domingo, 24 de novembro de 2013

De repente (de Alma Welt)

                                        O Salgueiro Sagrado da Alma (esboço)- pintura de Guilherme de Faria


De repente (de Alma Welt)

De repente começa o vago esforço

Pra persistir achando a vida bela;
O quadro que pintamos, mero scorzo

E sem o encanto da aquarela

Que sonhávamos fazer das nossas vidas
Que ficaram borradas pelo chão,
De tentativas vãs, mal sucedidas,
De agradar alguém mais que o nosso cão.

Mas eis que por um golpe de visão
Podemos refazer todo o percurso
E mudar o destino e a estação.

Não tem jeito de uma vida se perder
Se aceitamos mudar o nosso curso
Para o nosso mesmo sonho acontecer...

sábado, 23 de novembro de 2013

Os Amigos (IV) (de Alma Welt)

Consolação - pintura de Gaetano Belley
 
 
 
Os Amigos (IV) (de Alma Welt)

Preciosos amigos de uma vida,
Por alguma razão tão dedicados

Apesar da minha alma dividida
Entre a solidão e os agrados

Daqueles reencontros tão festivos
Com abraços apertados e tapinhas
Nas costas com sinais receptivos
De faces se encontrando com as minhas...

Agora tudo é já passado, recolhida
Prefiro esta memória dos momentos
A que tão prontamente dei guarida.

Mal sabem que os retenho assimilados
No antes da chegada dos tormentos,
Que guardei-os no melhor dos seus passados...

Francesca Da Pampa (de Alma Welt)


Francesca Da Rimini
 
 
Francesca Da Pampa (de Alma Welt)

Dói-me deixar a Terra e mais meu Pampa,
Tanto, tanto, que meu rosto desfigura
Por mais que jovem sou, de fina estampa,
Que destes campos tive a sinecura.

Pelos peões saudada, sem surpresa
Como se ainda Império houvesse,
Ao passar desde guria qual princesa
Na terra que os farrapos não esquece...

Hei de voltar, meus versos já deixei
Para que, quem sabe, não me esqueçam
(pois somente os apagando morrerei),

Mas como antiga saga romanesca,
No vento, que meus traços apareçam
Abraçada ao meu amor, como Francesca...

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

The Fortune’s Fool (Alma Welt)



              Shakespeare                                                
 
                                                  Confúcio                 Heráclito

The Fortune’s Fool (Alma Welt)
 
Somos todos bobos do Destino
Como Romeu ao vingar o bom Mercutio.
Prefiro tudo o que precede o sino
Ao que disse Heráclito ou Confúcio.

Pouca coisa faz sentido nesta vida
Que não tenha dentro o amor e arte.
Na verdade é coisa bem sabida,
Ambos da maldade a contraparte.

Mas, Senhor Deus, que criastes o vazio
Que permeia o Universo inteiro
E não nos deixa vadear o mesmo rio,

Qual o sentido, senhor, de tudo isso
Já que somos os peões do tabuleiro
De um jogo em que o rei já deu sumiço?
 

A futilidade é o mal do mundo (de Alma Welt)


                             Quiromancia - gravura em metal de Guilherme de Faria, 1962

A futilidade é o mal do mundo (de Alma Welt)

A futilidade é o mal do mundo.
Tudo mais é desculpável, francamente.
A maldade e o pensamento imundo
Com ela coabitam a mesma mente.

Imensa é do fútil a descendência,
Toda e qualquer miséria é sua filha,
Inclusive as paixões e a demência
Que faz de um continente mera ilha.

Eis porque de Satã é o seu comando,
Ele, o Grande Fútil obstinado
Desde quando iniciou o seu desmando.

Mesmo Deus, nosso Supremo Compassivo
Se enche de nojo, e exasperado
Se pergunta onde falhou, qual o motivo...

Os Fantoches (de Alma Welt)


 
 
Os Fantoches (de Alma Welt)

Basta um leve desvio no enfoque
Para a vida monstruosa se tornar;
Do belo ao horror, somente um toque
E já podemos no inferno despenhar.


Como é fina e sutil a sintonia
Que nos permite viver em plenitude
De amor, serenidade ou alegria
Ou com outro ser a completude...

Pobres de nós, fantoches do destino
Manobrados por balouçantes fios
(que o desempenho devia ser mais fino)

E no final da função, emaranhados,
Às palmas misturando-se assovios,
Quando não francamente assim vaiados...

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Alma Convexa (de Alma Welt)


 
 
Alma Convexa (de Alma Welt)

Não desprezei a sociedade, o mundo,
Muito menos os frutos da amizade.
É que em minha alma fui mais fundo
Para toda me doar, não só metade....

Quero dizer que na alma concentrei-me
Para ser de quem me ler um bom reflexo
Do espelho profundo em que tornei-me
Malgrado este olhar duplo convexo.

Então, lente em mim, incendiei-me,
Já que esta é a sina do poeta
Como disse um outro em que mirei-me. *

Mas se viver não é preciso e sim criar,
Nem por isso fui monja ou só asceta:
Todo fogo sempre a todos quer se dar...

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Nota
*Como disse um outro em que mirei-me - Alma se refere a Fernando Pessoa, no seu prefácio famoso, em que este além de prometer incendiar-se, diz, prafraseando os antigos navegadores portugueses: "Criar é preciso, viver não é preciso..."
 

A casa vazia (de Alma Welt)



 
                              A bruma - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 1977
 

A casa vazia (de Alma Welt)

Agora que as cobranças terminaram
E não podem me pedir senão poesia,

Beleza, somente, que é o que me guia,
E sempre devida aos que me amaram,

Ainda dou-me o luxo da distância,
Do silêncio e solidão contemplativa
Que emanam dos campos desta estância
De onde eu mesma sou a patativa...

Senhor, o quê quereis, que vens de longe?
Pouco posso servir além do amargo,
E não sois certamente nenhum monge...

A casa está vazia e assombrada
Mas deitareis comigo, sem embargo,
Se me amares como outrora fui amada...

domingo, 3 de novembro de 2013

Os lugares comuns (de Alma Welt)



Detalhe do quadro Alegoria
 (Alma Welt, o passado, o presente, o futuro)
de Guilherme de Faria
 
Os lugares comuns (de Alma Welt)

Contigo o que farei, maturidade,
Se carrego ainda os sonhos loucos
Que me acalentei na tenra idade,
Eu que fora sonhadora como poucos?

Dei com os burros n’água, eu desconfio,
E os amores meus se foram com a maré,
E, bom clichê, fiquei no cais a ver navio,
Depois voltei pra casa andando a pé...

Mas persisto no que os sonhos me meteram
E não serei quem maldiga ou vá cuspir
Nos pratos que comi ou me comeram...

E agora, lambendo minhas feridas,
Permaneço quando mais devo partir
E enfim me despedir das despedidas...

sábado, 2 de novembro de 2013

O Divino Engodo (de Alma Welt)


                                                Jacó engana seu pai cego - Rembrandt

O Divino Engodo (de Alma Welt)

A vida ama o engodo, estou convicta:
Pela benção do Pai, as peles quentes; *
A primogenitura nossa, invicta
Só trocando as lentilhas pelas lentes. *

Na natura um perpétuo come-come,
O mais esperto comendo o toleirão;
E isso é imoral, malgrado a fome
Que suplanta a justiça e a razão.

Como toleras, Senhor, tal maroteira?
Fazes sempre, me parece, vista grossa...
Então a Justiça é a ratoeira?

Senhor, são insondáveis teus critérios
E a única opção ainda nossa:
Entre as cinzas e o pó dos cemitérios...

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Notas

  * Pela benção do pai as peles quentes - alusão ao episódio bíblico em que Jacó engana seu pai Isac com a juda de sua mãe Raquel, usando uma pele de ovelha nas costas para obter a benção de seu pai que só a daria ao primogênito, o peludo Esaú.

*Só trocando as lentilhas pelas lentes - Alma alude ao episódio da troca do direito de primogenitura por Esaú por um prato de lentilhas (que significa pequenas lentes). Outra maroteira do Jacó contra seu irmão mais velho. O verso da Alma insinua que Esaú não o faria se tivesse uma visão maior (uma lente) e não a imediatista da fome ou da gula que produz uma visão pequena (lentilha, pequena lente)...
 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A Arca no Sótão (de Alma Welt)



A Arca no Sótão

“O que se foi deixemos no passado,
Do contrário caímos na esparrela
De viver novamente o mesmo fado...
E de acender de novo a mesma vela.”

“E o pavio decerto está mais curto,
Muito em breve seremos cinza ou pó.”
Com aquele riso como um surto,
Assim dizia Frida, a minha avó.

Mas eu, entre o medo e o fascínio,
Sendo a curiosidade minha marca
E com forte atração pelo declínio,

Num sótão entulhado de mobília
Garimpava no cascalho de uma arca,
Virtudes nos pecados de família...