quinta-feira, 30 de junho de 2016

Prece da sem fé (de Alma Welt)


Um só Deus ou muitos deuses, não importa,
Pois revela quanto ainda somos reses
A pastar aqui na Terra, nossa horta,
Ao sabor das horas, dias e meses...

Desamparo astral, carência imensa,
De pé ou ajoelhados frente ao Sol,
Nosso verdadeiro deus iluminado
Que comanda dos deuses todo o rol...

São palavras do orgulho, bem o sei
E que se Deus houver serei punida,
Sobre isso de antemão já concordei.

Pois sabei quanto espero estar errada,
Se de todas a mais desamparada
Criatura dele sou, tão presumida...

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30/06/2016

Preceitos populares (de Alma Welt)


Repassemos todo dia, ao acordar,
Nossa vida inteira em um segundo,
Nesse breve momento, ao bocejar,
Que refaz a vida e encara o mundo.

Fomos claros, límpidos e honestos?
Não pisamos na cabeça de ninguém?
Não precisamos pois limpar os restos
Deixados por aqui ou mais além?

A coerência é o minimo que se pede
Quando vamos simplesmente abrir a boca,
E é o bom padrão com que se mede...

Não precisamos tirar o pai da forca
Mas pelo menos não façamos feio.
A nós o nosso reino, não o alheio...

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26/06/2016

sábado, 25 de junho de 2016

O rosto do mundo (de Alma Welt)





                  Perfil de Alma Welt - litografia de Guilherme de Faria

O rosto do mundo (de Alma Welt)

Procurei o mundo inteiro nos meus versos,
Pouco nele mesmo ao vivo, em cores,
Sabendo dentro em mim os universos
Sem descartar-me alguns de seus horrores.

Quanta descoberta e alguns conflitos!
Saga imensa já inscrita no meu peito;
Queda, às vezes, no Vale dos Aflitos,
Subidas súbitas, a meu próprio despeito...

Mas nada lamento do percurso
Que tenho feito menos pela escolha
Que um belo rio tem do próprio curso...

E no final, espero, sem desgosto,
Como disse Borges, nessa folha
Desenhado reverei meu próprio rosto....

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25/06/2016


Nota
"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto."

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. In: Obras completas (volume II).


O mundo e os longes (de Alma Welt)


"A vida nos requer muita prudência
Já que um passo errado é desastroso
E nos leva à morte ou à demência,
E é até meio sábio ser medroso.

"Mas se o homem levasse isso à palma
Ganharia só um palmo de seu chão,
Perderia da vida a sua alma,
Não iria muito além do seu colchão."

Assim dizia o meu irmão aventureiro
Que por amor de perder muito dinheiro
Foi-se ao mundo jogar pelos cassinos.

Mas como aqueles lusos velhos monges
Aqui permaneci a olhar os longes,
E a me comover ouvindo os sinos...
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24/06/2016

A sina de escrever (de Alma Welt)


Escrever versos é minha ação no mundo
E maneira de evitar a inveja
Daqueles, sim, que talvez vão mais a fundo
Derramando-se em gesto que se veja.

Mas invejar o bem que o outro faça
É ambíguo, senão puro despeito,
E visto desse modo é só pirraça
Ou requer que eu refaça meu conceito.

Mas escrever é sina e compromisso
Com aquele outro que há de vir
Sedento de saber um pouco disso...

Tais seriam meus conflitos sobre o tema
De escrever somente e não agir
Se eu pudesse pousar a minha pena...

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 25/06/2016

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Anti-pacto (de Alma Welt)


Tenho o Infinito à minha frente
E convido o Tempo à minha sala.
Hei de lançar um soneto competente
Pra não temer a tumba, cova ou vala.

Mas já sou imortal no que registro
Inspirada ou não pelas tais Musas,
As palavras tão logo administro
Despeço algumas torpes e abstrusas.

Como Fausto, vivo entre alfarrábios
Mas não penso em vender a minha alma
E quanto a isso cerrarei meus lábios.

Percebo o mundo aí fora, como anda,
Mas para tê-lo aqui na minha palma,
Recebo-o pro chá na minha varanda...

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24/06/2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Ariadne ou O Meta-labirinto (de Alma Welt)



Ariadne ou O Meta-labirinto (de Alma Welt)

Tem dias em que acordo e sou heroica,
Muito antiga, me vejo num palácio,
Da grande e remota Era Minoica
E sair do labirinto não é fácil...

Trago comigo longo fio em molinete
Para entrar e sair num leva e traz;
O Minotauro pra mim não é verbete
Mas minha própria sombra e não me apraz.

Ariadne sou eu eternamente
Esperando o herói em sua investida
Mas falta um certo elo na corrente,

Pois sendo de mim mesma o labirinto
Tenho tudo em mim, e sem saída,
Sou a missão perdida... e me ressinto.

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23/06/2016

Alma em processo (de Alma Welt)


"Vai, dedica-te aos outros", disse alguém.
E eu fiquei perplexa de imediato.
Ainda não sei bem de mim também
E preciso me formar pra ser de fato!

Ser um rio ou estender a minha mão,
"Mas não serei (disse Nietzsche), sua muleta". *
Inacabada, estou só e em construção
E ainda hoje a coisa ficou preta...

Mantenho minha cabeça fora d'água ,
Mas com sério perigo de afundar.
Se cuido mal da alma, a perco, estrago-a

E só meu ego é que me ergue de manhã.
Minha luta está somente a começar,
Nem sei se é fecunda ou quanto é vã...

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23/06/2016

Nota
* a frase completa de Nietzsche é assim: "Eu posso ser um anteparo na margem de um rio para quem quiser agarrar-me. Mas não serei sua muleta". ( Assim falava Zaratustra, F. Nietzsche)

terça-feira, 21 de junho de 2016

A Ampulheta e o Labirinto (de Alma Welt)

Em imaginação vivi minha vida,
Os melhores momentos de invenção;
E os tormentos com que a alma lida
Me foram consequência ou extensão.

Não sei se fui um ser grato ao real
Ou consto no seu rol de aparecidos
Nesse pequeno e ávido areal
De nossa existência sob os vidros,

Dessa antiga ampulheta dos destinos
Que é todo o Tempo que nos cabe
No infausto labirinto do rei Minos...

Ter sido ou não ter sido, eis a questão
Que o pensamento aprisionado abre
Para, sem asas, voltar do Sol ao chão...

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21/06/2016

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Viagens (de Alma Welt)


Então fui para o mundo, a meu despeito
Porque é aqui de casa o coração,
A sala e o jardim dentro do peito
E a varanda, horizonte e chimarrão.

Com toda uma planura para olhar
E as nuvens, infinita descoberta,
Que algo mais eu poderia precisar,
Para ter a alma assim desperta?

Mas uma inquietação viria um dia
E tive medo de morrer sem ver Paris,
Que na verdade, por Hug(ô), já conhecia... *

E fui a Portugal, França e Holanda
Tão somente pra voltar, como se diz,
A ver o mundo aqui desta varanda...

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20/06/2016

Nota
* por Hug(ô)- Alma indica aqui a pronúncia francesa para o nome de Victor Hugo que produz a cadência certa para o verso. E ela certamente evoca indiretamente as obras "Notre Dame de Paris" (conhecida popularmente como "O Corcunda de Notre Dame"), e "Les Misérables", que capturaram a essência daquela cidade...

O poeta e o aventureiro (de Alma Welt)

                                     Tempestade - óleo s/ tela de Guilherme de Faria,1999

O poeta e o aventureiro (de Alma Welt)

Jamais se conformar com o dia-a-dia
E procurar um viés audacioso
É um dos atributos da poesia
E produz, em sintonia, extremo gozo.

Mas o preço a pagar é muito grande:
Um caminho de espanto e solidão,
Conhecido só de alguém que nele ande
E não recomendável a um irmão...

Bem melhor é o dom do aventureiro
Que acredita apenas neste mundo
E faz dele o seu maior desfiladeiro.

Reconheço superior sua coragem:
A ela os versos prestam vassalagem,
Assim como ao seu mar, bem mais profundo...
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19/06/2016

domingo, 19 de junho de 2016

Eu e as Árvores (de Alma Welt)

                                     Alma no pampa - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2015

Eu e as Árvores (de Alma Welt)

Sempre fui pelas árvores atraída,
Que são para mim entes sagrados
Que pronto me oferecem sua guarida
Se me encontro perdida pelos prados.

E então eu as invoco como deusas
Recebendo o seu séquito de flores
Formando um desfile de belezas
Dos milhares de lampejos multicores.

"Isso é ter os pés na terra?"- me perguntas.
"És uma fantasista incorrigível
E de cunho romanesco, como muitas... "

Mas eu não me distingo desses seres
Não por ser tão bela ou ser sensível,
Mas pelo dom da Vida e seus poderes...
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19/06/2016

sábado, 18 de junho de 2016

Sonetos (de Alma Welt)



O soneto é minha maneira de pensar
Malgrado enclausurada em duas quadras
E dois tercetos, poucos versos pra rimar,
Suficientes prisões pra algumas ladras.

Então por quê não jogas para o alto
Estas cruéis imposições da tradição?
Já me perguntam alguns fiéis do asfalto
Que não podem compreender minha opção.

Pois pra quem tem do Pampa sua lonjura
Que já faz sua visão mais alargada
Catorze versos cada vez é quase nada...

E eu respondo que é por liberdade pura
Minha escolha de tal prisão dourada
Em que a chave de ouro é minha soltura...

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18/06/2016

sexta-feira, 17 de junho de 2016

De mares e memórias (de Alma Welt)

                                                     Litografia de Guilherme de Faria

De mares e memórias (de Alma Welt)

Quê imensa aventura é o viver,
Pois simplesmente me sentir e estar viva
Me faz antigos oceanos percorrer,
Ou em mares de memórias à deriva...

As vetustas travessias experimento
Já que sinto aquele impulso da corrente
Que vem dar em mim, com ou sem vento,
E Odisseu, por certo, é meu parente...

Então nada do que foi me é estranho,
E conheço aquelas naus e fortalezas,
Assim também as tais "neves de antanho"...

Por isso sofro as graves agonias
Daquelas damas e suas incertezas,
E, mais raros, seus amores e alegrias...

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17/06/2016



Nota
* as tais "neves de antanho" - alusão ao célebre verso interrogativo do poeta medieval francês François Villon: "Où sont les neiges d'antan?" (Onde estão as neves de antanho?) do poema "Balada das damas dos tempos idos", em que o poeta cita nostalgicamente grandes personagens femininas da História, inclusive Joana D'Arc.

O Réquiem (de Alma Welt)

                                       Assum-preto- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2013


O Réquiem (de Alma Welt)

"A vida é e foi sempre experimental
Malgrado as tentativas de sistema..."
Dizia Fulano, o último De Tal
Sem jamais abandonar o grande tema.

E eu me perguntava: "Onde estamos?
Acaso o Cabo que viramos é o Não?"
"Somos gregos afinal ou só troianos,
Perdido o jogo na derradeira mão?"

"Se nosso fim é a tal macabra dança
Tudo mais é solidão morte e tristeza,
Para quê insistirmos na esperança?"

Mas Deus é a persistência da Beleza,
O réquiem triunfal da Natureza,
Que se faz ver enquanto a Sombra avança...

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17/06/2016

quinta-feira, 16 de junho de 2016

A flauta mágica (de Alma Welt)


         O Flautista de Hamelin - desenho de Guilherme de Faria, anos 80

A flauta mágica (de Alma Welt)

Então fui ver o mundo além do Pampa
Embora o conhecesse bem dos livros
Que refletem o real como uma estampa
De Debret ou Daumier quando eram vivos.

E vi que a Arte quando pura e de verdade
Reflete o Mundo de modo condensado
Mesmo mais real que a realidade
Seja num timbre cruel ou encantado...

Pobres daqueles detratores do saber,
Apedeutas que um livro nunca abriram
E logo aos povos se metem a reger!

Ao desastre nos conduzem qual ratinhos
Que se leva ao abismo onde caíram,
De uma flauta ao som dos descaminhos...
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16/6/2016

terça-feira, 14 de junho de 2016

O Ninho e o Devir (de Alma Welt)

                                 Alma no Pampa- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 30x40cm

O Ninho e o Devir (de Alma Welt)

Num certo dia acordei e vi o mundo
Como se apresenta em seu cinismo,
Em violência e interesse imundo
Em nome do comum e do civismo.

E disse: "Pai, não é isto que me deste
Ao me apresentar esta planície
Onde bate o gelado vento oeste *
Mas puro, sem maldade e imundície."

E o velho respondeu: "Eis o segredo,
De chegar audaz na vida e persistir
Pois o ninho é que perpetua o medo."

"O Paraíso foi perdido bem lá atrás
Mas a nós foi dado o tempo do devir *
Que toma a forma que a nossa mente faz..."

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14/06/2016

Notas :

" vento oeste - o Minuano, vento gelado que sopra no pampa, do Pacífico para o leste.

*devir - termo filosófico, equivalente ao "dasein" alemão, que pode ser traduzido como "o vir a ser", impulso de transformação do espírito que se opõe ao conceito fatalista de destino...

Divagando (Alma Welt)


Tenho uma certo pudor de ser assim
Tão dependente de me pôr em verso
Para me sentir completa em mim
Pois bem sei que sem poesia me disperso.

Talvez me falte a verdadeira integridade,
"Ai de mim!" Como diziam os antigos
No meio da tragédia sem idade
Com ou sem a existência de inimigos.

Viver é ter a espada sobre a fronte
E coragem é rir, mas conscientes,
Que com riso de bobo também conte.

A consciência faz mulher e homem
Não cuspir naquele prato em que comem,
Derradeira lucidez de nossas mentes...

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12/06/2016

A boa mão (de Alma Welt)




"Alma, tens boa mão para o soneto,"
(dizia o bom meu pai, churrasqueando)
"Assim como a Matilde no cloreto
De sódio, nossa janta cozinhando."

E ria, o arguto pai, com intenção
De assim talvez "baixar a minha bola"
Sem do orgulho precisar fazer menção
E mostrar que não estava na minha cola.

Mas um dia, sobre sua escrivaninha
Vi um álbum grosso, assim, jogado,
E abri pra ver alguma foto minha...

E era uma recolha dos meus versos
Em que reconheci o meu legado,
E meus sais ali estavam, não dispersos...

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12/06/2016

Mais uma prece (de Alma Welt)



Mais uma prece (de Alma Welt)

Senhor Deus, livrai-me do meu ódio
Que o dos outros eu mesma me livrei.
Sabeis que nunca quis subir num pódio
Apenas porque ao chão me acomodei.

Quero colher flores, quem não quer,
Quando se é plena, bela ou só mulher?
Versejar e passear pela coxilha
Como se o mundo fosse bela ilha...

Que o mundo não é bom, eu sempre soube,
Mas meus desejos cercam-me de muros
Como falsa fortaleza que me coube.

Então o meu egoismo me envergonha
Pois minhas defesas apresentam muitos furos:
As mágoas que confio à minha fronha...
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12/06/2016

sábado, 11 de junho de 2016

O Labirinto (de Alma Welt)



O Labirinto (de Alma Welt)

Em sonetos cantarei tudo o que sinto
Até o extremo fim desta jornada
Pois sem eles perco o fio do labirinto
E perdida de mim mesma não sou nada.

No centro o Minotauro espera em breve,
Eu temerosa, ele ardente de luxúria,
E sou eu mesma em minha face espúria
Que devo vencer ou que me leve.

Tal é a saga humana do poeta
Que me coube apesar de ser mulher,
Que filhos não foram minha meta.

Minha obscura saga é só por dentro
Sou a que tudo perde e tudo quer
E morrerei de mim bem no meu centro...

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11/06/2016

Oração (de Alma Welt)



Oração (de Alma Welt)

Perdoai-me Senhor, a incoerência
Que tanto à hipocrisia se assemelha.
Perdoai-me o meu ferrão de abelha,
Pelo mel, somente, da inocência...

Ao ver a hecatombe da manada,
E nas minúsculas gaiolas de arame
O sacrifício das aves, tão infame,
Eu prometi abstinência, e não fiz nada.

A lógica, Senhor, é um bom começo,
Para evitar o mal já conhecido
E afastar o mal que não conheço.

Mas, Senhor da Lucidez, dai-me bondade
Pois coerência é só tempo perdido
Se a alma não quiser a santidade...


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11/06/2016

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O Sonho (de Alma Welt)

                                  A fuga de Caim e sua família para o Leste do Éden - Fernand Cormon ( 1845-1924)

O Sonho (de Alma Welt)

Sonhei quando guria ser poeta,
A coisa mais difícil desde então,
Ambição desmedida como meta,
Cujo rol, cabe nos dedos desta mão,

Contém os nomes daqueles mais descrentes
Que nem sabemos na verdade onde estão:
Se no limbo infantil dos inocentes
Ou na terra do exílio, como Adão.

A leste do Éden ainda habitamos
E ostentamos a tal marca de Caim
Sem que nós, afinal, nada devamos,

Mas por simples simpatia de desvio
Ou pelo nosso protesto contra o Fim
Pois o curso eterno é nosso rio...

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10/06/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Profissão de Fé (de Alma Welt)


Escolhi o antigo culto da beleza,
Mas nada deverei à fútil moda
Que assenta no vazio a realeza
E no falso perene se acomoda.

Creio num eterno inconfundível
Que habita na alma e é comum
A todo ser divino e perecível,
Já que nesse nível somos "um".

Um pequeno verso ou uma linha,
Mistério gráfico ou comezinha imagem
Que na origem já era tua e minha

E se perde na universal memória
Onde nascem os Mitos e a contagem
Do Tempo que embala a nossa história...

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03/06/2016