sábado, 30 de junho de 2018

Frios de Julho (de Alma Welt)

Frios antigos, de Julho, tão amados
Malgrado o meu severo minuano,
Que desde o território castelhano
Sempre vinha por aqui dar os costados...

Eu amava caminhar pelo vinhedo
Envolta no meu pala, e com luvas,
Quando eu acordava muito cedo,
Meu vaporoso hálito entre as uvas...

E emanando de uma densa cerração,
Silêncio plano, pleno, inigualável,
Com um dedo a fazer ssshhh ao coração.

Mas de repente um grito de rapina
Muito agudo, rascante e implacável,
Abrindo no meu sonho uma ravina...

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30/06/2018

sexta-feira, 29 de junho de 2018

A verdadeira vida (de Alma Welt)

Belas manhãs de inverno em nossa estância
Quando todos levantávamos cedinho
Para olhar a geada no caminho
Da escola rural da nossa infância...

Foi tantas vezes esta rota percorrida
Que, como era sempre a mesma,
Eu então me perguntava se minha vida
Deixaria só o rastro de uma lesma...

Sim, o Tempo era lento e arrastado
Pois numa esteira rolante eu me sentia
Tendo atrás cenário belo, mas pintado.

Mas ah! quando um livro eu abria
O mundo era bem mais movimentado
E a verdadeira vida aparecia...

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29/06/2018

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cantos de amor (de Alma Welt)

"Como posso o meu amor cantar
Se tantos já o cantaram bem melhor?
Se os mais sublimes saberei de cór
Ou de imediato deles vou me apropriar?

Assim dizia por candura a minha amiga
Que pensava ao Amor algo dever
Enquanto eu a afagava sem intriga,
Pois ela já o cantava sem saber...

O coração se abre, não apreende.
Seu erro é inocente o mais das vezes,
E um tanto de beleza sempre rende.

Que mudo seja não conheço amor:
Seu canto ainda dura muitos meses
Depois que as cinzas perderem seu calor...

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28/06/208




Love Songs (by Alma Welt)
(transliteration by Lucia Welt)

"How can I my love sing smart
If so many have sung it much better?
If the most sublime I will know by heart
Or will I immediately read the letter... "

So said by candor my friend
Considering she was in debt to the love
While I stroked him without lend
Because she already sang it like a dove.

The heart opens, does not apprehend.
His mistake is innocent most of the time,
And some beauty always stand...

I do not know a love that can not sing
His singing still lasts in ryme
After the ashes lose their heating ...

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06/28/208

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Os risos perdidos (de Alma Welt)

"Os poetas são tristonhos, Deus me livre!"
Assim se expressou a minha irmã
Quando eu era pequena, uma manhã,
E foi como um choque que então tive...

Não! Meus dias seriam muito alegres,
Escreveria uma Ode à Alegria
E gatos pretos não daria, mas só lebres,
"Não serei uma chorona", eu disse... e ria.

O tempo passou, vieram os mortos
Então voei, viajei para outros portos
E levei comigo sua lembrança...

Então voltei e me olhei no espelho,
Meu cabelo ainda era vermelho,
Mas meu riso não era o da criança...

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27/06/2018

A eterna rebelião (de Alma Welt)

Vão-se as horas e os dias como folhas
Levadas por imponderável vento,
Tornando inúteis e falsas as escolhas
Ou reduzidas a inerte pensamento.

"Tudo é inútil"... me diz a consciência,
Mas meu coração é posto em brios
Pela vaidade resistente, em calafrios
Sacudindo-me na minha desistência.

Tão desqualificado orgulho humano!
Como se erguem os fracos e vencidos
Para um novo levante ou novo engano...

Senhor, se não queríeis rebelião
Por que nos poupastes, presumidos
E tão vaidosos da Arte e da Razão?

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27/06/2018

Anti-poesia (de Alma Welt)

Minha prudente ex babá, a Matilde
Temia que eu ficasse pra titia
Com a minha mania nada humilde
De dedicar corpo e alma à Poesia....

Já contei isso mil vezes, na verdade,
Mas o faço agora pra mim mesma
Não só devido a esta saudade
Que está a tornar-me uma abantesma,

Mas porque minha saudade é o meu melhor
Já que não carreguei ressentimento,
O que por certo seria bem pior.

Me perdoem, estou a ser conceitual
Isto aqui não é poesia, é pensamento.
Quero voltar a ser poeta, meu normal...

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27/06/2018

A parábola convexa (de Alma Welt)

Sim, cada um de nós possui uma quota
De alegrias e tristezas alternadas
Para fruídas serem ou suportadas,
Exceto o homem fútil e o janota:

Estes vivem qual se fácil fosse a vida,
Risonhos cegos na beira do abismo
Ou bêbados pra quem álcool é a comida,
Ou idiotas que ainda creem no comunismo.

Assim falava meu pai, a mim, perplexa,
Que era só uma guria inocente
Querendo mais ser feliz eternamente...

E então, numa parábola convexa
Morreu meu pai e sua morte confirmou
O abismo cego, que só ele me alertou...

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27/06/2018

terça-feira, 26 de junho de 2018

As rosas no pó (de Alma Welt)

"O mistério da Razão, eis o mistério
Que desafia a própria razão nossa,
Pois ela é Deus em forma de critério
Ou o Diabo de nós fazendo troça"...

Assim dizia Frida Welt, minha avó,
Que ao podar rosas, retirando larvas
E ervas más que compartilham nosso pó,
Não eram necessárias nem palavras...

Minha avó era em si alegoria,
E eu sabia que se ela fosse muda
Suas ações teriam igual sabedoria.

Morreu Frida e eu voltei ao seu jardim
E só encontrei pó, terra desnuda;
Plantar rosas só cabia agora a mim...

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26/06/2018

sábado, 23 de junho de 2018

Em louvor de Alma Deutsher (de Alma Welt)

https://youtu.be/Nz0OAcYknyw

Em louvor de Alma Deutsher,
(prodígio musical infantil)(de Alma Welt)

Muitos de nós voamos muito raso, 
Muito já nos arrastamos sobre os pós,
Há quem não creia, pois, nos anjos entre nós
E no entanto há alguns deles ao acaso.

Alma Deutsher, eu a ti reverencio
Pois percebi tuas pequeninas asas
Invisíveis que são pro olhar vazio
Da maioria de nós em nossas casas...

Mas ao ver-te e ouvir-te ao piano
Eu caí de joelhos de imediato,
Admirada de estares neste plano.

Anjo puro de beleza e de talento
Tua origem celeste é, pois, um fato,
Tua música é Deus por um momento...

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24/06/2018

Palavras de minha avó (VIII) (de Alma Welt)

Se mantiveres o coração bondoso
Estás salva, não te corrompeste.
A bondade é ainda o maior teste
E da integridade o mais honroso.

Repara, todo desonesto é mesmo mau
Pois sabe bem que está prejudicando
E age torto como se fosse o normal,
E na ponta não estar alguém matando.

Então, minha Alma, eu bem te compreendi,
Quando tu te recusaste, eu percebi,
A brincar daquela "dança das cadeiras".

É bem possível viver sem disputar
Como também sem passar rasteiras,
Quanto mais pisar cabeças pra galgar...

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23/06/2018

Palavras de minha avó (VII) ( de Alma Welt)

Quando afinal, Alma, ao mundo fores,
E então perdida na grande multidão
Te lembrarás de mim entre estas flores,
Este jardim, a varanda, o casarão...
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E lembrarás que eras feliz e mal sabias
Com esta tua inquietude de saber
Tudo aquilo que com olhos teus não vias
E só sabias de ouvir falar ou ler...

E por fim perceberás que não havia
Nada aqui que não fosse essencial,
Que não tivesse do mundo uma fatia.

O todo está inteiro em cada parte
Por isso é cada minuto tão fatal,
Por isso a verdadeira vida é Arte...

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23/06/2018

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Um simples resfriado (de Alma Welt)

Um simples resfriado ou dor de dente
Põem abaixo o ânimo do herói
E revela a imagem decadente
Que, inútil, nosso esforço, só, constrói.

Tal é a patética humana condição,
Que o astuto Ulisses aceitava
Em conversa com Circe meio brava
Por ele recusar sua ascensão.

Mas esse homem, frágil entre procelas,
É capaz de novamente alçar as velas
E enfrentar os deuses irritados...

O sonho de voltar, eis o segredo
De toda humana força no degredo
Deste mundo, mero campo de exilados.

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20/06/2018

terça-feira, 19 de junho de 2018

Fundamentos do absurdo (de Alma Welt)

Absurdos são a vida e o mundo
Diante da Razão que nós herdamos
Quando num impulso de um segundo
Fruímos do tal fruto que furtamos...

Nada mais fez sentido, fez-se o caos.
Muito antes da torre de Babel
Já estávamos confusos, tolos, maus;
Caim, coitado, já fizera seu papel.

Tardou-nos perceber que o Paraíso
Continuava a ser nosso cenário,
Pois formamos antagônico juízo.

À beleza que nos oprime agora
Contrapomos o nosso imaginário
Em que a inveja de Caim ainda mora...

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19/06/2018

Teoria e Técnica da invisibilidade (de Alma Welt)

Aplicada, minha mãe quis me ensinar
As estratégias pra invisível me manter,
Começando por deixar de escrever
Asas cortando-me para eu jamais voar.

Ela dizia: "Minha filha, fique quieta
E se possível muda como um peixe.
Entretanto caminhe sempre ereta
E não de lenha carregando um feixe."

"Jamais fale de si mesma ou da família.
O sofrimento esconda por indigno;
Misture-se depressa com a mobília .

"Amaldiçoa em ti tua poesia
Renunciando afinal a esse teu signo
Rebelde, que me olha com ironia..."

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19/06/2018

domingo, 17 de junho de 2018

O poder secreto da Poesia (de Alma Welt)

Às vezes penso que brincar com a Poesia,
Como lidar com a integridade de uma célula,
É confundir borboleta com libélula
E esquecer do átomo a energia.

Porque que sinto que a poesia é poderosa
Pois traz em si, secreto, algo latente
Muito além do que pode a simples prosa
Que muda um conteúdo ou continente,

Não que possa causar uma explosão
Ou o simples poder mágico de um gozo
De transfigurar a vida e o mundo,

Mas um poder de coração pra coração,
Como o boca a boca milagroso
Para quem, de si mesmo, viu o fundo...

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17/06/2018

A fonte secreta da Poesia (de Alma Welt)

Em que estás a pensar?- arguía meu pai
Como o facebook agora o faz...
E eu pensava cá comigo: Agora vai,
Vou abrir-me e talvez consiga a paz.

Mas não: meu coração tem um segredo
Que não consigo claramente exprimir,
Não por pudor, incompetência ou medo
Mas porque é denso demais pra dividir;

Ele é fonte da poesia como um surto
E que carrego qual pecado original
Ou trago comigo como herdeira,

Como a pulsão de Adão e Eva para o furto,
Anterior ao simples ato criminal
A que seguem as desgraças como esteira...

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17/06/2018

sábado, 16 de junho de 2018

O Medo (de Alma Welt)

Tenho medo da solidão da Morte,
Como o Corisco no meio da caatinga, *
Medo do frio que sobrevém ao corte,
E do silêncio que finalmente vinga.

Tenho medo do aniquilamento
Do ego longamente acalentado
Para nada, ou vislumbre de momento,
Para logo se apagar não anotado,

Duas datas somente, o tal resumo
Da ópera que foi a nossa vida,
Talvez um epitáfio como sumo.

Por isso arte, Arte, luta contra o Nada
Uma ilusão talvez, ingênua lida
Da alma eternamente inconformada...

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16/06/2018

Nota
*Tenho medo da solidão da Morte,
Como o Corisco no meio da caatinga - Alma está certamente aludindo ao belo monólogo do cangaceiro Corisco de São Jorge, o Diabo de Lampião, no filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", vivido  maravilhosamente pelo grande ator Othon Bastos,  na obra-prima de Glauber Rocha: "Tenho medo da Morte, Silvino. Tenho medo do frio e da solidão da Morte... " No filme segue-se uma maravilhosa oração de fechamento do corpo do personagem Corisco, sempre em forma de monólogo poético.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A Divina Justiça (de Alma Welt)

Clamei: Senhor, vejo justiças desiguais:
Pois conosco foram expulsos os animais
Que sem terem provado Vosso fruto
Vagam eles na terra em estado bruto,

Lutando, sofrendo, trabalhando
Como se deles também fosse o pecado,
Somente a dura terra não lavrando,
No mais, igual pesado e duro fado...

Francamente, não entendo essa "Justiça"
Que junto com seu dono pune o cão
Assim como a gazela e o leão.

E Deus me disse: "Ó Alma insubmissa,
Espera que tua batata está assando!
Está boa, Eu Mesmo andei provando"...

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15/06/2018

Sem conselhos (de Alma Welt)

Na vida sempre evitei aconselhar,
Nunca me verão dar um conselho,
Mas meus pecados me veem até rolar
Como bola de estrume o escaravelho.

Ousar ditar regras não é comigo,
Talvez seja centrada em meu umbigo
E assim sou exemplo de não ser;
Disponham, não precisam agradecer.

Me disseram porém que causo inveja
E fiquei perplexa com a notícia:
Comemorei com rima falsa de cerveja.

Enxergo a nudez nossa sem malícia,
Não como à roupa daquele pobre rei,
Que às vezes me dou conta de que a herdei...
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15/06/2018

Minha bela Moira (de Alma Welt)

De tempos em tempos dou com ela,
A Moira, que parece me gostar
E me aborda com um olhar que mela
E um sorriso lindo, de encantar.

Mas, Alma, não é assim que a Moira é vista!
A julgar pelo que lemos nos compêndios
A aparência dela é mais sinistra,
Mais como mendiga em seus remendos...

Com um chapéu de plumas demodé
A convidar-nos para a acompanhar no "thé",
Outros mesmo a veem como Madame.

Mas minha Moira é jovem e sedutora:
Me dá vontade de com ela ir embora
Desta minha bela ópera de arame...
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15/06/2018

O Trato (de Alma Welt)

A vida exige certo afastamento
Para ser plenamente aproveitada.
Demasiado envolvidos no momento
Não enxergamos do todo quase nada.

"Mas, Alma, não propões o "aqui e agora"?
Não consiste nisso a tua doutrina?"
Ora, amigos, isso apenas foi outrora,
Joguei tal filosofia na latrina...

Para fruir da vida o puro extrato
Fiz com o meu anjo um simples trato:
Que me deixasse preservar minha criança.

E assim vivo agora duas vezes:
Emendando meus sonetos de revezes
Com as minhas memórias de abundância...

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15/06/2018

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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Francamente ... ou Os Pelicanos (de Alma Welt)

Vivo às custas de pintura e de poesia,
Ballet, cinema, ópera e até drama,
Somente isso o fardo me alivia
Sem o que nem sairia da minha cama.

Sem Arte a vida é idiota, francamente,
Me perdoe dizer isso, meu Senhor...
É verdade que contamos com o Amor,
Também Arte, ele, pura e simplesmente.

Reparem que sem esse recurso
O que vemos é um simples debater-se,
Ou da insensata nau diário curso.

Talvez mero ir e vir do mercadinho,
Com sacolas cheias a romper-se,
Pelicanos voltando para o ninho...

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14/06/2018

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O Camaleão (de Alma Welt)

Ver o mundo pelo prisma da poesia
Não é de modo algum dourar a pílula.
O poeta, sim, delira ou se extasia,
Sem do mundo mudar nem uma vírgula.

Também não é pura aceitação,
Não, de puro conformismo não se trata
Descobrir a beleza ao rés do chão
Quando, de quatro, seus próprios cacos cata.

Fidelidade não se julga, puro fato,
Nasce como as cores de uma flor
E determina não destino, mas pendor.

O poeta é multicor camaleão:
Me é difícil apontar predileção
Ao tornar-me tudo aquilo com que trato.

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13/06/2018

terça-feira, 12 de junho de 2018

Não me cobrem (de Alma Welt)

Vim ao mundo para dar minha poesia,
Não me cobrem senão o gênio ou quase,
Não queiram que eu trabalhe ou case,
Só um pouco de beleza a cada dia.

"Saí de casa, só com massa e pita".
Lembram do pequeno Malazarte?
Sou a última talvez que ainda o cita,
Exemplo de matreiro engenho e arte.

Minha beleza ajuda, é verdade...
Não falo isso, bem sabem, por vaidade
Quanto a isso não posso fazer nada.

Este meu fardo, bem sei, parece leve:
A solidão é uma tara não notada
Ao pesar-se na balança o que se deve...

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12/06/2018

As rosas de minha avó (V) (de Alma Welt)

"De lágrimas este mundo é mesmo o Vale,
Todavia embelezá-lo nós podemos,
Ou pelo menos deixá-lo "meno male",
Dificultando as coisas para os demos."

Minha avó alsaciana assim dizia,
Já por conta cultivando suas rosas
Que eram suas dádivas honrosas
Nesse processo simples de poesia

Que era não somente em si a flor,
(que esta vem na conta do Senhor)
Mas na sua relação tão paciente.

E eu ficava observando a velha dama
Que mudava o mundo em sua mente,
Sortilégio de quem quase tudo ama...

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12/06/2018

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Tributo (de Alma Welt)

Disse o bom padre: "A vida é para dar, *
Não para receber". Foi o que disse
Ajuntando, ao que Valjean ia roubar,
Um castiçal pra que partisse....

Nunca me esqueço do episódio
Fundamental daquele grande livro
Que li quando meu pai era ainda vivo
E que me eliminou da vida o ódio.

Fui viver a minha vida em plenitude
Norteada, pois, por tal sabedoria,
Entregando de mim tudo o que pude.

Se não esperas receber, então és livre
Entre aqueles a quem falta a Poesia,
A miséria é só pedir,  mal sobrevive...

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11/06/2018

Nota
*"A vida é para dar, não para receber."Frase fundamental, que muda a trajetória e o destino do personagem Jean Valjean no monumental romance Les Misérables, de Victor Hugo.

domingo, 10 de junho de 2018

O artista e sua lenda (de Alma Welt)

Indo ao mundo, saindo de minha cama,
Não demorei a perceber certo desprezo
Que mundo revelava, frio e teso,
Pelo artista genial antes da fama.

E meditando sobre isso, percebi
Que do soneto mesmo vale a emenda,
E o mundo aprecia mais a lenda
Que a própria criação, a obra em si.

Pensei até cortar-me uma orelha:
(não era mais, felizmente, original)
E ainda aprecio demais meu visual...

A sofrer muito, também, embebedar-me
Sem necessitar tal fogo, na centelha,
Preferi a alma nua: o desvelar-me.

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10/06/2018

Últimos conselhos de meu pai (de Alma Welt)

"Já não és, Alma, guria como antes
E estás prestes a voar, a ir ao mundo...
Eis um conselho útil: sim, vá fundo,
Mas cuidado com os "insinuantes"!

"Quem são eles? São aqueles prestativos
Demasiado sorridentes e gentis,
Charmosos demais, demais ativos
Naquelas vênias e obséquios servis".

Sombras saídas das literaturas
Eu ouvia meu pai atentamente
Tentando imaginar essas figuras...

Já não crendo no mundo, no seu gozo,
O desencanto emanava de sua mente
E eu olhei meu belo pai: estava idoso...

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10/06/2018

sábado, 9 de junho de 2018

O Primado da Inocência (de Alma Welt)

Quisera ser alegre, ó meus amigos,
Rir à toa como em tempo de criança,
Correr por correr em meio aos trigos,
Nos cabelos uma flor ou uma trança;

Olhar todas as pessoas com olhos bons
Exceto quando torvas suas feições,
Porque quem vê da cara os meios tons
Vê por certo, com acerto, os corações.

Acreditar que a vida é uma aventura
Excitante, sempre rica de vivência,
Por dela enxergar a essência pura;

Reconquistar, não qualquer sabedoria,
Mas aquela do primado da Inocência,
Que por pouco a gente não perdia...

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09/06/2018

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Spengleriana * (de Alma Welt)

Tudo está perdido e então vivemos
Nossas "possibilidades extensivas";
A descida é longa, então rememos
Contracorrente como sombras vivas.

De quê falas, Alma? Sê mais clara,
Estás a falar como as esfinges...
Essa prosa enigmática mascara
Uma desesperança que mal tinges?

Então concordas que o barroco
Foi auge da cultura do ocidente?
Crês que o Van Gogh foi um louco?

A decadência é longa e agonizante,
Nosso Poente mergulha lentamente
Em miséria cultural apavorante...

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08/06/2018

Nota
*Spengleriana - relativo à Oswald Spengler (1880 –1936) historiador e filósofo alemão que escreveu "A Decadência do Ocidente" em dois tomos, que parece, a julgar por este soneto, ter impressionado a Alma Welt. Segundo Spengler, o período barroco foi o auge da Civilização Ocidental, na pintura mural, por exemplo, culminando com a arte de Tiepolo (!!). Por sua teoria, do século XIX em diante, grande obras de arte que porventura surgiram e ainda surjam, são apenas "possibilidades extensivas" (expressão criada por ele), já que a decadência de uma civilização sempre se arrasta por séculos. Seu livro causou grandes controvérsias. Nota: Spengler não foi nazista e se opôs à teoria da superioridade racial e por isso foi expulso da Alemanha.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Profecia de cigana (de Alma Welt)

É difícil sabermos onde estamos
Nessa nossa estranha trajetória,
Pois com a sorte mesmo não contamos
Nesse mapa que é, às vezes, palmatória.

Sempre tive um certo fraco por cigana,
Quanto mais brega, cafona, charlatã.
Um tanto sinistra, quase insana,
Uma delas descreveu meu amanhã:

"Alma",- disse- "serás lida pelo mundo,
Não só por teus cabelos vão amar-te,
Mas já estarás num sono bem profundo.

E eu saí daquela tenda aliviada:
Póstuma sempre é a verdadeira arte,
Nada de novo que eu não soubesse... nada.

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06/06/2018

segunda-feira, 4 de junho de 2018

O Segredo do Soneto (de Alma Welt)

O grande segredo do soneto
Consiste nele se escrever sozinho
Bastando um mote ou moteto,
Um teclado, uma tela e um ratinho.

Mas sem a inspiração, o que nos resta?
Pergunta quem acha isso um mistério...
Eu respondo: na verdade é o critério
Que não deixa passar o que não presta.

Ora, Alma, isso é puro Descartes,
Sem o anjo que sopra somos nada,
E o poema mero fruto de descartes...


Bem... concordo, meu anjo paira e zela
Pela última sílaba lançada
Para só então soprar a minha vela.

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04/06/2018

O primeiro contato (de Alma Welt)

Tenho saudades, o tempo todo quase,
De mim, de minha pureza e inocência
Perdidas pelo fruto da ciência
Que busquei a partir de certa fase.

Eu quis saber do mundo pelos livros,
Depois in loco, aí, pelas estradas,
Mas fatos e pessoas eram mais vivos
Nas páginas escritas e ilustradas.

Meio abúlica pareceu-me a humanidade
Que pensei em despertar meio tossindo,
Tal era a minha, sim, curiosidade...

Só me lembro de gente indo e vindo
E de alguém que me olhou e ficou rindo.
Qual se eu é que não fosse de verdade...

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04/06/2018

domingo, 3 de junho de 2018

Ideal (de Alma Welt)

Para elevar o mundo a um ideal
Não temos base para a comparação;
O que vem de nosso âmbito mental
A marca leva, já, da imperfeição.

Do ideal, portanto, eu tenho medo
Pois é dele que deriva a derrocada,
Depois da opressão (parte do enredo),
O naufrágio, o fracasso da empreitada.

Alma poeta, não és idealista?
Como pode não sê-lo, uma artista...
Bem melhor o mundo quem não quer?

Estava escrito: "Ideal" (mote do orgulho),
Estandarte na mão do próprio Lucifer,
Antes da guerra, da queda, do mergulho...

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03/06/2018

sábado, 2 de junho de 2018

O Medo (de Alma Welt)

Deus não falou no "medo", em seu furor,
Limitando-se a citar suor e pão
E também ao terrível parto em dor,
Estes anátemas cruéis da expulsão.

Mas o medo... báh! o medo os supera
Como perfeita maldição a qualquer um,
Pois se a morte incontornável nos espera
Bem podia ser banal, sem dor, comum...

Mas não! Esse fantasma nos assombra
Pois de um minuto vivido, salvo e são,
Era do minuto a própria sombra.

Medo: lado mais mesquinho do castigo,
Nos retira o sabor do próprio pão
E duplica a dor que o parto traz consigo.

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02/06/2018

sexta-feira, 1 de junho de 2018

O poeta sorri (de Alma Welt)

Muita gente tateia como cega
Num mundo de teor indefinível.
O poeta, rebelde, não se entrega
Ao nível mais rasteiro do visível.

Visionário? Talvez... mas do real
Em sua forma mais perfeita
A que alguns chamam de Ideal
E pensam que se trata de receita...

O olhar desvelador é privilégio; 
Para alguns talvez cause receio
Para outros, supremo poder régio.

O poeta tateia em outro nível,
Como cego em meio ao tiroteio
Sorri, pois como corpo, é invisível.

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01/06/2018