quarta-feira, 19 de outubro de 2022

O Final -A Terra Devastada * (de Alma Welt)

Quase tudo o que guardamos nos define,
Até mesmo a tralha, o bric-a-brac;
Que ninguém portanto se amofine
Se em vez de explosão vier um trac... *

Sim, no fim, como pobres faraós
Quereríamos levar tanta besteira,
Seja num caixão ou numa esteira
Porque se grudou a escória em nós,

Pobres humanos na terra devastada
Ou mesmo em abundância, não importa,
Todos temos que transpor a estreita porta.

E no fim só passamos com um suspiro *
Com a roupa do corpo e quase nada,
Que aos dedos e aos anéis nem me refiro... *
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19/10/2022

Notas
*A Terra Devastada - Alma alude ao grande poema de T.S. Eliot , "The Waste Land".

* Em vez de explosão vier um trac /
* E no fim só possamos com um suspiro - Alma alude aos últimos versos do poema "Os Homens Ocos", de TS Eliot : "Assim expira o mundo/Não com uma explosão, mas com um suspiro.

*Que aos dedos e aos anéis nem me refiro. - Alusão ao ditado popular: "Vão-se os anéis, ficam os dedos..."

A Herança, o romance (de Alma Welt)

Meu intuito foi embelezar a vida
Por do simples coração a atitude
De malícias ou intrigas desprovida,
Sem qualquer ambição do que não pude.

Alma - dizem- tua luta pela estância
Não foi apego material, da posse o amor,
Bravura com um toque de ganância
Que define toda guerra e seu horror?

Sim, retruco (não endosso hipocrisia)
Mas o espírito encarna em quase tudo
Já que no nosso corpo ele estagia...

No casarão, seu jardim e a vindima,
E no grande Steinway agora mudo
Ouço a voz de meu pai vinda de cima...
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19/10/2022

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Nossas Senhoras (de Alma Welt)


Para a Nossa Senhora, sim, oramos.
Mas não a qualquer uma, escolhamos:
Se for o caso, uma das boas, a dos Aflitos,
Mas nunca só por causa dos mosquitos.


Nossa Senhora do Bom Parto é também boa
Mas não a invoquemos jamais, assim, à toa,
Porque se em vão ela for incomodada,
Sem querer te verás prenha, por um nada...

Nossa Senhora dos Nós, desatadora,
Essa é demais pois é até doutora
Em dificílimos nós de marinheiro,

Pois valeu-me, enredada por inteiro
Ao desfiar-me a teia, num nó louco,
Essa Santa das santinhas do Pau Oco...
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17/10/2022

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O segredo da vida (de Alma Welt)

Se o segredo do soneto é o mote,
O de uma vida feliz é só o amor.
Mas não desprezando o fator sorte
Podes corrigir o rumo e o andor...

Quero dizer: há erros de pessoa
Mas nem por isso guardes mágoa.
Embora também muita coisa à toa,
Por debaixo da ponte passa água.

Uma vez, por falso amor fui confrontada
Que cobrou-me o que devo e o que não devo,
E foi-se o que sobrara do enlevo...

E pra não ficar triste, envergonhada,
Comecei a tentar dançar o frevo,
Graciosa mas patética empreitada...
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10/10/2022

A linguagem da alma (de Alma Welt)

Escrever, da alma é a linguagem,
Para quem sintoniza o seu canal.
Mas é preciso acurácia em seu dial
E à estática não dar uma vantagem...

Emita um som claro e explícito,
Mas podes abusar de adjetivos
Se barrocos forem teus objetivos
Mas quando não for é pouco lícito.

Um mestre Zen, que muito havia escrito,
De repente calou-se de vergonha
E colocou-se em pose de cegonha

Porque o mestre, relendo sua edição
Percebeu uma pobre dicção
Que deixaria o dito por não dito...
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10/10/2022


Renascimento (de Alma Welt)

Tudo ou quase tudo me interessa
Mas não suporto bobagens, ninharias;
Tenho todo o Tempo e tenho pressa
De me livrar de uma ou duas "pizzas frias".

Conflitos, dores, rancores, dependência,
Um rol considerável de resquícios
De tempos mal vividos por carência,
E, para ser franca, por uns vícios...

Mas sobriedade e Arte triunfantes
Levaram a melhor no meu percurso,
Então nada mais seria como antes...

E agora mãos à obra, Amor requer,
Com os meus melhores versos já em curso
Que renasci como poeta e mais mulher...
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10/10/2022

Como cantar o Amor? (de Alma Welt)

Como cantar o amor, eu me questiono,
Depois daquele parzinho de Verona,
Ou após noiva-cadáver sobre um trono
Que do fundo da terra veio à tona?

Ou da Heloiza e o Abelardo,
(só o dela que restou, ele castrado)
Ou de soror Mariana Alcoforado
Pelo uniforme de um hussardo?

Ou como o da Marília de Dirceu
Não o comunista, um mais decente
Naquela tal Vila Rica inconfidente...

Ou da bela Psiqué, livre afinal,
Por Eros que a levou ao apogeu
Com Zeus lhe dando o néctar imortal...
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10/10/2022

A Vincent (de Alma Welt)

Vincent querido, a tristeza teve fim.
Não precisas mais ferir a tua orelha
Nem chegares ao fim de tua botelha,
Que na noite estrelada estás enfim.

Sofreste tanto que até em mim o sinto
E ainda choro quando nem devia mais
Já que bebes uma estrela de Absinto, *
Uma coisa que pintando eras capaz...

Se fizeste de ti mesmo o inimigo,
Tiveste o amor do Theo e da Johanna
Que sofriam por ver-te em tal perigo.

Mas mudando em beleza a dor humana,
Ganhaste o Céu na Terra finalmente:
Vê diante de tuas telas quanta gente!
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10/10/2022
Nota
No 
Apocalipse (8/11) de São João, a estrela que caiu na terra tem o nome de "Absinto"...

Dai-me (de Alma Welt)

Olho em torno de mim a minha vida:
Deus deu-me até mesmo um corpo belo
E uma face que me deixa comovida
Mas que o pacto narcísico não selo.

Tenho tanto a colher, Deus, dai-me tempo!
Minha safra é enorme e o tempo é curto.
Minha inspiração não é mero surto
Que se extingue como passa o vento...

Que pomar, seara imensa, que vindima!
Sempre tive ao meu redor frutos da terra
E outros tantos do astral, do céu acima...

Senhor, tanto já me dais e deslumbrada
Corro o risco do orgulho que isso encerra,
Dai-me, pois, mais humildade... e mais nada.
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10/10/2022

Quase (de Alma Welt)

Deus é quase sempre generoso,
Se nos permite da Beleza desfrutar
Ou do momento de supremo gozo
Já que a todos, quase todos, Deus quis dar.

Mas esse "quase" é que é o Mistério
Pois alguns de nós, tão desprovidos,
Parecem não ter tempo nem critério
Para fruir beleza ou gozo comovidos...

Serão esses os maus ou mesmo os brutos
Aqueles pobres por Deus abandonados,
Serão os anjos caídos por insultos?

Que sei eu... tudo é mistério neste mundo,
E perco a alegria e os bens herdados,
Se do "quase" insistir em ir ao fundo...
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10/10/2022

Tudo por aqui (de Alma Welt)

Do Paraíso descobri a macieira
Aqui mesmo no pomar da minha estância
Embora ainda fosse uma criança
E podia não passar de brincadeira.

Mas como explicar, se não me creem?
Quase impossível crer se não me veem
Levitar quando dela me aproximo,
Coisa que num tribunal, até, confirmo.

E o Santo Graal, então? Também o tenho
Transfigurado em canequinha de piá,
Que dele desde então bebendo venho...

Mas jaz presa na pedra a Excalibur,
Já que espero de mim meu rei Arthur
De um reino encantado que em mim há...
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10/10/2022

A Permuta (de Alma Welt)

Nada mais prazeroso que compor
Um poema, um soneto ou um conto
Se nos vêm em jato, e sem dor,
Já que os colhemos nalgum ponto...

Sim, Alef, esse ponto, ou um clarão,
Como já o descobrira o velho Borges
Que cego o enxergara num porão,
Que poesia não tiramos dos alforges.

A Arte está no astral, mas nos pertence ,
Se a colhemos como fruto concedido,
Embora de tão ampla, até nos vence.

Mas somente este presente nos és dado
Pra devolvermos, talvez, o proibido,
Que Deus, de esperá-lo está cansado...
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10/10/2022

Tributo ao soneto alexandrino (de Alma Welt)

Viver é expressar-me, não m'o tirem
O direito ao soneto, que escolhi.
É meio de deixar que assim me mirem:
Nua, dentro e fora... e assim vivi.

Se é preciso que regras respeitemos,
Eu prefiro a das doze badaladas:
Meio, dia, meia noite, nas caladas,
São favas contadas, sempre temos.

Mas não são arreios, menos freios,
Apenas disciplina em liberdade,
Uma expansão por outros meios...

E no fim, livre e voando como ave,
Meu ouro é somente a dita chave
Da minha irrestrita humanidade...
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10/10/2022

domingo, 9 de outubro de 2022

A Porta (de Alma Welt)

Também me vi, assim, em selva escura
Perdida a vera estrada, como Dante,
Acuada pelas feras da loucura,
Não podendo sequer seguir adiante...

Bah! Não me digas que "vais pagar comédia"
Como zoam "manos" fora da colônia,
Pobres diabos de obscura enciclopédia
De gírias da remota Babilônia

Quando da Torre em soberba construção
Se fez da lingua uma estranha confusão
E, pois, temos que também reconstruí-la...

Mas, ò Alma, não chegaste à grande Porta?
Só divagas, ou não pode dividí-la
Quem as próprias visões não mais suporta?
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09/0/2022

Meu Diário (de Alma Welt)

Se tão cedo fui chamada a escrever,
No começo era apenas um Diário
De guria, bem dotada, a se rever
Como num espelho não contrário...

Assim pensava, eu, ingenuamente,
Refletindo-me em páginas secretas
Como se algo então na minha mente
Pudesse por em risco grandes metas.

Ó santíssima candura, quão naïve
Era a alma desta Alma, ingênua e pura
A assim documentar-se enquanto a tive...

Mas não! O que perdi nem mesmo sei,
Pois a Poesia em mim reina e perdura,
Que através da Arte vivo, e me salvei...
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02/10/2022

O Jogo das bolhas de sabão (de Alma Welt)

Quantas vezes tateamos na penumbra
Seguindo tão somente o nosso faro
De lembranças e do sentimento raro
Como lobos caminhando pela tundra...

Percepções difíceis, vagas e sutis
Que mal logramos, a rigor, sintonizar
Evitando as escolhas torpes, vis,
Para o nosso pensamento clarear...

Mas do quê estás falando, ó minha Alma?
Não sabes que o caminho está traçado
No solo claro e limpo da tua palma?

Tudo é Destino, mormente tuas escolhas
E não poderás senão cumprir teu fado,
Teu soprinho a formar tão belas bolhas...
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09/10/2022

sábado, 8 de outubro de 2022

Filosofia básica, mas não barata (de Alma Welt)

Toda vida humana é aventura,
Um "triller", uma saga ou epopeia
Em que ouvimos sirenosa melopeia *
Numa nau "deitadas sortes à ventura." *

Ou pensáveis que viestes a passeio
Curtir belas primaveras e os verões?
Ou só da juventude o doce enleio
Que existe entre fêmeas e varões?

Ou então apaixonarvos, transgressivas,
Por outras belas fêmeas, se assim sois,
Ou, de machos, relações mais agressivas?

Sabei, por certo alta taxa ireis pagar,
Já que "não há almoço grátis", ora, pois
Vendeis "almoço pelo preço do jantar"...
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07/10/2022
Notas
* epopeia/ em que ouvimos sirenosa melopeia - alusão ao episódio do canto das sereias na Odisseia, de Homero.

* Numa nau deitadas sortes à ventura - alusão aos versos do famoso poema Romance da Nau Catarineta, precursor do cordel nordestino brasileiro ( ... "já não tinham o que comer/ já não tinham o que manjar/ deitam sortes à ventura/ qual se havia de matar/ logo foi cair a sorte/ no capitão general...

Nossa Troia (de Alma Welt)

Nosso ódio é já o inimigo
Em nós, dentro de nós, contaminados,
Porquanto assim vencidos, dominados
Nós aceitamos seu cavalo, dando abrigo.

Se de noite nos assaltam, os invasores,
Os sonhos transformando-nos mesquinhos,
Acordamos meio tontos, sem caminhos,
Ou pior: apequenados, sem amores.

Já o grego muito bem nos alertara:
Não aceite uma lisonja de presente:
Olhar dente de cavalo é coisa rara

Já que olhamos muito mais a bela crina
E o talhe que olhamos docemente
Da madeira envernizada, coisa fina...
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08/10/2022