domingo, 30 de janeiro de 2022

O poeta como vidente (de Alma Welt)

Pensar a vida ao mesmo tempo que vivê-la,
Prerrogativa é nossa, de poetas;
E se ao morrer viramos uma estrela,
Em vida alguns de nós somos profetas.

Rimbaud o disse com bem outras palavras
Na Lettre du Voyant, sua, famosa.
As pessoas, do presente são escravas,
Mas, vidente, o poeta, sofre e goza.

Ele viu homem e mulher dadas as mãos
E juntos caminhando lado a lado,
Não só como parceiros, mas irmãos.

Quanto a mim, não postergo meu encanto:
Lhes doo meu presente já encantado,
Eu, Alma, solitária, de amor tanto...
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30/01/2022

sábado, 29 de janeiro de 2022

Por quê escrevo versos (de Alma Welt)

Escrevo um verso se quero ver mais fundo,
E a vida ante meus olhos flui e corre
Como, dizem, ao moribundo ocorre
No espantoso e último segundo...

E o mundo começa a tomar forma
Numa espécie de gênese modesta
No ventre da mulher que, simples, gesta
À espera do trem na plataforma...

Mas enquanto espero que o trem passe
Continuo a criar o meu cenário
De um pequeno universo rico e vário,

A esperar que configure uma visão
Que, se não revelar-me a Grande Face,
Deixe ao menos ver dos anjos o roldão...
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29/01/2022


sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

A Cegonha (de Alma Welt)

Para me reconstruir basta lembrar
A criança que fui em minha estância
E os revérberos felizes da Infância
Voltam depressa para me iluminar...

"Mas não foste assim feliz o tempo todo,
Ó Alma, incoerente e mentirosa!
Nos contaste teus escorregões no lodo
E as sombras na tua vida cor de rosa!"

Mas na infância (me defendo) sempre flui
Por si mesmo o sentido da existência
Pois que é o Jardim nosso da Inocência...

Não vejo algum motivo de vergonha,
Já que quando com meu mano expulsa fui,
Eu ainda acreditava na cegonha...
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28/01/2022



Catarse (de Alma Welt)

No mais das vezes a vida é só conflito,
Pelo menos a vida em sociedade.
E Isso aborrece, é sono com mosquito,
É mau, é feio, é ruim à saciedade...

Há quem goste, é verdade... é instigante
Pra quem de sobra tem testosterona
Mas eu, que nem sou muito chorona
Estou farta, enojada... é degradante.

E eu tenho que dar mão à palmatória
Vejo crime e quero ver o fim da história,
O grego antigo falava de "catarse"

E nem sempre é justiça, mas vingança
Que nem mesmo necessita de disfarce
Pois na lógica do mundo o Mal avança.
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28/01/2022

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A Leoa e a Corça (de Alma Welt)

Como corça ando a esmo na coxilha,
E é onde me sinto menos só
Embora dela não seja mesmo filha,
Mas de um acostamento e puro pó.

Meu pai (isto contei diversas vezes)
Cortou o meu cordão com o canivete
Suíço, mil funções, e não gillette
Como fala a minha mãe de seus reveses.

Em em vez de álcool, Steinhaeger no cordão
Em meio a um gole e outro pra dar força
Porque parto é sempre dose pra leão...

Mas malgrado os percalços de nascença
Enquanto a leoa em mim não vença
Não importam os começos: sou a Corça.
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27/01/2022

Romanesca (de Alma Welt)

Romanesca, disso tenho consciência,
Ninguém disso me acusa todavia,
E o leitor me lê com complacência
Atribuindo aos velhos vícios da poesia.

Mas não conheço um só poeta bom
Que não tenha um pé no romantismo
Desde "as neves de antanho" do Villon
Até de Werther o amor-paroxismo.

Mas se evito o soneto das origens
Ou epigramas de amor ou sedução
É porque tenho o tal pudor das virgens.

Mas no fundo sei que estou mentindo:
Guardo em cada verso mais paixão
Do que posso consentir que estou sentindo...
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27/01/2022

A Antena (de Alma Welt)

O mundo da Poesia é infinito
Como é o cabedal da melodia;
Não se pode esgotá-lo: é como um rito
Que igualmente se renova todo dia.

O primeiro verso cria o assunto
Que será tanto melhor se controverso
Pois o tal lugar-comum é um defunto
Que perde seu lugar neste universo.

Resumindo: a Poesia é um mistério
Pois impõe verdades nunca ditas
Que dependem de seu próprio critério.

Ao poeta não adianta refutar
Já que ele tem antenas nada aflitas,
E passa adiante o recado que calhar.
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27/01/2022

A Mão do Sal de Alma Welt)

O quê posso fazer se o mundo é mau?
Eu perguntava quando era uma guria.
"Mas não é mau nem bom"- meu pai dizia-
"E caberá a ti dosar a mão do sal."

Não que meu pai fosse bom de culinária
Mas tinha um olhar bem mais profundo
E não levantava a voz contrária:
Pois não era palmatória deste mundo...

Não perca tempo, Alma - ele dizia-
Em apontar as falácias e os erros.
Se dedique ao sonho mesmo da Poesia

Mas não faças jamais dela teu palanque:
Como os que o fazem em seus desterros
Sem que, em si, rancor e mágoa estanque...
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27/01/2022

A Volta ao Poente (de Alma Welt)

Há tempos não sentava em minha varanda,
Na cadeira de balanço da minha avó.
Para olhar o seu poente como anda,
Desde quando ela morreu e me vi só.

Mas a contemplação soou mais triste
Do que quando eu sentava no seu colo
E ela apontava o dedo em riste
Para o sol, por meu olhar fora do polo...

É que eu olhava seu semblante iluminado
Para ver a eternidade em sua face,
O poente já em si incorporado.

E agora vejo então que eu não sabia
Que assim Deus se despia de um disfarce
Para estar entre nós no fim do dia....
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27/01/2022

O Tempo da Poesia (de Alma Welt)

Estar no mundo como se mundo não fosse,
Estar a passear na minha história,
Celebrar o momento em sua glória
Simplesmente porque foi e acabou-se...

Eis a postura que adotei como poeta
Mesmo não sendo, por assim dizer, geral,
Pois há quem tenha o passado como meta
Ao tentar reconstrui-lo no quintal...

Mas, Alma, falas muito em tua avó,
E ao que parece, com muita nostalgia
Dessa matrona que há muito está no pó!

É que criança sou de trás pra adiante:
Vivo apenas no tempo da Poesia,
Que é aquele de colher a flor do instante...
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27/01/2022

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O Mistério do Heterônimo ou A Lente da Poesia (de Alma Welt)

Estou inteira em cada verso escrito
Mas meu mistério está só nas entrelinhas
Naquilo que é o dito por não dito
E cujas chaves não cedo nem são minhas.

O soneto me condensa e me compõe,
Me dá esta feição e anatomia;
E tingidos pela heteronomia,
Cabelos ruivos como o sol quando se põe.

Quer dizer que não existes de verdade?
Me pergunta o leitor estupefato,
De sua musa já ficando na saudade...

Bem mais que a maioria, um ser vivente,
Sim, estou viva e sou real de fato,
Não me troco por lentilhas: sou a lente...
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26/01/2022

A casca da cigarra (de Alma Welt)

Uma luta na verdade me define,
E essa mesma é só contra a tristeza.
Não tenho pretensão de ter firmeza,
Nem canto só na morte como um cisne.

Passo a vida a cantar como a cigarra,
Justo a qual, de tão efêmera que vem
Ao tronco das árvores se agarra
Pra mais perene uma casca ser também.

Ser poeta para muitos causa riso,
Quando não laureado como o Dante
Que viu de perto Inferno e Paraiso.

Mas em versos, eu que adoro singeleza,
Ponho flores numa jarra como amante,
Qual se fosse receber a realeza...
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26/01/2022

O Toque de Primavera ( de Alma Welt)

Perguntaram-me por quê minha solidão,
E esta minha procura descabida
De algo muito além do casarão,
Latifúndio que me coube, de saída.

Dizem: "Vens de privilégios obtidos"...
Como para me fazer parar de andar
Nesta procura inútil de sentidos
Da qual nem estou a me queixar.

Mas, quê dizes? Estou só a fazer versos
Para que o mundinho com que lidas
Se amplie em pequenos universos

Como se o toque só coubesse a mim.
Não que mude tudo em ouro, como Midas,
Mas que a boa primavera trás, por fim..

26/01/2022



domingo, 23 de janeiro de 2022

A princesa extraviada (de Alma Welt)

Pensei tanto abandonar o meu pintor,
Deixá-lo por espécie de vingança
Já que o velho me prendia por amor
E contava que isso fosse uma aliança.

Era eu jovem criatura aprisionada
No imaginário estranho de meu mestre
A vagar eternamente extraviada
Romântica, anacrônica e pedestre.

Quantas vezes rebelei-me, em vão fugi
Como princesa perdida na floresta
Exausta e esfarrapada, por aí...

Mas meu criador, à minha procura,
Dizia: "Veja, Alma, seja honesta,
Estás pronta? Dez colchões e a cama é dura"... *
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23/01/2022
Nota
*Dez colchões e a cama é dura"- Alusão ao famoso conto de fadas "A Princesa e a Ervilha". Pensando bem, a minha criação da personagem Alma Welt, por ser arquetípica (Anima Mundi) tem contornos de um grande conto de fadas contemporâneo.
(Guilherme de Faria)

Alma Galatéia Rebelada (de Alma Welt)

O soneto é a memória minha, viva,
Já que vivo através dele o dia a dia.
Para entender tão louca afirmativa
É preciso saber que sou Poesia

No sentido literal dessa palavra,
E porque, sim, sou a bela Galatéia
De um artista da velha Paulicéia
Que agora quer assumir a minha lavra.

Agora é tarde, velho louco de tua Arte!
Como a outra vivo livre minhas paixões
E meu navio te deixo a ver, que parte...

Perdeste-me, ou quase, sou do Mundo.
Só dependo da tua mão os comichões,
Mas meu ser, do que o teu é mais fecundo...
.
22/01/2022

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Flores secas (de Alma Welt)

Coleciono meus amores nada escassos
Mas não como belas borboletas
Espetadas nas tais caixas de coletas,
Nem tampouco como rol dos meus fracassos.

Mas mais pra flores secas entre páginas
Como eu já tinha, de guria, em meu diário,
Por um nada, corriqueiro ou ordinário,
Mais pelo efeito futuro que imaginas...

Mas quando eu os reviso, meus amores,
Não posso evitar suspiro súbito
E se não furtivas lágrimas, rubores...

Mas quem me visse repassando a coleção
Talvez desse com o meu dorsal decúbito
Co'a sempre viva flor nos dedos, da paixão...
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21/01/2022

A Dança das Cadeiras (de Alma Welt)

Quando quis sair de casa (me achei pronta)
Meu pai apenas disse: "Seja atenta.
Não vá rolar ao léu, não vá de tonta,
Na dança das cadeiras olha e senta."

Então saí pro mundo, queixo erguido
Afetando segurança que eu não tinha
Era jovem e bem mais que bonitinha
E já deixara mais de um peão perdido.

Mas o mundo não era como os livros
De enredos já filtrados e escolhidos
Personagens parecendo bem mais vivos...

E percebi que só somos nossa sombra:
A tal última cadeira nos assombra
Mesmo com nossos traseiros encolhidos...
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21/01/2022

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Meu espaço-tempo (de Alma Welt)

À do tempo eterna fuga sempre atenta,
E sem par nessa feição entre os amigos
Para quem a vida é longa e muito lenta
Ou contada a partir dos seus umbigos,

À "passagem das horas" faço eu versos
Como o Pessoa o fazia sendo Campos, *
Conquanto os meus campos, tão diversos,
Mais regidos pela relva e pirilampos...

Dos meu versos, os tornando mais enxutos,
Romântica tardia mas não tísica,
Conto sílabas e não fatais minutos.

Pelo meu espaço-tempo, sim, passeio
(nada a ver com ciência e astrofísica)
A colher flores e cheirá-las contra o seio...
.
20/01/2022

Nota
*Como o Pessoa o fazia sendo Campos - Fernando Pessoa, na pele de seu mais notável heterônimo, Álvaro de Campos, tem um longo, maravilhoso, dramático e famoso poema Intitulado "A Passagem das Horas".

De volta ao vento (de Alma Welt)

                          Alma e o vento - o/s/t de Guilherme de Faria, 2022, 40x40cm


De volta ao vento (de Alma Welt)

Por um tempo em Babilônia residi, *
Na Avenida me misturei ao povo; *
Flertei com a flor do lumpen, me perdi, *
Então sonhava voltar pro lar de novo.

Flor atônita, desraigada, em pleno ar,
Minha corola rubra mais ardia
Em protesto contra minha covardia
Pela ânsia de fugir e de voltar.

Para o ar então joguei a veleidade
De ser mais cosmopolita e de mamar
No seio farto e disputado da cidade.

E voltei para estes páramos perdidos
Onde o vento uiva só pra me lembrar
Que o minuano e eu somos unidos...
.
20/01/2022

Notas
*....em Babilônia residi- Alma se refere ao tempo de seu autoexílio em São Paulo, por motivo de desgosto pela morte de seu pai.

*Na Avenida me misturei ao povo- Alma se refere à Avenida Paulista.
 
*Flertei com a flor do lumpen, me perdi - Alma alude ao caso que teve com um belo travesti de nome (de guerra) Lea Leandro, que ela conheceu na Avenida Paulista, e levou para seu apartamento nos Jardins, caso este que ela revelou num belo e dramático conto longo (de duas partes).

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Tempestades (de Alma Welt)

“O mundo está a desabar”, a avó dizia
Quando aqui começavam tempestades,
E sabia o quanto a mim me divertia
Exageros, hipérboles, “boutades”...

Nem medo eu tinha dos raios e trovões:
Ficava a imaginar Odin e Thor
No Walhalla em grandes reuniões
A narrar suas próprias sagas, sim, de cor...

Mas um peão esbaforido ao meu pai veio
E gritou: “O raio o fulminou, ó meu patrão!
Está debaixo do umbu partido ao meio.”

Comecei levar a sério os elementos:
Pra abrandar seus fatais temperamentos
Pedi a Odin e Thor mais compaixão...
.
19/01/2022

O Riso e o Toque.. (de Alma Welt)

Minha mãe considerava a vida triste
E tentava nos passar essa penumbra;
Vivia como um pássaro, de alpiste,
Mas jamais na altura que deslumbra.

Do Vale Lacrimoso firme crente,
Olhava o meu riso como escândalo
Para o silêncio de sua mente,
E à sua catedral ataque vândalo...

Então, eu, por meu lado mais brilhava
Com de todos os demais o beneplácito
Ao meu riso cristalino que encantava.

Luz e sombra, sempre, embate eterno...
Não, não! Talvez fosse acordo tácito:
Sua mão de mãe senti num toque terno!
.
19/01/2022

Conhece-te... (de Alma Welt)

Ser-se a si mesmo é o mais difícil
Pois a nós mesmos precisamos conhecer,
E a mais íntima verdade é como um míssil
Desabando sobre nós no amanhecer...

Primeiro mestre, meu bom pai, assim dizia,
Me retirando os véus da consciência,
Mal preservando-me a inocência,
Ao repassar-me quase tudo do que lia.

Só muito erro, nas ideias e na ação,
Acarretando-nos culpas e desgostos
Mereceria a total revelação ?

Mas a tal íntima explosão, ao pensar nela
Não encontrava em mim seus pressupostos,
Meu coração abria-me a janela...
.
19/01/2022

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Teogonia (de Alma Welt)

Penso em Deus em tudo que admiro
Quê digo? Em qualquer coisa mesmo!
E com isso ao Infinito me refiro
Quando vejo o pó no ar dançando a esmo.

Eis a alma: Psiqué!- dizia o grego,
Quando à contraluz via essa dança,
Pois de um fio de pó no ar (ó desapego)
Se retorna não sabemos, ou se avança.

Não há chegada, e logo, nem adeuses...
E por isso, essa intuição do arquétipo
Antes mesmo da criação dos deuses.

Alma sou, e se me olhas com ar cético,
E se sou mais que criação talvez duvides,
Vê: comigo em ti o ar e a luz divides....
.
11/01/2022

Nota
* Teogonia - O nascimento dos deuses a partir de arquétipos (princípios primordiais: sem começo nem fim). A Alma Welt aqui se revela uma órfica, adepta das teogonias gregas, na verdade uma "órfico- pitagórica", como aliás, no fundo (e tardiamente) o próprio Platão (vide o seu Mito de Er, com a descrição do Fuso de Ananque, no diálogo A República).

domingo, 9 de janeiro de 2022

                      O Coração da Árvore da Vida - o/s/t de Guilherme de Faria, 1998-2022, 40x40cm


O Coração da Árvore da Vida (de Alma Welt)

Aproximei-me da Árvore da Vida,
E vi seu rubro coração numa ramada
Que palpitava leve, emocionada,
Ou era a brisa que a punha assim mexida.

Esse sono imortal da Natureza
Há muito descobri, sintonizei-o;
Ele sonha com Deus em sua beleza
Mas guarda pesadelos no seu seio...

Mesmo inocente então pedi perdão
Pela humanidade ainda em mim
Que furtara o antigo fruto da Razão.

Então a Árvore, solene, perdoou-me
Já que seu silêncio assim soou-me,
Num respiro indiferente até o fim...
.
09/01/2022

Ao Real Absoluto (de Alma Welt)

Nada escrevo que não o eu profundo,
Nem mesmo o que é gracejo ou disparate,
Simplesmente porque almejo ser um Vate,
Essa coisa que me importa neste mundo...

Não me verão, pois, alheia, desatenta
Ou mesmo em tais perdidos devaneios
Pois o senso do real me orienta
Os passos até mesmo em meus passeios.

Por quê? Porque não fico a ouvir estrelas
Mas com olhos deslumbrados eu as miro
Simplesmente porque são e posso vê-las.

E se escrevo como falo (ou quase isso)
É porque tenho o joelho submisso
Ao real absoluto que admiro...
.
08/01/2022

sábado, 8 de janeiro de 2022

Razão de Ser (de Alma Welt)

"Fazer sonetos, Alma, é extravagância!
O soneto vem do tempo de Petrarca,
De Dante e de tempos de elegância
De cortesões, de tesouros numa arca..."

Suspiro, faço pausa, então respondo:
"O soneto é meu hálito e alento.
Não me verão sentada e então compondo,
O soneto é meu ar, colho no vento."

"Meu próprio ser, território e habitat,
Em outras palavras, sou assim,
Minha fala desde meu tat bi tat..." *

E se não pode me entender a maioria,
Que pena... mas não fica mal pra mim,
O Bardo inglês bem sei que me amaria... *
.
08/01/2022
Notas
* ... tat bi tat - expressão em desuso, referente ao "gu gu da da", das crianças pequenas...
"O Bardo inglês... - Alma se refere ao Shakespeare, claro, um dos maiores sonetistas de todos os tempos...

Prestação de contas (de Alma Welt)

Empenhei-me na busca da beleza
Cujo rosto já não era conhecido,
Num tempo em que isso era proeza
Ou deixava o povo enraivecido...

Esgotei meus argumentos pela vida
Para uma legião de deprimidos;
Empurrei a minha pedra na subida
Só para não juntar-me aos decaídos...

Se fui de mim mesma a pobre Sísifo,
E da turba vulgar ouvi apupos,
Pois de mais de um ouvi um "si fo",

Não lamento, não me ouvirão queixar-me:
Não fiz parte de seitas nem de grupos,
Na solidão fui tão rica que quis dar-me...
.
08/01/2022



quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Alma ao Vento (de Alma Welt)



Alma ao Vento (de Alma Welt)
                                         Alma ao Vento- o/s/t de Guilherme de Faria, 2022, 40x40cm

Alma ao Vento (de Alma Welt)

Caminhar contra o vento eu adorava,
Confrontando com ele as minhas forças
Com a longa saia branca que eu usava
Um símbolo ancestral de antigas corças.

"És romântica", me dizem outras mulheres
Quando tentam levar-me ao descrédito.
"Não vês que assim a nossa luta feres,
Já que usas saias longas como um édito?"

Mas eu prefiro tais modismos olvidar,
Ou melhor, ostento a moda antiga
Como o vento não se extingue se passar.

Eis porquê me verão vagando a esmo,
As vezes com a saia em pleno ar
Como se aérea e fluida fosse mesmo...
.
06/01/2022

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Pigmalion e sua Alma (de Alma Welt)

                                     Nua (Alma Welt) - o/s/t de Guilherme de Faria, 2022, 50x70cm


Pigmalion e sua Alma (de Alma Welt)

Viver só pelo soneto ou através...
Assim me condenou meu criador.
Em vão protestei, mostrei minha dor;
Chorei, caindo de joelhos aos seus pés.

Mas o pintor e poeta, com brandura,
Em pensamento tomou-me pela mão,
E erguendo-me provou-me a sinecura
Com que dotara a minha condição:

"De que te queixas, Alma, dei-te o Pampa
Que eu mesmo não conheço, e um casarão!
Enquanto vivo na triste e feia Sampa..."

"Pinto-te em brancas vestes a vagar
E em glória como Vênus nua, em vão:
Mortal que sou, eu jamais posso te tocar..."
.
05/ 01/2022

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A Gargalhada (de Alma Welt)

Projetos não farei de extenso prazo,
Dizia eu ao espelho que me fita,
E ainda que chegada com atraso
Enxergo uma ruga que me irrita.

Alguns dizem que o espelho é mentiroso,
Lisonjeiro, falso amigo, enganador,
Que nos devolve só aquilo prazeroso
Aos nossos olhos da vaidade, sem pudor.

Mas me vejo em quase todas as idades
Menos na do riso branco e duradouro
Que anula nossas peculiaridades...

E com dificuldade me retrato
Na gargalhada eterna mas sem ouro,
Perdido para sempre o fino trato...
.
04/01/2022

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Minhas Festas (de Alma Welt)

Onde quer que eu estivesse neste mundo,
Eu precisava estar em casa para as Festas;
Retornar estando em trilhas de florestas
Ou no meio do oceano tão profundo...

Estando diante de monumentais carvalhos
Ou de ciprestes milenares do Oriente,
Eu retornar necessitava, urgente,
Aos coruscantes plainos meus de orvalhos...

No querido casarão velho, festivo,
Importado de tão longe um pinheirinho,
Enfeitado mas singelo e instintivo...

O presépio, esse sim, era encantado
E eu quisera estar lá, como um vizinho,
Que viera por um ovo e... deslumbrado!
.
03/01/2022

domingo, 2 de janeiro de 2022

As sementes da avó Frida (de Alma Welt)

"E então, venenos há que são sementes,
Como as daquelas cerejas deliciosas,
Doces, rubras, sumarentas, preciosas,
Ou as das uvas tentadoras dos dementes."

"Se atentamos bem tudo é perigo,
Então devemos caminhar pé-ante-pé.
Não damos um punhal para um amigo,
Tão somente o convidamos pr'um café."

É o que ensinava a avó Frida
Que vivera pelo menos uma guerra
Mas queria seu jardim aqui na Terra.

Plantava flores como se fossem comida,
Seca como a sempre-viva, flor que aberra,
Está mesmo viva em mim por toda a vida...
.
02/01/2022

Notas
*Como as daquelas cerejas deliciosas - Para quem não sabe, as sementes das cerejas contém cianeto e são mortais se mordidas e engolidas. Ao que parece as sementes das uvas também.

"...uvas tentadoras dos dementes - O irmão da avó Frida, tio-avô da Alma, morreu louco, de alcoolismo. Por isso Frida era contra o uso do álcool, e não bebia vinho, embora seu marido, o avô da Alma plantara o vinhedo que sustentava a família e que é tão presente nos sonetos da Alma.