt)


 
 
Espelho meu (de Alma Welt)

Diva e musa de mim mesma me tornei,
Não se espantem disso assim eu declarar
Com essa grande imodéstia meio gay,
Porque essa é a essência do cantar...

Cantar o mundo como a vida do poeta,
Ciente de que o mundo dorme em mim
E que minha visão é que o desperta,
Como a noite o aroma do jasmim...

“Não terás vergonha?”- diz-me o amigo-
“Estás em vias de virar a outra flor,
Que se mira não na água mas no umbigo.”

Mas eu, me olhando assim no verso,
Vejo o mundo e não meu ser perverso,
No espelho meu polido até à dor...

A Cigarra e a Formiga (de Alma Welt)



                                    Ilustração de Gustave Doré para a fábula de La Fontaine.

 A Cigarra e a Formiga (de Alma Welt)

“Não sei pra onde me leva tudo isto:
Esta mania de o poema trabalhar
Operando o verso como um quisto,
Esta dor que insisto em carregar...”

Assim dizia uma poeta amiga,
Muito, muito diferente desta Alma,
E que parecia uma formiga
Muito laboriosa e nada calma...

Mas eu que sou cigarra inveterada
E levo a vida bem mais leve,
Só sofro por amor... e quase nada.

Que digo?! (Abraço-a). Estou mentindo!
Dói-me tanto que a vida seja breve
Que passo a vida inteira me parindo...s
 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Sonhos, não projetos (de Alma Welt)

                           Alma Welt - óleo s/ tela de Guilherme de Faria 2012, 30x40cm

Sonhos, não projetos (de Alma Welt)

Sonhos, não projetos, acalento,
Que não tenho energia para tanto,
Além do versejar que é meu talento
A vagar pela coxilha, meu encanto.

Creio que a Poesia é ociosa,
Nada tem a haver com o trabalho
E planos materiais próprios da prosa,
E sim com malmequeres ou baralho,

Pois o verso é um eterno deitar sortes,
E surpresas com o jogo dos arcanos
Ou naipes que nos caibam após os cortes.

E para ser poeta é só preciso
Nada esperar dos nossos verdes anos
Além do amor, suas dores, algum riso...

Pequeno auto-retrato (de Alma Welt)


 
 Pequeno auto-retrato (de Alma Welt) 

Sou fiel a estes campos de amplidão
Que moldaram minha alma de guria,
E se hoje tenho larga a minha visão
Devo a esta especial topografia...

Mas muitos objetam: não sou prenda
E não abaixo os olhos ante os machos;
Não aceito que um antigo me repreenda
Por nunca ostentar fitas nos cachos.

Entretanto não confirmarei o boato
De que nua desço ao fundo das cisternas
Por um obscuro e espúrio pacto...

Mas se correndo arrepanho minha saia
Ofereço o pudor das minhas pernas
Da cor de uma donzela que desmaia...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Dia a dia (de Alma Welt)

                                      Desenho de Guilherme de Faria 2011, 75x52cm

 
Dia a dia (de Alma Welt)

Desde aqui desta janela do nascente
Medito a vida e o mundo ao levantar,
Por um minuto vago, quase ausente
Antes da alma e o pé no chão pousar.
 
Depois de longo e talvez feio bocejo,
E mais comprido e menos feio espreguiçar,
Vou ao copo d’água e o gargarejo
Como quem daqui pra diante vai cantar...

Mas, sim, meu corpo canta o dia inteiro
Da enorme alegria de ser bela
E de haver tantas flores no canteiro.

Escrever... báh! é outro canto...
Que não sou senão pequena vela
A iluminar de noite o meu espanto...

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O Círculo das Horas (de Alma Welt






Pampa- foto de Edelweiss Bassis
 
O Círculo das Horas (de Alma Welt)

Quê mal se foi o vinho pro vinagre
E que nossos leitores foram poucos,
Se um círculo de doze nos consagre
Com o obstinado amor dos loucos?

Mesmo se eles foram apenas horas
Que nos acompanharam persistentes...
Já no berço debruçam estas senhoras
Com os esgares de seus tics dementes.

E nos levam na vida estas madrinhas
Num galgar renitente, quase aflitos,
Como a hera lança suas gavinhas...

E se por fim adentramos o portal
Que não nos seja cheio de mosquitos *
E enfrentemos o funil até o final...


  _______________________________

Notas:
* que não nos seja cheio de mosquito- Logo que Dante convidado pelo poeta romano Virgilio adentra o portal do Inferno, ele vê uma multidão de almas atormentada por um enxame de moscas e que se debatia eternamente naquele vestíbulo. Dante pergunta a Virgílio: "Quem são estes?" E o poeta-guia responde: "Estes são os covardes. Olha e passa."


A Noiva do Capitão (de Alma Welt)

A Mulher do Capitão- litografia de Guilherme de Faria
 
 
A Noiva do Capitão (de Alma Welt)

Do capitão a noiva, sempre à espera,
Saudosa e com pudor de sua sede,
Ficava a contemplar sua galera
Como desenho pendurado na parede...

Báh! Como esperavam essas mulheres!
Aos ventos e poentes de esperanças
De eternos doces mal-me-queres
E de antigas primeiras contradanças...

Foram-se os tempos, já pouco esperamos
E lançamos nós aos mares nossas velas,
Que só a ver navios não mais ficamos...

Quanto a mim, mulher-poeta vou ao mundo
Mas carregando comigo todas elas,
Inclusive as que no porto vão ao fundo...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Alma sem cordéis (de Alma Welt)




 Fotograma modificado de uma animaçâo de Zdenko Basic
 
Alma sem cordéis (de Alma Welt)

Alma sem cordéis, em liberdade,
Um Pinóquio de madeira mas de saias,
Tratei de ser guria de verdade
Cortando os assovios e as vaias.


Então me transformei no ser amável,
Sonetista com a arca sempre cheia,
Mas sobretudo bela e desejável
Pois quem quer uma poetisa feia?

Encontro que não precisou de armário
Como da branca loba da alcatéia
Com o lobo da estepe, solitário...

Esperto cordelista, e sem revolta
Ele tratou de criar sua Galatéia
Pois criada a criatura sempre volta...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Alma incandescente (de Alma Welt)


 
Alma incandescente (de Alma Welt)

Quando avisto o mundo ao meu redor,
Não somente o horizonte e o poente,
Que é o momento de esplendor
E o repouso da alma incandescente,

Eu sinto que o sol é o nosso espelho
Tão grande é o potencial do nosso ser
A baixar o seu reflexo vermelho
Que quase nada a Deus fica a dever...

“O que é isso? Então somos divinos?
Será isso que propõe tua soberba,
Que confunde minuano com rei Minos?”

Não (eu respondo)! É reverência
Pela nossa Criação, a mais acerba
Devida à Divina Providência...
 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A vida que eu vivi (de Alma Welt)



“A vida tem que ser mais do que isso!”
Confessou o caixeiro em nossa sala,
Chegado da cidade e a serviço,
Apontando a sua própria mala.


Também disse o professor na escola
Desejando dar um súbito sumiço
Para longe da bagunça e tanta cola...
“A vida tem que ser mais do que isso!”

Grita o marido ao ver a esposa
No sofá frente à tevê vendo novela,
A linda filha ensaiando a mariposa...

Então, ouvindo isso, eu prometi
Que seria o que eu fizesse dela
A maravilhosa vida que eu vivi...

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Flautista mágico (de Alma Welt)





                                         O flautista- desenho de Guilherme de Faria

O Flautista mágico (de Alma Welt) 

Sempre poderás sonhar teu sonho,
Isso não te poderão roubar jamais.
Apostar tudo no real é que é bisonho,
Por que o queres assim banalizar?

Atribuir tanto valor à realidade
Não é coisa muito digna do artista,
E duvidar do nosso dom quem há de,
Se de Hamelin somos o flautista?

Levar os ratos todos para abismos
Ao som de uma alegre melodia
É coisa que fazemos todo dia...

Também a tua inocência conduzimos
Com a flauta forte ou doce da poesia
Numa estrada mais real... da fantasia...

Serenidade (de Alma Welt)




                                       Serenidade- Lito de Guilherme de Faria, 1979


Serenidade (de Alma Welt)

Serenidade... Báh, quanto te busquei!
Pois que não eras minha de nascença
Nem mesmo por direito te herdarei,
Que dos Welt a inquietude é a doença...

Provei o duro exílio após flagrante
De tentação debaixo de uma árvore,
E a saga do casal jovem amante
Só não se completou no frio mármore.

Depois a longa espera do eleito
Nas minhas noites solitárias a tecer
E a destecer de dia o que foi feito.

Também a luta interna, de família,
Para o meu triste vinhedo não perder,
Rubro ocaso a sangrar nesta coxilha
...
 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Síndrome de Deus (de Alma Welt)





                             O Pranto de Alma Welt, óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2004
 
 
Síndrome de Deus (de Alma Welt)

Poetas se criam e até se matam
Pela complexa “síndrome de Deus”
Que os acomete, e não se fartam
Nem na hora do epílogo ou adeus.

Há mesmo quem os queira abatidos
Com dois tiros com aquela carabina
Dos desenhos animados divertidos
Ou somente afogados numa tina...

Mas eu que fui criada por um deles
Que apaixonou-se por mim, eu percebi,
Tanto lhe implorei: não me reveles!

Pois por mim não terão mais reverência
Se acharem que por isso não sofri,
Quando a própria dor é minha essência...

Eu, Heterônimo (de Alma Welt)


                                                                   Foto de Yaroslav Datta


Eu, Heterônimo (de Alma Welt) 

Poeta que se sabe um heterônimo,
Toda minha existência é no papel,
Orgulhosa de não ser um pseudônimo
O meu próprio nome é meu troféu.

Pois vivo, fui criada ou me criei
Não está claro e seguro nem pra mim
Que ao longo dos versos me forjei
Como também nos versos tive fim.

Pois por eles, onde soube minha saga,
No velório descrevi meu corpo nu
E minha própria mão meu rosto afaga...

Mas a morte que encontrei sem o alfanje,
Tenho receio de contar em tom mais cru
Pois ao próprio criador ela constrange

In Verso Veritas (de Alma Welt

 
 Capa do romance A Herança, de Alma Welt
 - retrato da poetisa pintado por Guilherme de Faria

In Verso Veritas (de Alma Welt)

O meu reservatório de memórias
É rico demais porque as amo
E não as distingo das estórias
Que crio às dezenas cada ano.


Pois tudo o que penso é vivido,
Ação e pensamento são o mesmo
E no nível da poesia faz sentido
Como feijoada com torresmo.

Viva pelos versos me descubro
Tal como o ferreiro malha firme
E molda o duro ferro, mas ao rubro.

Assim também me forjo e ruiva fico
Pela inspiração que ao verso imprime
Minha face final que reivindico...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

De sombras e candeias (de Alma Welt)





                                   Menina cantando -de Georges de La Tour 1593-1652

De sombras e candeias (de Alma Welt)

No casarão em noites de tormenta
Cai a força, acendemos as candeias,
A sensação de aconchego nos aumenta
E nos transporta àquelas velhas ceias

Aqui na estância no tempo dos avós
E nós, guris, ainda mais felizes,
Pois que a aventura vinha a nós
Com mistérios de sombras sem matizes...

Rodo, eu e Lucia... irmãs e irmão
A correr, com a Mutti em polvorosa,
Três ou quatro a escorregar no corrimão.

E agora quando acende-se uma vela,
Ainda hoje me ponho, sim, chorosa
Pelo tanto que a vida me foi bela...

 Georges de La Tour - A descoberta...

Advertência (de Alma Welt)


 
                           Alma Welt- pinturas de Guilherme de Faria
 
 
Advertência (de Alma Welt)

Se vieres pela estrada da coxilha
No rumo e sentido do oriente
Verás o casarão como uma ilha
E a varanda, mirante do poente.

E talvez me avistes já de longe
Com meu longo vestido até o pé,
Não como visão que o sono esponje
Mas como uma donzela de outra fé

Às vezes confundida com uma prenda
Por quem reparar só no detalhe
Destas mangas com punhos de renda,

Que advirto ao expor o meu carisma:
Do tempo dos Farrapos e seu cisma
Sou delirante antiga, com este talhe...

 

O Aval (de Alma Welt)





                                            Veronica Veronese - Dante Gabriel Rossetti

 O Aval (de Alma Welt)

Noite e dia em sintonia com meu anjo
Por escrever o que na minha alma está,
Meu estro e meu tempo não esbanjo,
Que acredito que lamentar não vá...

Sentada na varanda ou a vagar
Pelo jardim em torno e na coxilha
Vivo aqui em constante maravilha
Que não deixo por menos meu passar

Por esta vida de poeta, sim, maior
Que me coube por certo em privilégio
Já que podia ser sofrido ou só pior...

E agradecer a Deus e ao anjo seu aval
Não pensem que é só meu sortilégio
Pra na “cozinha” não perder a mão do sal...
 

Scherzo (de Alma Welt)

                                    Scherzo for Brass Instruments by Walter Spies, Oil on Board, 1939


Scherzo (de Alma Welt)

As belas horas passadas em folguedo

Com estas lindas crianças que me cercam,
São o que de melhor vivo, sem medo
Daquelas que perdidas, clamam, imprecam.

Pois à Natureza é grato o riso,
A dinâmica dos pulos, energia,
Exclamações ingênuas de improviso
Entre gritos e palmas de alegria...

E quisera que a vida sempre fosse
Tais momentos de jogos e scherzo
Antes que triste adágio se me aposse

Em lágrimas de beleza comovida,
Que é a outra máscara a que rezo,
Para que a morte seja bela como a vida...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Rumo à Luz (de Alma Welt)


                                    Paradiso, canto 31, Divina Comédia, Dante Alighieri, gravura de Gustave Doré.
 
Rumo à Luz (de Alma Welt)

Para se viver melhor e ser feliz
É preciso aceitar a incoerência
Ou a falta de sentido por um triz
Que a vida apresenta com freqüência.

Que digo? Nada faz muito sentido
Sob determinado ponto de visão
Mais lúcido e até mais divertido,
Nossa perplexidade e confusão...

Mas se adicionarmos os afetos,
Nem digo o amor, que é soberano,
As coisas revelam seus trajetos

Rumo à luz que tudo e todos chama
E que é o mais profundo arcano,
Tão claro que a luz do sol empana...
 

Códice (de Alma Welt)

Página de um códice de Leonardo Da Vinci
 
Códice (de Alma Welt)

Sinto o tempo por meus dedos escorrer,
Que nada posso fazer para detê-lo
Senão na memória me rever

E correr para trás, a contrapelo,

Até chegar ali no aconchego
Desse círculo dos dias encantados
Em que tudo era amor e não apego,
Que é o afeto dos desesperados...

Então viver, eu me sinto, e reviver
Mil vezes a saga que me coube,
Que nada do que fui pude esquecer...

Por isso num descomunal diário,
Como códice, leio-me ao contrário
Por ter o fim comum que eu sempre soube...

sábado, 10 de novembro de 2012

Perto da vida (Alma Welt)


                                                   Perfil de Alma Welt, 2001- desenho de Guilherme de Faria,
 
Perto da vida (Alma Welt)

O soneto me segue e me revela
Desde quando guria na coxilha
Descobri Camões, Will, e a Florbela *
Que bate-me na anca e na virilha. *

E por certo não poderia mais viver
Sem rimar e versejar o tempo inteiro
Como amar e respirar até morrer
E não mais precisar tinta nem tinteiro.

E se me perguntam se estou louca,
Coisa que ocorre a algum pachola
Nunca aos gaudérios de voz rouca

Que cantam com o fole ou a viola,
Eu respondo que estou perto da vida
Demais para avistar outra saída...

______________________________________
Nota
*Camões, Will e a Florbela- Will é William Shakespeare, Florbela Espanca. Alma cita os três grandes sonetistas que a inspiraram, e graciosamente imbute o sobrenome da poetisa na expressão "bate-me na anca"...
 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A Nave (de Alma Welt)


                                         Flaming June - Lord Frederic Leighton- Museu Nacional de Porto Rico


A Nave (de Alma Welt)

Nunca mais presenciar nenhum poente,
Da varanda, na cadeira de balanço,
Os últimos fulgores do ocidente,
Descendo no horizonte pra descanso...

É triste demais pensar assim,
A menos que morrer seja essa vela,
Da nave dourada do meu fim,
Do meu leito avistada, da janela...

Mas algo em mim descrê e desespera,
Uma parte, talvez mais desconhecida,
Que teme, luta, rebela-se e duvida,

E que está na raiz da minha poesia
Por mais que o sonhar seja, como era,
A nave que me leva
e extasia...

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os amigos voltam (de Alma Welt)



Os amigos - Peder Severyn

Os amigos voltam (de Alma Welt)

Os amigos, quase todos reunidos,
Congreguei-os depois de tantos anos
Dispersos que estavam e entretidos
Com os seus sonhos, cartadas e arcanos,

Cada um só à procura de seu rosto
Quando já me parecia conhecê-los
E nada lhes faltava pro meu gosto,
Que não lhes fazia falta novos pelos...

Então em meio aos risos e abraços
Em seguida nos brindes com os bons vinhos
Lhes noto nas feições os novos traços.

E procuro aquele toque de candura
Disfarçado nas palavras e risinhos
Onde o cinismo agora se pendura...
 

domingo, 4 de novembro de 2012

Valsa lenta (de Alma Welt)



 
Valsa lenta (de Alma Welt)

Do casarão outrora iluminado,
Me perdoe, senhor, luz tão mortiça.
Esta triste penumbra é resultado
De uma espera longa e submissa...

Meu amor que há tempos foi levado
Ao baile que há atrás do horizonte,
Deixou-me este andamento sincopado.
Esta noite, no serão, talvez lhe conte...

Por enquanto, senhor, releve um pouco
Esta hospitalidade desatenta
E o meu aparente ouvido mouco.

Tornei-me distraída, me desculpe,
E os peões me seguem a valsa lenta,
Por isso, lhe peço, não os culpe...

sábado, 3 de novembro de 2012

A Torre (de Alma Welt)


 
A Torre (de Alma Welt)

É tão belo me sentir entre os Poetas
Cujo estro admirei desde guria,
E entre as poetisas mais seletas
Formando um ramalhete da Poesia.
 
“Não será cedo?” alguém pode perguntar
“Para juntar-te a ti mesma sem consulta
Ao público leitor, e alardear
Participares de plêiade tão culta?”

Sim e não, pois escrevi com sangue,
E tornei-me torre auto-erigida
Embora exausta e quase exangue...

E se a mim mesma alto me coloco
É para até o fim manter-me o foco,
Morrer mirando longe a própria Vida...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Os mortos não são fúteis (de Alma Welt)




 
Os mortos não são fúteis (de Alma Welt) 

Os mortos não são fúteis, não, jamais!
Leviandade é coisa que descartam
Malgrado alguns inquietos e sem paz
Que parece que da vida não se fartam.

Esses, de nítidos dois tipos, a saber:
Os que nos perseguem com suas queixas
Com as quais temos mesmo algo a haver
E os que deixam docemente doze deixas

Que são as aquelas badaladas dos relógios,
Aqueles negros com uns pêndulos dourados
Que sempre acreditei mal-assombrados...

E pra encerrar dos mortos seus relatos,
Eis porque fazemos necrológios
Falseando a feição forte dos fatos...

Os mortos murmuram (de Alma Welt)


 
Os mortos murmuram (de Alma Welt)

Os mortos murmuram sob os mármores...
Alguns até gritam e não ouvimos;
Outros caminham sob as árvores
E não os vemos nem sentimos...

 Mas se estás atento ao teu destino
Vês que já estás no meio deles
E até podes ouvir teu próprio sino
Que já dobra por ti e não por eles...

Não deplores, pois, os teus amados.
Eles apenas se foram pouco antes
Porque teus medrosos passos foram tardos.

Somos para a Morte, é o que dizem...
Importa é que eu ouça o que tu cantes,
Enquanto as doces brisas nos alisem...
 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Meu trem fantasma (de Alma Welt)


 
Meu trem fantasma (de Alma Welt)

Meu trem eterno é bastante pontual
Pois chega somente quando o espero
E os outros não o vêem como real
E me dizem que sou louca quando quero.

 
Sim, nisso sou forçada a concordar,
O real nunca foi meu território
E se ouço o velho trem resfolegar
Fico com este olhar quase simplório.

E na plataforma dos meus sonhos
Bato palmas como quando era guria
E os meus encantamentos mais bisonhos.

Então leva-me contigo, trem fantasma
No teu branco vapor que apita e chia,
Em que meu verdadeiro ser se plasma...

Odisséia nerd (de Alma Welt)


Odisseu e as sereias - James Draper -1863/1920)
 
 
Odisséia nerd (de Alma Welt)

Quem chega pela estrada da coxilha
Avista ao longe o nosso casarão
E na varanda como praia de uma ilha,
A mim, a perscrutar a imensidão


Na minha eterna espera de Odisseu-
Rodo, jovem jogador pelos cassinos,
Que se chegar será com grito de pneu
E não com o bater lento de sinos...

Mas ao mastro no meio do arrecife
Daquelas belas Marias-pano-verde,
Vai Odisseu, chegado nas sereias,

Enquanto eu, sem mais fichas nem cacife,
No tear-computador, como uma nerd,
Eternamente a desfiar as minha teias...

A Leste do Éden (de Alma Welt)


 
A Leste do Éden (de Alma Welt) 

A guria que fui me é tão sagrada
Que olhando-a sempre me enterneço.
Mas deploro como fui atormentada
Por uma culpa que sei que não mereço...

Por quê, meu Deus, escandalizam os guris
Sob a mais pura macieira do pomar
Como se acaso houvessem feito coisas vis
Quando estavam tão somente a brincar?

Falta aos adultos o verdadeiro humor,
É isso que lhes falta, me perdoem,
Se simplesmente não lhes faltar amor.

Quanto a mim, para abrandar a abantesma
Dos gritos que na alma ainda me doem,
Na poesia vou-me ao leste de mim mesma...

Sob o véu (de Alma Welt)


 perfil de Alma Welt- desenho de Guilhermee de Faria 2001
 
Sob o véu (de Alma Welt)

Vou entre a tristeza e a alegria
Talvez demais num oscilar sem fim,
Mas quisera explodir-me na Poesia
Como uma mulher-bomba de mim.


Báh! Como recordo minhas andanças
Por aí antes do tempo das tormentas
Quando minhas jornadas eram mansas
Com seu aconchego de horas lentas...

Como eu era bela, Deus do céu!
E agora já enxergo as minhas olheiras
Quando me atrevo a erguer o véu

Da angústia que me toma de repente
Sob a capa de lendas corriqueiras,
Eu mesma antes do pomo e da serpente...

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Minha vida virtual (de Alma Welt)




                                                          René Magritte - Le Château des Pyrénées 1959

Minha vida virtual (de Alma Welt)

O soneto desde sempre me acompanha
E não poderia mais viver sem isso,
Pois resume minha sede e minha sanha
De versejar, meu supremo compromisso.

Se deixo de escrever um dia só
Esse dia foi perdido ou dispersado
Qual se ao vento apenas fosse pó,
Como na balada gringa foi cantado. *

Sei que vivo uma vida virtual,
Dupla projeção no plano astral,
Paralela à tal vida verdadeira...

Mas eu sinto que crio um edifício
E viver fora dele é que é difícil,
Todo um rico castelo na poeira...

_____________________________

Nota
*Como na balada gringa foi cantado - Alma se refere à belíssima canção americana "Dust in the Wind" (poeira no vento) da banda Kansas, sucesso dos anos 80, e interpretada até hoje por diversas bandas. No Brasil há uma bela interpretação da Paula Fernandes (cantada em inglês mesmo).
 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Ode à Alegria (de Alma Welt)



Primeira página da Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven
 
Ode à Alegria (de Alma Welt)

Nada podemos, seres, contra a Morte.
Então tudo será fútil, ou brincadeira,
Entre as duas datas só um recorte
Se não for essa certeza da poeira


Mas se fazemos oferendas temerosas,
Com a Arte erguemos logo a testa
Com nosso descarado orgulho e rosas,
De um jeito ou de outro sempre em festa.

Então juntos cantemos uma ode
Antes que baixemos para o Hades
Que é tudo o que nossa alma pode...

E pois num coro de imensa rebeldia
Ousemos conclamar nossos confrades
À triunfal celebração da Alegria!

domingo, 28 de outubro de 2012

Testamento (de Alma Welt)

 
A levitação de Alma Welt- de Guilherme de Faria



Testamento (de Alma Welt) 

Tudo entreguei de mim ao mundo
Através dos versos que sangrei
Mas se nem sempre assim me dei
O resultado do conjunto foi fecundo.

Compuseram canções com os meus versos
Que ao ouvi-las, tão belas, mais chorei
Pois poemas até então dispersos
Formavam uma corte ou uma grei

De sons que completam a palavra
E dizem o que talvez mesmo não pude
Como se já não fossem minha lavra

Mas do nume que de mim se evola
E se vai com minha alma que decola,
Grato gênio da perdida juventude...

Fim de Ano (de Alma Welt)



                               Detalhe do Portrait de Alma Welt -  de Guilherme de Faria

Fim de Ano (de Alma Welt)

Meu orgulho, minha dor, e mais um pouco
É estar ainda aqui me construindo
Como quem impõe um sonho louco
Ao mundo a quem pareço estar sorrindo

Mas cujo tom patético inerente
À medida que caminho para o fim
Vai ficando cada vez mais evidente
E é a marca do Poeta que há em mim

E creio que há em todo ser humano
Quando cônscio de trazer o seu final,
Que sempre há de ser no fim do ano,

Pois se me vês chorar quando isto abordo
Imagina estes meus olhos no Natal
Quando mais de mim mesma me recordo...

sábado, 27 de outubro de 2012

Partituras (de Alma Welt)



 
Partituras (de Alma Welt)
 
Quê importam nossas dúvidas e medos,
Se a vida nos foi dada por igual
Entre os mais argutos e os ledos,
E a todos se furtando no final? 

E se os tormentos, dores e adeuses
Não ocorrem somente com os eleitos
Como outrora se dizia sobre os deuses
Na relação com heróis de grandes feitos?

Pois cada partitura é caprichosa.
Em momentos, calmaria e melopéia,
Em outros, sinfonia poderosa...

Somos todos um tanto aventureiros
E o percurso nosso, uma odisséia,
À espera e a varrer nossos terreiros...

Le Cauchemar (de Alma Welt)




                                             Le Cauchemar - Eugène Thivier 1845 - 1920

Le Cauchemar (de Alma Welt)

Há o Porteiro? Serei bem recebida?
A pergunta parece uma besteira,
Dirigida a mim mesma e descabida
Para quem foi rebelde a vida inteira...

A idéia de levar um novo pito
Como aquele com meu mano no pomar,
Me toma quase às raias do meu grito
No meio de um terrível “cauchemar”.

Sobre mim e minha vida insubmissa
Suspeito que me importa o tal Juízo,
A mim, que nunca fui a uma missa...

E abaixo a cabeça sob a lua
E o sol, que já viram o meu riso,
Pois percebo, agora, que estou nua...