terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Minotauro e a Lâmpada (de Alma Welt)

Pouca coisa sobraria pra dizer
Se poesia fosse mera confissão.
E se tanto devo à imaginação,
A poesia é minha só razão de ser.

Com ela junto os cacos e restauro
Minha frágil e duvidosa identidade
Antes que a leve o vento da saudade
Sem topar afinal meu Minotauro...

Sim, no centro do meu próprio labirinto
Lá está ele, feroz, e eu o sinto,
Mas também o cerne do Desejo

Sem o qual a minha Vida se dispersa,
Sem a lâmpada de um tal mercado persa
Em que mais nada quero do que vejo...

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28/02/2017

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A cabrita (de Alma Welt)

Quando um dia não houver mais o que dizer
E toda a inquietude se aquietar,
Quando o anjo da guarda aparecer
Depois das vestes e as credenciais trocar,

Que eu não tenha mais medo nem perguntas,
Nem sequer esta vã perplexidade
Que afinal vai me travar todas as juntas
Numa boneca imóvel, sem idade,

Que seja belo o meu derradeiro acorde
Tendo sido afinada num instante,
Sem rancores, sem mágoas, por meu Lord,

"Não berra o bom cabrito", diz o povo,
E eu que fui uma cabrita esperneante:
"Senhor, estou quietinha, nem me movo..."

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27/02/2017

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Sopro e Semelhança (de Alma Welt)

Não poder saber jamais quem fomos
Numa suposta outra encarnação,
Ou se saber, talvez, dela supormos
Ser também ignorância ou ilusão...

Não sabermos mesmo nada além da vida,
Dos páramos que a Alma busca e anseia
Longe das dores e tormentos desta lida,
Se haverá em novos mares maré cheia,

Não me parece razoável, nada justo,
Já que roubamos o pomo da Razão
Pra, quem sabe, saber mais a todo custo.

Pois ao sermos tratados qual criança
Ficou em nós, depois do pito e do sabão,
Nada mais que o sopro e semelhança...

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26/02/2017

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Às cegas (de Alma Welt)

Constato a nossa ignorância
Com certo desespero, não sabermos
Quase nada da nossa vizinhança
E dos universos seus, tão ermos.

Não sabemos nem dos nossos reis primeiros,
Muito menos das pirâmides vazias
Repletas de mistérios pioneiros
E de mil ignoradas primazias...

Tateando por partes o elefante
Como aqueles pobres cegos somos
Da fábula dos homens de turbante...

E por mais que debrucemos sobre livros
Não logramos encontrar primeiros tomos,
Nossa ponte entre os mortos e os vivos...

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25/02/2017

De omeletes, ventos e espectros (de Alma Welt)

Sentei-me e meditei sobre a existência
E o destino, como o pobre Hamlet
Tentando ir além da aparência,
Quebrando os ovos pra fazer um omelete.

Mas não pude ir além da falsa rima
E da chamada "nossa vã filosofia".
Conservo bastante a auto-estima,
Mas como ele me perco em ironia...

Pois de sonetos enchendo minha arca
Comecei a me sentir em Elsinore,
No tal castelo do rei da Dinamarca...

Tanto mais que meu pai vem ao piano
Por mais que eu finja que ignore
Toda vez que aqui sopra o minuano...

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25/02/2017

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Anti-oração ao bom Deus (de Alma Welt)

Oriundos do antigo Paraíso
Estamos todos perdidos nesta Terra
Onde até mesmo o bom cabrito berra,
Esperando pelo dia do Juízo...

E me pergunto: Será que Deus nos ouve
Sob o ruído de fundo das estrelas?
Contará Ele só com quem O louve?
Nossas feições reconhece Ele ao vê-las?

Nós, os rebeldes, primogênitos de Adão,
Que há tempos elevamos nosso fumo
Que Vosso vento dispersou na contramão...

Tereis Senhor, conosco, complacência,
E mesmo que perdido o nosso rumo,
Um desconto nos dareis, pela carência?

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23/02/2017

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Paz aos mártires! * (de Alma Welt)

Desejemos paz aos mártires da vida!
Aos que em sua arena vão morrer,
Como coisa previamente decidida
E sem possibilidade de os reter.

Senhor, por quê a alguns negais a chance
De um futuro qualquer, seus simples sonhos?
Casamento, filhos, algo ao alcance,
Eventual faixa de Miss, feitos bisonhos...

Um diploma de engenheiro por empenho,
Ou de simples mecânico de unhas sujas,
Mas felizes os dois com seu engenho...

Não! Lá foram todos eles aos balaços,
Caídos na calçada ou aos pedaços
Como esboços apressados, garatujas...

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22/02/2017

Notas
*Paz aos mártires! - Com esta frase que retumbou solenemente sobre a arena do Coliseu, atribuída à São Pedro pouco ante dele mesmo se entregar, no auge do martírio dos cristãos, Alma se refere aos jovens assassinados diariamente no Brasil atual, que têm os seus sonhos interrompidos...
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* Senhor, por quê a alguns negais a chance/
De um futuro qualquer, seus simples sonhos? - Apesar da aparente falta de leis e ao caos reinante por culpa dos governantes, a poetisa, fatalista inconformada (contradição em termos, paradoxo) atribui isso aos desígnios misteriosos de Deus, mas O questiona ...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

A Gargalhada (de Alma Welt)

A taça  craniana de Lord Byron


A Gargalhada (de Alma Welt)

Ao nosso patético da existência
Deus compensou com a gargalhada.
Que é o riso tomado de veemência,
Risada de nervoso, escancarada.

A Ele bem apraz nosso arreganho,
Que, já está provado, é estrutural,
Com a parte inferior do nosso crânio
Naquela branca desfiada gutural...

Não que a Ele não apraza nossas dores...
Não! Ele as aprecia desde o início
Quando nos mandou catar ofício!

Mas o riso... bah! Dos seus pendores
É o preferido, e por isso gargalhemos!
A calva taça ergamos e o brindemos!

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21/02/2017

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Os ossos do ofício (de Alma Welt)

O primeiro requisito para o verso
É nascer da mais pura compulsão
Ou de um impulso controverso,
De necessidade forte em contramão,

Uma vontade às vezes de afirmar
Mas de preferência transgredir;
Sempre uma coisa ou outra preferir
Mas nunca em meias águas navegar.

Assim dizia um mestre meu na Escola
Teorizando sobre o dom de versejar
Enquanto a turma só queria jogar bola.

Mas meu mestre negou o desperdício
Que eu lhe apontei, de pérolas jogar,
Como primeiros ossos de um ofício...

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19/02/2017

A navegante da neblina (de Alma Welt)

Para alguns a neblina é escura irmã
Com algum toque de tristeza
Mas amo essa névoa da manhã
Que me faz erguer solerte e tesa.

E corro para fora a andar à toa
Para sentir na alma o céu baixando,
Com a alva da manhã se acomodando
Para eu por o pé na terra numa boa...

Cada qual com seu destino, diz o povo.
E eu grito mesmo tendo pouco visto:
Terra à vista! E nem pus de pé um ovo...

E então ponho o meu soneto a navegar,
Porque o que me resta, senão isto?
Sem poesia minha coxilha é falso mar...

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19/02/2017

Sentei-me à beira-rio (de Alma Welt)

Sentei-me à beira-rio desta vida
E meditei sobre o fluxo voraz
Das coisas preciosas, e a medida
Do agora, do quando e do jamais.

E percebi que o Tempo é relativo,
Mas não pelas razões do homenzinho
Que nos botava a língua com carinho, *
Criança que fora enquanto vivo...

E voltei no tempo em flash-back,
Coisa que com o gordo Welles aprendi *
E com seu botão de rosa de moleque. *

E à beira-rio lá estava eu de novo,
Não às margens do arroio do Chuí,
Mas do Tigre, em Babel com todo um povo... *

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19/02/2017

Notas
*Mas não pelas razões do homenzinho/
Que nos botava a língua com carinho- Referência à famosa foto de Einstein mostrando a língua, que denuncia o espírito pueril do grande sábio...

"... com o gordo Welles aprendi / e com seu botão de rosa de moleque - Alma se refere ao cineasta Orson Welles no seu grande filme Cidadão Kane, em que o personagem tem um flash-back de sua infância através de um pequeno trenó de neve chamado Rosebud (botão de rosa).

*Mas do Tigre, em Babel com todo um povo- alusão ao povo judeu em seu cativeiro em Babilônia, que ficava na Mesopotâmia, isto é, entre os rios Tigre e Eufrates... (Alma no seu flash-back é levada num retorno imemorial às origens bíblicas de nosso inconsciente coletivo judaico-cristão...
Salmos 137
1Junto aos rios da Babilônia sentamo- nos a chorar, com saudade de Sião. 2Nos salgueiros que lá existiam, pendurávamos as nossas harpas,…

sábado, 18 de fevereiro de 2017

A Idade da Razão (de Alma Welt)

Saudade tenho eu de quase tudo,
Embora, por um lado, seja jovem,
Que da infância meu filme não é mudo
E os mesmos sonhos me comovem...

Parece que foi ontem, assim o sinto:
Eu a correr no pasto da fazenda
Atrás de borboletas, numa senda,
Coisa que ainda faço, se não minto.

Assim persigo ainda a minha alma
Para tê-la na palma de minha mão
Como o dito: "Sua alma, sua palma".

Se finalmente a inocência foi perdida
E me alcançou a Idade da Razão,
Rebelde, não lhe dei boa acolhida...

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18/02/2017

O Tempo das Lamúrias (de Alma Welt)

"Acabou-se o tempo das lamúrias
E da desprezível auto-piedade.
Estamos na hora da verdade,
Livremo-nos das outras mais espúrias!"

Assim fazia eu a minha arenga
Num sonho inacabado que ocorreu
E que logo ao acordar se dissolveu
Pondo limite na longa lenga-lenga.

Senhor, livrai-me de discursos e conclames
Ou apenas poupai-me de vexames,
Como delírios, sonhos de canabiol!

Esta é a verdade que ainda há:
"Não há nada de novo sob o sol",
E as notas ainda são do re mi fá ...

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18/02/2017

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Juízo, ou Um certo soneto (de Alma Welt)

"Tertuliano, frívolo, peralta"... *
Assim um certo soneto começava
Recitado por meu pai que o citava
Como exemplo do que nos fazia falta.

E o soneto habilidoso mas naïf
Nos ficou como um "verme de ouvido",
Como no piano aquele "bife"
E outras coisas da saudade com que lido.

Minha infância querida, tão presente
Porém transfigurada em ironia
Para não perdê-la em brumas, de repente...

E eu, que a carrego em minha bagagem
A traduzo em meus versos de poesia
Com o "Juízo" de meu pai como miragem...

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17/02/2017

Nota
Eis o soneto citado, do poeta parnasiano Artur Azevedo, citado pela Alma , que o Pai dela, jocosamente declamava para recomendar a ela e a Rodo: Juizo!

TERTULIANO, O PASPALHÃO ( Artur Azevedo)

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A Galeota (de Alma Welt)

                                                                           Galeota
A Galeota (de Alma Welt)

O soneto é da minha natureza
O princípio dominante e ordenador
Que me dota de rigor e de leveza,
Galeota indo além do Bojador.

Como de luso antigo navegante
E de sua preciosa caravela
Com seus portulanos e o sextante,
O meu sonho é o mesmo, nesta tela.

E então me sento a digitar
Para que o mundo fique claro
Por um momento meu de amor e mar,

Descobrindo logo um Mundo Novo,
Tão ingênuo truque, quanto raro,
Como Colombo ao por de pé um ovo...

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16/02/2017
Galeota

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A Dor e a Alegria (de Alma Welt)

                                                 Festa súbita na aldeia - Pieter Bruegel

A Dor e a Alegria (de Alma Welt

A dor é arredia, solitária,
E conhecida por ter poucos amigos.
Mais chegada em espelhos e umbigos,
Sua aptidão, porém, é vária:

Coleciona saudades renitentes,
Pois gosta de ad eternum repetí-las
Fazendo das lentilhas suas lentes
E das exceções, chefes de filas...

A dor... ora, a dor! Que vá embora,
Que nunca fez falta nesta aldeia
Onde ao mencioná-la o povo cora.

Mas, Alegria? Venha! Hoje é festa!
Crianças, aqui tem bola de meia!
Adultos! Um bom porre ainda presta!...

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015/02/2017

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Ambiguidade (de Alma Welt)

O mundo é uma selva ou jardim
Dependendo do teu temperamento.
Tudo é uma coisa e outra em mim
E a ambiguidade é meu tormento.

Vejo a coisa por um lado, num momento,
De um claro e bom ponto de vista,
Depois, a despedaço e fragmento,
Como poeta sou um mau pintor cubista.

Como escolher, saber, qual a moral?
O mundo tem beleza dos dois lados
E é difícil separar o Bem do Mal...

Senhor, não deixastes muito claro,
Quando, como cães escorraçados,
Para que lado correr, perdido o faro...

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14/02/2017

Balanço da Vida (V) ( de Alma Welt)

"A vida, às vezes, me põe louca
Ou prostrada numa cama, raramente
Por não entender do outro a mente,
Mas por quê um idiota abre a boca..."

Assim dizia uma amiga muito esperta,
Que atrás do biombo seu, de laca,
Não saía de debaixo da coberta
Porque o mundo inteiro era "babaca".

Então eu lhe disse: "Minha amiga
O mundo precisa o teu conselho,
Teu balanço entre a cigarra e a formiga",

"Que venhas para cá onde está a vida
Que a todos à palavra nos convida,
Basta pra isso atravessares teu espelho..."

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14/02/2017

Lumpen e Dasein (de Alma Welt)

Do nosso caminho forjadores,
Talvez em parceria com o Destino,
A canção, o tom, o timbre e as dores
São nossa criação exceto o sino

Que dobrará no fim, por todos nós
Que ainda perguntamos por quem dobra, *
Quê rio é esse que chegou à sua foz
E quanto de nós mesmos ainda sobra.

Temos todos a haver uns com os outros,
Esse é o mistério do "estar aí" e ser,
*"Dasein" da maioria em panos rotos...

Sim, o "lumpen", ai de nós, pano de chão,
Que vivemos à mercê de algum poder,
A correr somente atrás do nosso pão...

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14/02/2017

Notas
*...exceto o sino / que dobrará no fim, por todos nós/
que ainda perguntamos por quem dobra - citação ou paráfrase do famoso verso do poema do poeta inglês elizabethano John Donne: "Por isso não pergunte por quem os sinos dobram/ Eles dobram por ti." Este poema é conhecido também pelo primeiro verso: " Nenhum homem é uma ilha".

* Dasein- conceito filosófico do "estar aí no mundo", condição aleatória do humano, na filosofia de Heidegeer.

Lumpen- ( pano de chão em alemão) da expressão marxista lumpenproletariat: Proletariado pano de chão, designando a camada mais baixa, em geral, dos desempregados do capitalismo.

Nota adicional: Não pensem que a Alma Welt é marxista ou sequer socialista . Alma Welt é humanista no maior sentido, e aqui lança mão criticamente de conceitos da direita e da esquerda...


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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Antigos Carnavais (de Alma Welt)





                                                          Ilustrações de J Carlos, da década de 20 e 30


Antigos Carnavais (de Alma Welt)

Sou jovem mas já tenho saudades
Dos velhos Carnavais que não vivi,
De Pierrôs e Colombinas sem idades
E de um Palhaço triste que ainda ri...

Belos corsos na avenida, de fordecos,
Melindrosas e seus lança-perfumes,
Serpentinas atiradas, reco-recos,
Marchinhas afiadas, mas sem gumes.

Nos salões máscaras belas, brincos, broches,
Como de antiga corte a Masquerade
Dos tempos de Antonieta e seus brioches.

E na Idade da Inocência, depois Mito,
Enquanto um Amor puro a alma invade
Eu cantando e dançando no Infinito...

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13/02/2017

O álbum (de Alma Welt)

A vida nos três tempos simultâneos
É a prerrogativa da Poesia
Que de nós coleciona os instantâneos,
Nosso álbum aberto à revelia.

Todos podem visitar a intimidade
Da vida dum poeta que se preze
Desde a sua mais tenra idade
Até quando ao vê-lo o povo reze.

O poeta, conquanto em si insiste,
Seu álbum fomos nós que o colamos,
Foto por foto, nós nos colecionamos.

Pois o Poeta é ilusão e mal existe:
Se o pensarmos fora não o achamos,
Senão como um rótulo persiste...

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13/02/2017

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Alma advogada (de Alma Welt)

Ofertar ao mundo leigo minha alma
Antes de entregá-la ao meu Senhor,
Blasfêmia talvez seja, dou a palma
Ao que disse uma vez meu confessor.

Abrir o peito, louca, em confissão
De estarrecer ou mesmo de encantar,
Quanta temeridade ou presunção
Da guria que a mãe bem quis calar!

Pelo Homem decidi, tomei as dores,
Isto é, da humanidade injustiçada,
E alcei a minha voz fraca e rimada.

Temos o Amor, tantos amores
Que o Anjo se esqueceu de nos tirar...
Desde então como pode nos culpar?

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12/02/2017

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Memórias da Relva ( de Alma Welt)

Se tiver que narrar o meu começo
Devo contar que fui parida em viagem
Na beira de uma estrada de rodagem
Mas por puro luxo, reconheço...

No acostamento, em verde relva,
Meu parto foi meio a canivete
Mas nas mãos de um rei, não um valete,
Que contava que fora em plena selva.

Em vez de álcool puro, um Steinhegger,
Para bem desinfetar o meu cordão
(mas que eu nunca iria mais beber).

Não me tornei pinguça por acaso
Pois ainda sinto o aroma, creia ou não,
E a relva é meu berço a longo prazo...

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11/02/2017

Pela fechadura (de Alma Welt)

A vida é a poesia do momento,
Vista assim de certo modo ou jeito,
E só a banalidade é um tormento
Quando se descobre o vão estreito.

Enxergar a vida, abrindo aos poucos
Nossa lente objetiva num desvão
Como quem olha durante a confusão
Pela fechadura o lar dos loucos.

Então vemos que o mundo é tão intenso
Que vale a pena ouvir o seu lamento
Mas sem esquecer de lado o lenço...

Porque haveremos, por certo, de chorar
Vendo o desenrolar de modo lento
Do que um dia nem queríamos olhar...

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11/02/2017

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Sem pacto (de Alma Welt)

                             Foto: Interpretação livre da cena da morte de Fausto, em encenação do Ballet Negro de Praga.



Sem pacto (de Alma Welt)

Quanto mais desperdiçamos nossa vida,
Mais persistente ela se torna
Como a dizer: "Não vale, estorna!
Jogaste fora teu salário, tua comida."

"Vou te dar por certo nova chance,
Não que a mereças, infeliz!
Não fizeste o que estava ao teu alcance
E quase me perdeste, por um triz!"

Creio, assim diria a vida se falasse
A todo acomodado em passatempos
Como se seu tempo não acabasse...

Cada minuto é sagrado, é uma ara.
Como aquele Fausto em outros tempos,
Mas sem pacto direi: "És belo! Pára!" *

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10/02/2017
Nota
*Mas sem pacto direi: "És belo! Pára!" - na monumental tragicomédia de Goethe, Fausto, um erudito entediado, faz um pacto com o Diabo na figura de Mefistófeles, em que este lhe daria todos os prazeres e grandes poderes enquanto ele, um cético, não se rendesse ao deslumbramento, dizendo afinal a um minuto sublime que passa: "Pára! És tão belo! " Neste instante acabava o pacto, e o Diabo poderia se apossar da alma de Fausto. Curiosamente, o final tem um desenlace picaresco: Fausto, tendo se rendido a um minuto sublime e dito a frase, cai morto. Mas Deus envia uns anjos serafins, adolescentes, muito melífluos que volteiam em torno do defunto, sensuais aos olhos de Mefistófeles que começa a cobiçar seus trazeirinhos (!!! Acreditem se quiser, confiram) e o distraem no momento da saída da alma do corpo pela boca do cadáver, e escamoteiam rapidamente a aquela luzinha que levam para o Céu, enquanto Mefistófeles sapateia grotescamente e vocifera, frustrado. Deus falseia (!!) o resultado de sua própria aposta com Lúcifer, que ocorre no "Prólogo no Céu", no começo da peça. Deus rouba do Diabo em favor do Homem! Goethe era um louco maravilhoso...

Sonetinho das chinelas (de Alma Welt)

Não podemos nosso mundo consertar
Se nem Jesus Cristo conseguiu.
Mandela chegou perto de mudar,
Gandhi a Índia em liberdade pouco viu.


Martin Luther King, de fato um rei
Que teve aquele sonho admirável,
Derrubou da maldade o que era lei
Mas racismo continua, detestável.

Filósofa não sou, e nada entendo
Da razão e o porquê de tudo isso
E só minha vontade é dar sumiço.

Mas percebo que o artista, mal ou bem,
Veio só pra costurar, fazer remendo:
Não queira o pobre sapateiro ir além...

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10/ 2/2017

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Meus amigos secretos (de Alma Welt)

Desde guria convivo com os mortos,
Que secretos são os meus amigos
Que foram navegar entre outros portos,
Poetas, uns modernos, uns antigos.

Como lhes tenho muita intimidade
Lhes chamo pelos nomes e apelidos:
Allan Corvino... François dos Tempos Idos, *
Charles, o das flores da maldade... *

Mas, com suas dores também arco:
Eles não desconfiam que são célebres,
E ainda vendem por gatos suas lebres.

Arthur, a vogar bêbado barco
Vogais coloridas, ainda encanta, *
E Walt boa relva cava e planta. *

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09/02/2017

Notas
* Allan Corvino - Edgar Allan Poe, o poeta americano autor do poema O Corvo (e de maravilhosos contos de terror e de humor)

*François dos Tempos Idos - François Villon, poeta medieval francês, autor da famosa "Balada das Damas dos Tempos Idos" ( Où son les neiges d'antan?)

*Charles, o das flores da maldade - O grande Charles Baudelaire, autor do célebre livro de poemas Les Fleurs Du Mal ( As Flores do Mal)

*Arthur, a vogar bêbado barco /Vogais coloridas - Arthur Rimbaud, o grande poeta adolescente francês, que escreveu Le Bateau Ivre (O Barco Bêbado) e La Couleur des Voyelles (A Cor das Vogais)

* E Walt boa relva cava e planta - Walt Whitman, grande poeta americano do século XIX, autor do monumental livro de poemas Leaves of Grass (Folhas de Relva).

Espuma (de Alma Welt)

Tenho uma tristezinha incipiente
Que me dá esse olhar enevoado
Que atrai, por um lado, muita gente,
E do inferno algum bem intencionado.

"Alma, minha linda, pode abrir-se,
Comigo seu segredo está guardado."
Me dizia um amigo em vez de ir-se
Com os outros, beber ali ao lado.

Mas eu dizia: "Vai, beba mais uma...
Por quê queres bancar o confidente?
A vida é da cerveja só a espuma..."

E ao fundo se ouvia o alarido,
Brindes, rolhas espocando de repente,
Meu próprio aniversário já perdido...

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09/02/2017

A Idade de Ouro (de Alma Welt)

Guardo um tesouro dentro em mim,
A Idade de Ouro me acompanha
E só com minha morte terá fim,
Pois em minhas fibras ela entranha.

Minha infância perfumada como sândalo,
Quase perfeita não fora um senão,
Um momento de susto e confusão
Causado por um flagrante escândalo.

Ai de quem as crianças confundir,
Ou as escandalizar, pior ainda...
Dizia o Cristo pra quem quisesse ouvir.

E fui surpreendida pura e nua
No pomar, sob a macieira linda,
Com um guri de casa, e não da rua...
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9/02/20

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Preguiça (de Alma Welt)

Todos temos um pouco de preguiça.
Eu a tenho com o sopro desde o barro
Sou aquela que acorda e se espreguiça
Pra voltar ao sono em que me amarro.

Mas, de súbito, salto como mola,
Impulsionada por um surto de dever
Que me acomete de sonetos escrever,
Anátema de um anjo que me amola:

"Ganharás o pão sem trabalhar,
Mas parirás em dor e alegria
Um ou mais sonetos bons por dia!"

E assim em agonia e regozijo
Vivo minha expulsão do Paraíso
Com uma ou outra falsa rima pra constar...

08/02/2017

Cuidado com a Vida! (de Alma Welt)

A vida é neutra e manobrável como um carro,
Mas de súbito um esgar de auto-ironia
Como o andarilho cego que sorria
Toda vez que enfiava o pé no barro...

Cuidado com a vida e sua intriga!
Confidente que está pra tua besteira,
Se passa por ser tua nobre amiga,
Pra te passar depois uma rasteira...

Confiar desconfiando, diz o povo,
Ou "sin querer queriendo", como o Chaves *
Repetindo isso mil vezes e de novo...

Se souberes que a vida é inconstante
E doida para apresentar entraves,
Podes gostar dela... e até bastante.

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08/02/2017

Nota
* "sin querer queriendo", como o Chaves - Sugestiva frase recorrente do Chaves (para quem não conhece) famoso personagem humorístico infantil mexicano, da televisão, que surpreendentemente a Alma parece conhecer e apreciar de algum modo.

Sem perigo (de Alma Welt)

Garanto que não há amargura em mim,
Só um tanto de acidez, mas sem perigo.
Uma pitada de pimenta com jasmim,
Perfume que ao picante só eu ligo.

Tenho um lado solar, de manhã, trigo
Com meu cabelo louro rubro sob o céu.
Mas, de noite, ai de quem topar comigo
E quiser ver o meu rosto sob o véu.

Não garanto que comigo amanheça
E desperte para agradecer ao sol
Os prazeres que de mim ora conheça...

Ora, estou brincando... sou mansinha,
Meu mistério é permanente arrebol,
Sol terno que da noite se avizinha...

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08/02/2017

Café da Manhã (de Alma Welt)

O café da manhã renova tudo.
Não me refiro ao ideal depois da queda
Nem a novo interesse pelo estudo
Que na tua aridez de novo medra,

Só à simples retomada sem afoite
Do balanço do pêndulo da vida
Que só deve parar na meia-noite,
Quando a última pancada for ouvida.

Querias viver? Então, viveste, homem!
Que esperavas? Melzinho na chupeta?
Tens sorte de escapares do Capeta

Que fica ali na porta dos berçários
Contando que por enfermeira o tomem
E o deixem levar um, dois, três, ou vários...

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08/02/2017

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Meu Epitáfio (de Alma Welt)

"Os seres amou e às coisas belas",
Assim meu epitáfio, espero, seja
Depois das duas datas, duas velas
Sobre a lage de granito que se veja.

Mas sob ela imagino minha caveira
Sorridente como todas e branquinha,
Que muito branca foi esta Alminha,
Fora o ouro desta ruiva cabeleira.

E como vou gargalhar daí por diante!
Já que nunca a morte me enganava
Pois que a avistava a todo instante...

Qual Damocles, sob o fio da espada,
Vivi intensamente, assim amava,
E já não me arrependo mais de nada.

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06/02/2017

A Culpa (de Alma Welt)

Procurar, por ser humana, a redenção
De culpa incipiente e insidiosa,
Eis a carga que cabe, queira ou não,
A uma alma leal e generosa.

Tantas, quase sempre impenitentes,
Vivem como se viver não fosse nada,
Apenas um pãozinho na fornada,
Um prato de lentilhas sem as lentes... *

A lembrança do pecado original,
Injusto, discutível mas provável
Não permeia toda alma por igual,

Mas a sombra da morte, essa sim,
Nos assombra a todos, nada amável,
E como fosse culpa a sinto em mim.

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07/02/2017

Nota
*Um prato de lentilhas sem as lentes - alusão ao engodo de Jacó ao trocar o direito de progenitura de Esaú, seu irmão, por um prato de lentilhas. Lembrando que lentilhas significam pequenas lentes (de aumento)...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A Fada Verde (de Alma Welt)

                                                                                  Absinto- Edgar Degas

A Fada Verde * (de Alma Welt)

Senhor Deus, livrai-me da amargura,
Aquela mesma dos poetas dos Cafés,
Ou dos mestres menores da pintura
Que escondiam haxixe em seus bonés;


Outros grandes, repletos de absinto,
Todos os que a Fada Verde amavam
E cujo desespero ainda sinto
Tão longe da Paris aonde estavam...

Sou poeta de outro tempo e espaço
De outros longes tenho a vista plena,
Da coxilha meus poentes, não do Sena.

Entretanto como eles me desfaço,
Diante da solidão e tanta sede,
De mim mesma minha pobre fada verde...

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06/02/2017

Nota
*Fada Verde - O absinto foi especialmente popular na França, sobretudo pela ligação aos artistas parisienses de finais do século XIX e princípios do século XX, até a sua proibição em 1915, tendo ganhado alguma popularidade com a sua legalização em vários países. É também conhecido popularmente de fada verde (la fée verte) em virtude de um suposto efeito alucinógeno. Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Van Gogh, Oscar Wilde, Henri de Toulouse-Lautrec, Edgar Allan Poe e Aleister Crowley eram adeptos da fada verde. (Wikipedia)



Balanço da vida (III) (de Alma Welt)

Arremedo, chiste, uma anedota,
Eis o que se tornou tua existência.
No final, de um a dez, qual é a nota,
Os frutos que colheste da experiência?

Um balanço da vida é necessário
Embora agora pouco vá adiantar;
Perdeste meia vida num armário
Ou na frente da TV a zapear.

Querias um carro na garagem,
Feriados na montanha ou beira-mar,
E do ventilador tens uma aragem...

Tua hora do espelho é a do escanho
E a espuma branca do teu mar
Correrá para o ralo com teu ranho...

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06/02/2017

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Tem que ser mais (de Alma Welt)

Esperar muito tempo pelo amor,
E encontrando selar um compromisso
Agradecendo aos Céus pelo favor,
A vida tem que ser mais do que isso.

Esperar felicidade forasteira,
Vinda de fora enquanto estás na lida
E podendo te passar uma rasteira...
Mais do que isso tem de ser a vida...

Vê, tudo está em ti desde o começo,
E olhe que não sou de dar conselhos,
Eu mesma tive mais de um tropeço.

Felicidade de fora perde o viço,
E o amor não mora nos espelhos,
Tem que ser mais, a vida, do que isso...

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05/02/2017

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O trem fantasma (de Alma Welt)


O trem fantasma (de Alma Welt)

A grande dor do ser em existir,
Mais que verso fruto da experiência,
Malgrado o arcabouço branco rir,
É de modo geral uma evidência.

Mas estamos no Parque dos Amores,
Vejam, tem até um trem fantasma
Que nos levará por entre horrores,
Gritos, gargalhada, pranto e asma.

"Mas que visão mais negra, bela Alma!"
Me diz um novo amigo facebook
Dedilhando curtições em manhã calma...

Mas eu só respondo: "Me desculpe.
Paguei entrada no brinquedo "Cauchemar",
Eu também só desejava passear..."

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03/02/2017

A Macieira (de Alma Welt)

   
                                        A levitação de Alma Welt - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 150x150cm, 


A Macieira (de Alma Welt)

Contra a dor do mundo, desde cedo
Em mim mesma lutei o bom combate.
Uma luta constante em que não cedo
À tristeza insidiosa que me abate..

Bipolar nos pensamentos, reconheço,
Mas com uma vontade de alegria,
Volto tantas vezes ao começo,
O alvorecer de antiga fantasia...

Ah! Infância minha, inesquecível,
Quase perfeita não fora mal de amor
Que se manifestou, reconhecível.

Pois no pomar, na macieira do pudor,
Haveria de alçar-me a outro nível:
O de toda a humanidade em sua dor...

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03/02/2017

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Do dom da vida (de Alma Welt)

"Do dom da vida façamos um bom uso".
Eis um bom dodecassílabo proposto
Por uma professora do meu gosto,
Introdutora feliz do verso luso.

E fui pra casa fazer o meu soneto
Que tão logo percebi começar mal
Pois sequer chegaria ao seu terceto
Devido à carga do seu tom conceitual.

Dormi e então voltei no outro dia
E lhe disse: "Bah! Querida professora,
Teu verso bem que tem sabedoria

Mas fica nele mesmo e cala a gente,
Depois dele pego a vida e vou embora,
No cabelo nem sequer passei um pente..."

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02/02/2017

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Os poentes do rei (de Alma Welt)



                                A cena do poente do filme King Kong, de 2005


Os poentes do rei (de Alma Welt)

Tudo é tão triste, convenhamos,
A vida, seus caminhos, descaminhos,
A morte nos persegue aonde vamos
Ou nos alcançará nos nossos ninhos.

Assim me fala o lado negro, realista,
Que nem devia ao mundo declarar.
Deixemos o ingênuo acreditar
Que a vida é bela e se conquista.

Mas então chega a hora do poente
E ponho-me sentada na varanda
E tudo se esclarece de repente.

E já não mais existe right ou wrong,
Sou como a moça ao lado do rei Kong
E uma imensa paz agora manda...

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02/02/2017