quarta-feira, 28 de setembro de 2022

À Deriva (de Alma Welt)

Ser no mundo é estar no mesmo barco,
E não podes simplesmente pular fora;
Não tens como nem pra onde ir embora
Estejas no oceano ou num charco...

Do doutor Victor, o monstro remendado
Afirmou a certa altura ter deixado
Para trás toda a humana sociedade
E incendiou-se em meio à tempestade...

Não podes cair fora sem tragédia.
Cada um que o tenta é um motim:
Condenado no todo ou pela média

Hás de ficar à deriva até o fim...
Se, ao pulares, manter, pensas, a rédea,
Ao sabor ficas, das correntes... vai por mim.
.
28/09/2022

O Início da Poesia (de Alma Welt)

"Quando começaste com a Poesia?"
Enredada estou e isto é um fato:
Lembro, começou em manhã fria
Quando, desperta, calcei o meu sapato.

Não foram pois os chinelos, poetisa?
Sim... sim, é verdade, me desculpem.
Eu ainda me sentia numa nuvem
E ereta como a tal torre de Pisa

E estava em camisola, é bem verdade...
Não tinha nem tomado o meu café
E do Mundo nem lembrava da maldade.

Bem.. onde eu estava? Ah! a Poesia!
Muito boa quando já se está de pé,
Após lavar o rosto com água fria...
.
28/09/2022

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Eco (de Alma Welt)

Por que desses teus sonetos te rodeias
Como se fossem teus espelhos ideais?
Não vês que as pessoas estão "cheias"
E querem redes tão somente sociais?

Assim ouvi do meu tal grilo falante,
Eu que não sou Pinocchio nem Narciso
E não minto nunca, nem preciso
Ter meu próprio rosto como amante...

Mas então me revolto e bato o pé:
Não veem que falo de cada um de vos?
Sou mais o lago do que a flor, e não dais fé!

Alma do Mundo, reflexo preciso,
Cada um encontra em mim a sua voz,
Sou então muito mais Eco que Narciso...
.
27/09/2022

As Neves de Antes (de Alma Welt)

A Arte é minha pura água de fonte,
Não o meu rio escuro e derradeiro.
Não pagarei o óbulo ao barqueiro:
Nada devo ao par de remos de Caronte.

Pro céu eu vou, nem que seja mesmo a pau,
Como disse um Matraga das Gerais;
Meu corvo é na verdade um bacurau
E jamais me disse aquele "nunca mais."

Meu escuro é um luzir de pirilampos
Não um céu de estrelas vagas cujos lumes
Da Ursa eu nem me lembro nestes campos,

Que se não jardins paternos cintilantes,
Talvez do meu sonhar maior dos cumes
Onde estão as minhas neves, pois, de antes...
.
27/09/2022
Notas
*... rio escuro e derradeiro - o rio Letes que as almas tinham que obrigatóriamente atravessar para entrar no Hades, o reino dos mortos... ( Mitologia grega)

*Não pagarei o óbulo ao barqueiro:
* Nada devo ao par de remos de Caronte- as almas levavam comsigo um óbulo (moeda) para pagar o barqueiro Caronte para que ele as levasse na barca para atravessar o rio Letes e assim entrar no reino de Hades, onde ficariam pela eternidade.

"Pro céu eu vou, nem que seja mesmo a pau,
"Como disse um Matraga das Gerais - alusão à frase: "Pro céu eu vou nem que seja à paulada" do personagem malvado penitente no famoso conto de Guimarães Rosa , "A Hora e A Vez de Augusto Matraga" .

* Meu corvo é na verdade um bacurau
E jamais me disse aquele "nunca mais" - Alusão ao célebre poema The Raven (O Corvo) de Edgar Allan Poe, em que o corvo respondia sempre às perguntas desesperadas do poeta: "Nevermore" (Nunca mais...).
 
*Não um céu de estrelas vagas cujos lumes
*Da Ursa eu nem me lembro nestes campos - alusão ao primeiro verso do famoso poema Ricordanze, do poeta romantico italiano Giacomo Leopardi, que começa assim: "Vaghe stelle de l'Orsa, io non credeva" (Vagas estrelas da Ursa, eu não acreditava...)

*Que se não jardins paternos cintilantes - alusão ao ao terceiro verso do poema Ricordanze, de Leopardi : "Il paterno giardino cintillante..." (O jardim paterno cintilante...)

*Onde estão as minhas neves, pois, de antes - alusão ao refrão interrogativo do famoso poema "Balada das Damas dos Tempos Idos", do poeta medieval francês François Villon : "Mais où sont les neiges dantan?" (Mas donde estão as neves de antanho? "

Princesas (de Alma Welt)

Se eu fui criada, sim, como princesa,
Também mordi o fruto envenenado,
Me perdi em floresta negra, espessa,
Fui acolhida por um bando inusitado.

Toda guria nasce assim, o conto é fato,
Não somos na alma mais que isso,
E isso é muito mais que um relato
Para nos confortar sem compromisso.

A alma nos quer obras de arte,
Não há desdouro nisso, nesse plano,
E ver machismo aqui é puro engano.

Não fosse assim o "Eterno Feminino",
Não mais perduraria em toda parte
Esta nossa silhueta como um sino...
.
27/09/2022

Amor, amores (de Alma Welt)

Me pedem pra eu falar do meu amor...
Qual deles? - por minha vez pergunto
Se no fundo terei um outro assunto
Para um ponto final no tema pôr...

Ora- digo- eu e ele estamos quites;
Amor perpassa tudo quanto abordo,
Foi minha condição pra entrar a bordo
E navegar nestas águas sem limites...

Amor de pai, amor de mãe, amor perdido,
E aquele que não ousa dar seu nome
Por eterna carência ou mesmo fome.

E ocultando seu já discreto lume,
Aquele, sim, que já nasce proibido
Mas exala de mim como perfume...
.
27/09/2022

domingo, 25 de setembro de 2022

Feminismo moderno (de Alma Welt)

Tantas mulheres eu queria defender
As que de si guardiãs não sabem ser
Mas dou-me conta de que sou inadequada
Eu mesma tantas vezes ultrajada.

Confesso aplaudir como catarse
As atuais heroínas do cinema
Que dão surras nos machos sem disfarce,
Ou de "chilli" lhes aplicam bom enema...

É bem verdade que tais filmes bobos são
E que o buraco é sempre mais embaixo
E dias melhores pode ser que nem virão...

Mas conheci um enorme violinista *
Que não trocava, verdadeiro feminista,
Com sua mulher a cruz de um contrabaixo... *
.
25/09/2022
Nota
" ... um enorme violinista... - Alma faz alusão ao grande violinista alemão Erich Lehninger, homem enorme, que foi spalla de grandes orquestras sinfônicas na Alemanha e no Brasil onde viveu durante muitos anos, e que era casado com uma contrabaixista miudinha e frágil. Entrevistado uma vez na TV Cultura, o entrevistador achando graça no contraste perguntou a Lehninger se, em viagens, ele, por cavalheirimo, trocava com ela os estojos, carregando o enorme estojo do contrabaixo de sua mulher. O violinista respondeu: "De jeito nenhum! " Por quê não? insistiu entre surpreso e divertido o entrevistador. O alemão respondeu: "Porque na vida cada um deve carregar a sua própria cruz". (Gargalhada geral).

Uma breve Teogonia da Alma (de Alma Welt)

O que tenho a dizer é infinito
Porque a alma não tem começo e fim.
Se é poeira ao vento, mesmo assim
É fio de pó na luz, bem melhor dito...

De longe vem o Verbo, antes de tudo
E, então, nada sem Ele se apresenta:
É o Logos que se afirma e não comenta
A Luz que o segue como escudo...

Porém o grego ao olhar à contraluz
Vendo a dança sem fim de filamentos
Que somem e aparecem embora lentos,

Conquanto à bela Psiqué dessem a palma
Pela paixão de Eros que a conduz,
Apontavam o pó que dança: "Eis a alma!"
.
25/09/2022

Estorinha de Amor Bandido (de Alma Welt)

Todos temos um amor, eu acredito,
Alguns, como eu têm muito mais,
Embora um somente já é capaz
De redimir até um mau espírito...

"Não, Alma, tu disseste um absurdo!
Pois falta ao malvado justo o amor
E é isso que o torna cego e surdo
Ao sentido da vida, e à sua dor."

Conheci uma vez um amor bandido
Que era dele o amor, depois eu soube,
E que jaz atrás das grades redimido.

O amor dele, também soube, não o visita.
Essa a pena verdadeira que lhe coube
Mas também saudade única e bendita...
.
25/09/2022

O Coringa (de Alma Welt)

Percebi que não falei senão de amor
Ao abordar quase tudo que há na alma
Não só porque seja o meu pendor
Ou porquê nos sobrevém assim a calma

Mas também porquê estou persuadida
De que a poesia não é senão amor
Mesmo quando está desiludida
E apresenta aquele laivo de rancor

Como o queixoso menestrel de outrora
Que ostentava mesmo na roupagem
O coringa, que no truco fica fora...

Pobre andarilho que as rimas dedicou
Contra o soberbo andar da carruagem
Ou o belo carrocel que não montou...
.
25/09/2022


Auto-crítica (de Alma Welt)

Preciso escutar o meu silêncio,
Eu, que ao só falar de mim me excedo
E acabo confessando o que é segredo,
Que não devia se tornar, assim, intenso.

Sei que me querem nua e devassada
Os pudicos que vestem sobrepele
Mas também que mudariam de calçada
Só para evitar que olhar me rele.

Eu exagero, talvez, de andar sozinha
O parâmetro perdi, ou a medida,
E sintonizo uma voz somente minha.

Mas se assim pago tal preço pela Arte,
Conto ao decifrar-me a dor da vida,
Um pouco de alegria em cada parte...
.
25/09/2022

domingo, 18 de setembro de 2022

Eu, Modelo (de Alma Welt)



Eu que vivo aqui no pampa, fim do mundo,
Da Paulicéia Desvairada, sim, me lembro,
E saudades guardo dela bem no fundo,
Quando posava no frio de Setembro,

Sim, nuinha em pelo, sem arreios,
Para o meu pintor embevecido
Que se esmerava nos meus seios
Ou neste corpo todo reaquecido

Por um olhar agudo e amoroso
E as as carícias dúbias de pincel
Ocultas mas que imaginar já ouso.

Logo, finda a pose, então me erguia
E corria para olhar-me tão sem véu,
Enquanto ele, minha pele conferia...
.
18/09/2022

O perigo do soneto (de Alma Welt)


Quando o teto do soneto está aberto
Ponho-me debaixo e colho versos
Mas mantendo o passo muito perto
Para tê-los bem coesos, não dispersos.

E é assim que os tenho em catadupa
Mordendo os calcanhares do Mattoso *
Ou já cavalgando-lhe a garupa
Sem cópias e igualmente copioso...

E os belos versos já com suas rimas
Caem, pois, nas minhas mãos e na cabeça;
Só não faça isso em casa! A rede teça,

Pois um desastre pode te tirar de cena
Ou te mandar direto para Minas
Mas para uma horrivel Barbacena...
.
18/09/2022
Nota
*Alusão ao poeta Glauco Mattoso, que, como a Alma, dizem, escreveu mais de cinco mil sonetos.

A Degredada (de Alma Welt)


Se quereis saber o meu segredo
De como tenho tanta inspiração,
Revelo: decretei o meu degredo,
E escrever é obter comutação.

Escrevo versos numa África de mim
Em nostalgia de minha própria sorte,
E é por isso esse tom saudoso assim
Mesmo quando é outro o meu aporte.

Sabei, sempre achei que a nostalgia,
Se não a filha mais amada da poesia
É no mínimo a única herdeira...

E ao somar tanto assim chaves de ouro
De sonetos ajunto meu tesouro
Pra regressar à Pátria verdadeira...
.
18/09/2022

A "levada" do Soneto (de Alma Welt)


A "levada" do Soneto (de Alma Welt)
Tenho tanto o que dizer e mesmo digo
Pois sobre quase tudo me debruço
Menos sobre o fútil e o soluço
Que não de dor, pois qualquer outro não ligo.

Sou humana, quase tudo me concerne
Mas jamais perco tempo em ninharias
Que nunca acalento no meu cerne,
Que me levanto cedo em manhãs frias...

Espartana? Nem tanto, mais pra Atenas
Que de artes marciais não manjo nada
E aprecio mais a pena que a espada...

Com pão, mas sem brioches nem empada,
Por certo sobrevivo a duras penas
Pois é só de soneto minha "levada"...
.
18/09/2022

A Travessia (de Alma Welt)



A Poesia me escolheu, não fugi dela
Não me escondi, brincando de "acusado!",
Brinquei foi a Cabra Cega, olho vendado,
Esperando aquele toque que revela.

Brincar é coisa séria, se és criança,
Mas a vida não está pra brincadeiras,
Exceto para a Dança das Cadeiras
Que é do mundo a cruel e dura dança.

Fui ao mundo, voltei, tentei de novo,
Algumas vezes caí da tal cadeira:
Não sabia por de pé meu pobre ovo.

Mas depois, levantei, meio quebrada,
Erguendo velas não sacudi poeira,
Atravessei de mim meu próprio Nada...
.
18/09/2022

Resumo da ópera (de Alma Welt)


Quanto eu quis deter o Tempo! Quantas vezes!
Nos momentos felizes, de um segundo
Ou de poucos dias, poucos meses,
De um transcorrer pleno e fecundo...

Aproveitei o pano, o intermezzo,
Fugi da opereta nesse instante;
Não liguei pra aparências que não prezo,
Larguei na platéia o falso amante...

Nunca fui uma Dama das Camélias:
Tenho bons pulmões e pouca voz
E nada da verdade das Amélias...

O que fiz então? Vos perguntais?
Eu que abri o coração pra todos vos,
Sei também que abri os braços muito mais...
.
16/09/2022

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

De pelos e cabelos (de Alma Welt)

Meus amigos lá se foram pela vida
E não houve nenhum meio de retê-los,
Nem pela gratidão talvez a dívida,
Nem por meio de seus cachos de cabelos.

Foram-se todos qual aves arribadas
Buscando aqueles sonhos impossíveis;
Nunca mais lhes ouviria as risadas
Cobrindo as suas dores mais visíveis.

Mas depois de uma década perdida
Ainda me veria enternecida:
Encontrei, naquela tal confeitaria,

Só um deles, de que não guardei cabelos
Mas meia dúzia de pubianos pelos,
Pelos quais eu apostei que voltaria...
.
21/08/2016

Eu e os Poentes (de Alma Welt)

Aqueles que me veem aqui sentada
Nesta arcaica cadeira de balanço
Nem cogitam que me encontro num remanso
De uma vida intensa, atribulada.

Sigam o meu olhar e o quê reflete
Como um cristal, espelho cristalino,
E saberão que minha alma se remete
Àquelas luzes do acenar divino...

Sim, os poentes, a que não irei faltar
Pois jamais salto conta de um rosário,
Que nunca é mera pedra de um colar...

Que eu jamais perca o senso do sagrado
Ou trate como um acidente vário
Este aceno de Deus pra ser lembrado...
.
12/09/2022

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Como capturar a Poesia (de Alma Welt)

A poesia só nos vem quando ela quer,
Não adianta forçares, laborioso,
O poema é um ovo em pé, teimoso,
E que nenhum navegador domou sequer.

É preciso captá-la com antenas,
Porque vem nos ares dissolvida;
Em comodato nos é dada, apenas,
Quando mais nos parece adquirida.

É preciso que te ponhas meio sonso,
Semicerrado o olho, distraído,
Com cara não de André mas só de Afonso; *

A Poesia vem então baixando lenta,
Versos sussurrando ao pé do ouvido,
Visitante tão arisca... que nem senta.
.
06/09/2022
Nota
* Com cara, não de André... - alusão à gag nonsense de Mario de Andrade, no seu Macunaima: "...fez uma cara de André (André era um vizinho...) rrrrrssss