domingo, 26 de janeiro de 2014

O Naufrágio da Esperança (de Alma Welt)



                                 O Naufrágio da Esperança -Caspar David Friedrich 1824

O Naufrágio da Esperança (de Alma Welt)

Estamos, pois, navegando em alto mar,
Ou pensas que isto aqui é brincadeira?
Acaso avistas cais para atracar?
Atrás de nós somente nossa esteira...

O rumo é incerto, não há bússolas
Alguns de nós se guiam por estrelas,
Outros já a pele se abre em pústulas,
Estrelas ou feridas, vamos vê-las.

Quem na terra pense ter plantado os pés,
Ingênuo e semi-louco é certamente,
Ou vem fazendo uma leitura de viés...

Quando afinal nos apanha a tempestade
E a Esperança naufraga e nos desmente,
O portal atravessamos, na verdade...
 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Necessidade, mãe da Poesia (de Alma Welt)

 As Parcas e o fuso de Ananke
 
Necessidade, mãe da Poesia (de Alma Welt)
 
Do necessário nasce o meu poema
E nunca de uma simples veleidade.

O soneto é bom quando não teima
Em se impor por tédio ou por vaidade.

Ananke é minha deusa universal
Que sobreviveu aos velhos deuses
E veio justo parar no meu quintal
Atravessando o Tempo desde Elêusis.

Necessidade é o que me põe ativa
E por isso me sinto tão carente
Do puro verso que me mantenha viva.

Sim, à deusa entrego meu destino
Cujo fio ela cortará co’o dente
Após tanto fiá-lo, assim tão fino...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O Turbilhão (de Alma Welt)


William Blake- O Turbilhão dos Amantes (Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, no Segundo Círculo, do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri)

O Turbilhão (de Alma Welt)

Temos pouco tempo pra estar juntos
Qual espectros de passage
m pela Terra
Como trêfegos projetos de defuntos,
Alguns cantando enquanto a turba berra.

Vêde: a multidão se acotovela
Nas ruas e nas praças, nos estádios,
Ou cada um empunhando sua vela
Desde as catacumbas sob os gládios.

Pobres nós, humanidade tão festiva!
No enganoso lazer após a estiva,
Quê nos resta senão rir, nos esbaldar?

Nos debatemos nas águas e nos ventos,
Abraçados abrandamos mil tormentos
No turbilhão da vida, sem pousar...

sábado, 18 de janeiro de 2014

Palavras à Poesia (de Alma Welt)


Esboço da tela O salgueiro florido da Alma - de Guilherme de Faria
 
Palavras à Poesia (de Alma Welt)

Poesia, és tênue, rara, rarefeita...
Quantas vezes não consigo te alcançar,
Ponha-me ou não em vestes de colheita 
Ou pise uvas qual se fosse no lagar...

Caminhando minhas trilhas na coxilha
Que tanto, tanto, já me viram versejar,
Temo, às vezes, me negues como filha,
E, ai Portugal, sinto perdido o meu lugar!

Sintonia busco, fina, tão difícil,
E rimas ricas que não sejam forçadas
Mas que caiam precisas como um míssil

Mas inútil se revelam, não alivia,
Pois preferes as primeiras pinceladas
Na tela do pintor quando vazia...

sábado, 11 de janeiro de 2014

A Usura (de Alma Welt)


 
 
A Usura (de Alma Welt) 

O quê podemos nós contra a Usura
Que nos cerca como sítio a um castelo,
E Pound disse ser Contra Natura
E de onde nada sai que seja belo?


Ao dinheiro todos fazem reverência
Mas refiro-me à essência e não à prática
Que pode vir cercada de excelência
Quando não se reduz à matemática...

Juros cobrados é o que nos escraviza
E faz de um homem simples, miserável,
E um solo estéril onde ele pisa.

O banqueiro é o guardião do meu Dinheiro
E se amiúde tem a face amável,
A raposa é quem guarda o galinheiro...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Quê podemos ? (de Alma Welt)




                             O País da Cocanha - Pieter Bruegel, o Velho 1567

Quê podemos ? (de Alma Welt)

Quê podemos nós fazer que o Tempo pare
Sem fugir pra paraísos perigosos

E alienantes fumaças rastafari
Ou sonhos de Utopia preguiçosos?

Só Arte, muita arte é a resposta,
Há muito tempo a solução sabemos.
Os náufragos já foram dar à costa
Embora haja quem procure os remos...

Deus, não o demônio, Arte nos deu
E queres mais, ó ser insaciável?
Tal maravilha por acaso não valeu?

Eu sei, és homem, ingênuo ser mesquinho,
Queres voltar ao Paraíso inolvidável,
Pra isso imitas Deus só um pouquinho...

O Tempo Suspenso (de Alma Welt)




                                 Sleeping Beauty - Victor Gabriel Gilbert 1847 - 1933

O Tempo Suspenso (de Alma Welt)


Quisera suspender do Tempo o curso
Tal como implorava Lamartine

No seu lago feliz, mas sem discurso,
Que tempo não há que não termine.

Mas enquanto ele corre, que agonia!
Passa o tempo e nele a juventude
E com ela o próprio sonho que me guia
E que acalentei enquanto pude.

Mas se velha eu ficar, do que duvido,
Possa alguém, um poeta, dedicar
A esta Alma um poema nunca lido

Mas feito para mim em minha velhice
Como o soneto famoso de Ronsard
Às rosas e ao Tempo, e que este ouvisse...


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Eis o soneto famoso de Pierre Ronsard (1524-1585) :

Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle,
Assise aupres du feu, devidant et filant,
Direz, chantant mes vers, en vous esmerveillant :
Ronsard me celebroit du temps que j'estois belle.

Lors, vous n'aurez servante oyant telle nouvelle,
Desja sous le labeur à demy sommeillant,
Qui au bruit de mon nom ne s'aille resveillant,
Benissant vostre nom de louange immortelle.

Je seray sous la terre et fantaume sans os :
Par les ombres myrteux je prendray mon repos :
Vous serez au fouyer une vieille accroupie,

Regrettant mon amour et vostre fier desdain.
Vivez, si m'en croyez, n'attendez à demain :
Cueillez dés aujourd'huy les roses de la vie.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Cigarra (de Alma Welt)


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 A Cigarra e a Formiga (gravura)
ilustração de Gustave Doré para a fábula de La Fontaine.

A Cigarra (de Alma Welt)

Fui tão feliz comigo, na verdade,
Que até me dá certa vergonha.

Ao redor, miséria e iniqüidade
Me indispõe um pouco com a fronha.

Cá neste belo pampa e casarão
O tempo se passou como num sonho.
Se plantei meus poemas no verão,
Inverno de sonetos já proponho.

Não me venha a formiga descompor
E desqualificar o meu talento
Pra rimar, metrificar, e pra compor.

A vergonha? Bem posso suportá-la.
Se outros prouveram meu sustento,
Vamos todos do vento para a vala...

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O Encontro em Samarra (de Alma Welt)




                               O encontro - foto de Geoffroy Demarquet

O Encontro em Samarra * (de Alma Welt)

Construamos nossa vida dia a dia...
Se o digo é porque há quem não o faça
E vá de roldão e à revelia,
Aos trambolhões ou em fumaça.

Viver é uma tarefa complicada
Que exige preparo e muita arte,
Do contrário tua vida é uma maçada
E é melhor tu ires a outra parte...

Na verdade não temos tal escolha
Pois temos que viver quase na marra
Antes que o Ceifador a todos colha.

Mas se pensas faltar à sua colheita
Mudando-te depressa pra Samarra,
Tens encontro, não farás essa desfeita...




*O Encontro em Samarra ( conto tradicional árabe)

"Havia um comerciante em Bagdade que mandou o seu servo comprar provisões ao mercado, e daí a pouco o servo voltou, pálido e trémulo, e disse: «Senhor, agora mesmo, quando estava no mercado, fui empurrado por uma mulher, no meio da multidão, e quando me voltei vi que fora a Morte quem me empurrara. Ela olhou-me e fez um gesto ameaçador; por isso, empreste-me o seu cavalo, e sairei desta cidade, para escapar ao meu destino. Irei para Samarra, e aí a Morte não me encontrará». O comerciante emprestou-lhe o seu cavalo, o servo montou nele, enterrou-lhe as esporas nos flancos e partiu tão velozmente quanto o cavalo podia galopar. Então o comerciante foi ao mercado e viu-me, de pé, entre a multidão; aproximou-se de mim e disse: «Por que fizeste um gesto ameaçador ao meu servo quando o viste esta manhã?». «Não foi um gesto ameaçador», respondi, «foi apenas um sobressalto de surpresa. Fiquei espantada por vê-lo aqui, em Bagdade, pois eu tinha um encontro marcado com ele esta noite, em Samarra».


Nós, Pandoras (de Alma Welt)


                                                  Pandora - Jules Joseph Lefebvre 1862

Nós, Pandoras (de Alma Welt)

Se ao fundo do Hades já descemos
E por divina graça retornamos,
Já não mais tememos deuses, demos,
E só com o Grande Chefe nós lidamos.

Fomos longe na tal bisbilhotice
Mas aconteceria, cedo ou tarde...
Povoamos esta terra de maldade
Por um pobre pecadilho, idiotice...

Mas, vêde, era só curiosidade!
A mesma da parelha original,
Tão pura e inocente, na verdade...

O mistério maior é a punição,
Que é cruel e desproporcional.
Façamos ao Supremo uma moção.
 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

As duas datas (de Alma Welt)


 
 
As duas datas (de Alma Welt)

Quem saberá de mim, depois de tudo,
Quando meu tempo se encerrar
E não for mais que um leito mudo
Com sua cabeceira lapidar?


Duas datas debaixo do meu nome,
Sugestivas para alguns poucos talvez,
Que lembrem da obra e do renome
Da poetisa que teve sua vez...

Báh! Quanta risível veleidade
Sonhar assim ingenuamente
Com outra vida, sim, posteridade!

Mas sonhar foi toda a minha vocação,
Desde os devaneios vãos da mente
Aos delírios mais profundos da razão...

domingo, 5 de janeiro de 2014

A vida (de Alma Welt)


 

Que coisa magnífica é a vida
Se podemos quase tudo experimentar...

Por dentro, que a alma é atrevida
Mesmo que, fracos, não saiamos do lugar!

Quê vôos, que mergulhos no indizível!
Quê aventuras de coragem e emoção!
Quanta loucura por nós mesmos risível
Quando plantado se mantém o pé no chão!

Toda a vida é interior, o resto é casca,
Aparência, por mais bela que demonstra
Sua feição que o tempo-vento masca.

Mas a sombra da maldade evitemos,
Que dentro em nós também ela se encontra,
E se adentrada não deixa que voltemos...

 

Alma exausta (de Alma Welt)














Alma exausta (de Alma Welt)



O quê mais quereis de mim? Me dei inteira
E já nem posso, a rigor, me recriar
Sem me sentir na banca de uma feira
Apregoando-me às dúzias, pra fechar...


Estou exausta, na alma fui promíscua
E dei-me em pérolas a torto e a direito
Quando mais deveria ser conspícua
E conservar-me sozinha no meu leito.

Báh! Bem que dizia a minha Matilde
Para eu restar em casa sossegada
E rezar para que ficasse mais humilde.

Dos cínicos não tenho a caradura,
A cada confissão fico arrasada:
Distribuí de graça a minha loucura...

sábado, 4 de janeiro de 2014

Palavras a uma donzela (de Alma Welt)





                                       Luar- Caspar David Friedrich (modificado)


Palavras a uma donzela (de Alma Welt)

Uma donzela quis bem mais saber de mim
Tendo lido o meu último poema,

Enquanto eu, cheia de escrúpulos por fim
Me senti enternecida mas com pena.

Ah! Jovem, se soubesses minha tristeza
Por minha escolha da vida em solidão,
Embora não trocasse essa clareza
Por uma forma diferente de visão...

Optei, sim, pela suprema lucidez,
Aquela mesma do limite da loucura
Que a outros mais parece estupidez.

E se agora te atrais por minha teia,
Cuidado, donzelinha que és tão pura:
Queimam-se asas na luz da lua cheia...

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A Senhora do Tempo (de Alma Welt)





                                                  foto: o Pampa devastado

A Senhora do Tempo (de Alma Welt)

Meus amores finalmente hão de voltar
Mesmo a terra estando pobre, devastada,

Se eu não tiver senão minha morada:
Esta casa, o jardim e o meu pomar...

Sou a senhora do tempo que foi meu
Pois que o dominei com minhas palavras
Em noites claras e outras como breu,
Em versos, minhas verdadeiras lavras.

O vinhedo? Esse foi-se com os ventos
Após tantas vindimas de alegria
Deixando agora gestos bem mais lentos...

Mas não lamento nada, que amei tanto
E plantei minha semente de poesia
No lugar das uvas secas e do pranto...

Contra a Peste (de Alma Welt)

O Doutor Peste - Máscara alemã da Idade Média

Contra a Peste (de Alma Welt)

Estar no mundo, entregue, desarmada
Só não de beleza e mente alerta
É a prerrogativa, minha, desejada
Por mim, desde que minh' alma foi desperta

Pela poesia que é dom de mergulhar
E ir mais fundo no coração das gentes
Ou mesmo o nosso então compartilhar
Com outros parecidos e exigentes...

Mas, por quê?- perguntas- O que ganhas?
Isso acaso aumentará o teu poder
Sobre o teu destino e suas manhas?

Sim, é isso mesmo, tu o disseste:
A poesia, se não aumenta o teu saber
É o único remédio contra a peste.