sexta-feira, 30 de junho de 2017

A Cornucópia (de Alma Welt)

Mil sonetos, e nenhum é uma cópia.
"És uma esganada"- diz um amigo-
"Assim esgotarás a cornucópia,
Se trata de poesia e não de trigo."

Mas se Deus me permitiu o copioso
Não a cópia de mim mesma, mãos à obra.
Só Deus é realmente generoso:
Fez estrelas demais e quem O cobra?

Quanto a mim, sou suspeita até de vício,
Pois se paro de escrever, eu fico louca,
Tenho mais de uma moral, como Vinício. *

Falo sério... escrever é minha missão
Dada por Ele, e por certo não é pouca,
Deus sussurrou-me para carregar na mão...

.
30/06/2017

Nota
*Tenho mais de uma moral, como Vinício - perguntado por uma jornalista, como ele podia fazer tantas coisa, como escrever poemas, fazer canções, cantá-las, escrever crônicas, e ainda cultivar os amigos, Vinícius respondeu. " É que eu sou plural, do contrário meu nome seria Vinício de Moral... (rrrrrrss)

Aviso aos navegantes (de Alma Welt)

Repasso muitas vezes no meu íntimo
Inteira a minha vida, num balanço,
Com rigor nos detalhes, desde o ínfimo
Pecadilho, de que ainda sinto o ranço.

A vida é um encadear de circunstâncias,
E sob um olhar assim só há justiça;
A perda é pois um fruto de ganâncias,
Não se amarra cachorro com linguiça.

Pedir perdão a Deus, só resta então
E também a quem tenha machucado
Ou porventura a quem não pude dar a mão.

Bom cabrito não berra, diz o povo,
Pois aviso aos navegantes nos foi dado:
Honestamente não pões de pé um ovo...

.
30/06/2017

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A grande lembrança (de Alma Welt)

Bem queria só lembrar dos tempos velhos
E para trás também deixar o atual,
Certamente não como escaravelhos
Rolando bosta, de costas, no terral...

Mas sim ter uma visão mais fidedigna
Do que foi a minha infância, de verdade,
Sem a pílula dourar, ou mais indigna,
Lamentando as perdas com saudade...

Entretanto minha infância está em mim
Bem entranhada na pele que me compõe,
Mas de uma noite o cheiro do jasmim:

Ali estou eu, guria em branca saia,
Já tentada com o que um guri propõe,
Antes que a memória se me esvaia...

.
29/06/2017

O argueiro e a trave (de Alma Welt)

Aos idiotas façamos vista grossa
Mas não ao Mal em si, que é muito grave.
No olho deles o argueiro apenas coça,
Mas no teu próprio olho é uma trave.

É o que Jesus dizia (mais ou menos),
E quem somos pra sequer entrar no mérito?
Sua palavra não é problema de somenos
Mas levanta questões para um perito...

Não à toa lancei mão da falsa rima
Pra da minha professora me vingar:
"Guria tola, mude o acento de lugar!"

Mas já estou divagando e me perdi...
Comecei com a melhor matéria prima,
E o argueiro no olho alheio apenas vi...

.
29/06/2017

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Politicamente incorreta (de Alma Welt)

Tenho vontade, muitas vezes, de gritar,
Como Pessoa morder a fundo a mão *
De tão cruel insensatez nos rodear
Sem que possamos sair na contramão

Da torrente invasiva da manada
Que se declara correta na política
Contradizendo toda a noção crítica,
Invertendo a razão por Deus nos dada.

Mas não entrar nessa polêmica jurei,
Para ficar naquele plano ingenuo só,
De Amor, que verso a verso semeei.

E se me permitem e me perdoam,
Volto ao jardim maternal de minha avó,
Antes que as minhas mãos meus dentes roam...

.
28/06/2017

Nota
*Como Pessoa morder a fundo a mão - Alma se refere a Fernando Pessoa e estes versos do poema Opiário, das Ficções do Interlúdio, do heterônimo Álvaro de Campos:

"Tenho vontade de levar as mãos
E morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos. "

A sabedoria das avós (de Alma Welt)

Talvez eu tenha pouco a acrescentar
Ao saber que o povo simples acumula
E que somente rebaixado vai faltar
Na praça, em rebelião, à turba fula...

Me refiro, sim, àquele comum senso,
E ergo loas ao popular acervo
De ditos, rimas e ditados, já tão denso
Que sem eles um discurso "dá no nervo".

Mas para cair bem uma anedota
É necessário o contador saber o vão
Em que introduzir sua colher torta.

Quão pedante o político ou poeta,
(se o geral entendimento é sua meta),
Que de um dito de sua avó não lança mão...

.
28/06/2017

terça-feira, 27 de junho de 2017

Um dia mais (de Alma Welt)

https://youtu.be/rvE7aM66-BM

Um dia mais (de Alma Welt)

Um dia mais, tal como aquele da canção
Dos Miseráveis, no mundo ainda ecoa,
E me põe esperançoso o coração:
Viver um dia mais, nem que me doa.

Nas ruas, pra tirar a tirania
Ou dentro de um quarto em frente à tela
Com aquele entusiasmo que havia
No tempo da candeia ou luz de vela.

Barricadas de clamor, furor sagrado
Na luta que é do povo, por direito
De nunca, nunca mais ser enganado.

Este amor ao povo em seu conjunto
Me comove por ainda o ter no peito
Um dia mais, mais um dia, e canto junto!

.
27/06/2017

O sonho do rei nu (de Alma Welt)

Ter um soneto ao menos cada dia,
Que não me falte, Senhor, senão eu morro.
Dodecassílabo, sim, eu preferia,
Uma certa mania em que incorro...

Cada qual com a sua loucura, bem sabemos,
E quem pode me julgar por tal conduta
Se forçados demais há já nos remos
E meu dia é sonho e não labuta?

Não faço mal algum, eu sei que é pouco,
Pros que gostam mais de espinhos que da rosa
E me veem acalentando um sonho louco.

Mas sonhar sonhos é tudo o que eu sei,
Não ideais de origem duvidosa
Mas dos que fazem dum ser nu, um belo rei...

.
27/06/2017

Manhã fria ou As botinas de Van Gogh (de Alma Welt)

                                                                     As botinas de Van Gogh

Manhã fria 
ou As botinas de Van Gogh (de Alma Welt)

Não diria, ó manhã fria e enevoada,
Que da desesperança és o inverno, *
Mas acordo feia e estremunhada
Pensando na madeira de um tal terno *

Em vez de meu vestido branco e longo
Em que costumo andar por esse campo
Colhendo ervas, flores e um ditongo
Que usarei num verso oblíquo e manco.

Como parece inútil essa rotina
Em que tudo, cedo ou tarde, se transforma
Não como de Van Gogh a sua botina

Cheia da dignidade da pobreza
Que de palha um acento humilde forma *
Do pobre artista o trono em realeza...

.
27/06/2017

Notas
*Que da desesperança és o inverno - alusão ao famoso primeiro verso do monólogo do rei que abre a peça Ricardo III, de Shakespeare; "Este é o inverno da nossa desesperança... "

*Pensando na madeira de um tal terno- Alma alude a um caixão de defunto, isto é, morrer (na imagem popular: "vestir um terno de madeira")

*Que de um velho acento humilde forma
do pobre artista o trono em realeza - alusão a um outro quadro famoso de Van Gogh, o de sua cadeira de acento de palha...


segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Farol (de Alma Welt)

O mundo inteiro está dentro de nós
E saberemos se cessarmos o barulho
Como um rio desaguando em sua foz
Num poder imenso em seu marulho...

Ouçamos o silêncio dessas águas
Como também a sua fúria colossal;
Esqueçam seus fracassos, suas mágoas
Que estas fazem um ruido tão banal...

Mas seremos um farol ou o faroleiro
Se conscientes da nossa utilidade
Fazemos o que é justo e verdadeiro

E acendemos um espelho sob a derme
Que se alimenta do fogo da Verdade
Que a Terra exige ao menor verme...

.
26/06/2017

domingo, 25 de junho de 2017

Extremada (de Alma Welt)

A vida guarda nossos passos, mal ou bem.
Não passamos, no geral, em nuvem branca.
Alguns de nós agem só como convém,
Outros dispostos a até quebrar a banca.

O mundo é confuso, heterogêneo,
Mas do caos vez por outra nasce a flor
Que fará a diferença, que é o gênio,
Que nos restaurará a fé e a cor...

Sem Mozart Van Gogh e até Rimbaud
Se eu mesma conseguisse ter vivido,
Sem Beethoven eu preferia ter morrido.

Mas se me dizes: "Chega disso, Alma, pô!
Sempre extremada em teus dizeres!"
Eu então fico bem grata por me leres...

.
24/06/2017

sábado, 24 de junho de 2017

Sobre a Luz (de Alma Welt)

O mundo não é só aqui e agora
Mas toda a sua trajetória desde a Luz
Que rompendo as trevas, muito embora
Alguns a evitemos, nos conduz...

Quem não se atrairia por seu brilho
Ao menos como simples mariposa
Ou como as galinhas pelo milho,
Ou então por estas mesmas a raposa?

Efeméridas diante da eternidade
Nossa vida é um piscar vista de longe
E mal chegamos a ser vistos de verdade.

Mas se Amor acrescentarmos à fagulha,
Nosso brilho talvez nem o Tempo esponje
E o camelo então passe pela agulha...

.
24/06/2017


______________________

About Light (Alma Welt)

The world is not just here and now
But all his trajectory from the light
That breaking a darkness even though
Some will avoid it, guide us ...

Who would not be attracted by its brilliance
At least as simple butterfly
Or like chickens by the corn,
Or by these same the fox?

Ephemerides in front of eternity
Our life is an intermittent view from afar
And we could barely be seen for real.


But if Love enters the spark,
Our brightness may not even fade
And the camel then goes through the needle ...



____________________________

E agora uma transliteração que acabo de fazer pelo menos com ritmo e rimas

About Light 
(Alma Welt)

The world is not just here and now
But all his trajectory from the light
That breaking the darkness at night
Even Some will avoid it, guide us all ...

Who would not come when light borns
At least as butterfly or even ox
Or like chickens by the corns,
Or in the farm those dumbs, by the fox?

Ephemerides in front of eternal view
Our lifes, whose intermittent spark was made,
May be barely could be seen for real.

But if our Love enters like a fiddle,
Our brightness may not even fade
And the camel even can goes through the needle...
.
6/24/2017



Final pós moderno (de Alma Welt)

O suspiro era o nosso último rito,
Agora um bip bip (brincadeira!...)
Que cessa depois virando um apito
Chamando atarefada enfermeira.

Não haverá tuas últimas palavras,
Que ninguém, de qualquer modo, quer ouvi-las,
Nem um único verso de tuas lavras,
Que pra colhê-las já não faziam filas...

Teu nariz antes nobremente erguido
Ostenta agora uns tubos transparentes
Último elo com a vida, conhecido...

Mas junto ao leito, um ou dois parentes
Pensarão em ti por mais um só momento,
Com alívio: fim do seu (deles) tormento...

.
24/06/2017

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Sonetinho político (de Alma Welt)

"Esperemos, todavia, mais um dia.
A condená-los não nos precipitemos.
Eles morrem dos seus próprios venenos,
Deus nos dá o livre arbítrio, mas vigia."

Assim disse um mestre pr'um discípulo
Que queria uns traidores condenar,
Mas não pensem que a trama manipulo,
Até usando a rima pobre pra fechar...

Do rei então chegaram os soldados
E cercaram o palácio com canhões,
Esgotadas mil e uma opiniões.

Então disse o mestre para o aluno:
"O problema não é serem malvados
Mas é que o poder muda de turno..."

.
23/06/2017

O Poço (de Alma Welt)

De um poço uma vez me vi no fundo
Mas flutuando sem sequer relar o pé.
Então meio descrente deste mundo
Eu pensei em descer um pouco até...

"Senhor Deus, só preciso meu impulso
Para a Vós eu subir rápido e bem."
Mas então fui agarrada pelo pulso
E puxada por um anjo ou por alguém.

Então Deus me disse (creiam ou não):
"Alma o que lhe falta é humildade.
Pensa que subiria sem minha mão?"

"Só com meu consentimento a folha cai...
Quem acha que lhe deu curiosidade
Tamanha, que de um poço ao fundo vai?"

.
23/06/2017

quinta-feira, 22 de junho de 2017

A Nova Nau Catarineta * (de Alma Welt)

Navegamos nestas águas obscuras
Das quais só enxergamos superfície
Que não pode refletir nossas figuras
Sem misturá-las com a imundície.

Capitão, ó capitão, mudai o curso,
Sou seu vigia, assim me nomeastes!
O piloto, nomeado por concurso
Não conhece destas águas os contrastes.

Certamente navegamos sobre escolhos,
Invisíveis que estão aos nossos olhos,
Disfarçados seus perigos pelas vagas.

Na vida assim como em sujas águas
Somos dados lançados à ventura,
Nesta Nau Catarineta que perdura...

.
22/06/2017

Nota
* Nau Catarineta - é um poema narrativo do tempo do Brasil colônia e que está na raiz do cordel nordestino, sendo talvez uma espécie de precursor do gênero. Conta a história de uma nau de nome catarineta, que perdida no oceano há meses, a tripulação toda em agonia de fome "lança sortes à ventura" , isto é jogam dados para ver quem seria morto para servir de alimento aos outros ( canibalismo mesmo!) . A sorte caiu sobre o próprio capitão, que para ganhar tempo , manda o gajeiro (vigia) subir no "tope real" para ver se avistava "terras de Espanha, areias de Portugal". O gajeiro sim, avista e mais: três donzelas debaixo de um laranjal, "uma na teia a tecer, outra na roca a fiar/a mais bonita das três daqui a ouço cantar" ... "vejo mais: espadas nuas que vêm para te matar ... "No final o capitão , dizendo: " Minha alma entrego a Deus, e o meu corpo eu dou ao mar", se atira às águas. Mas um anjo desce e salva o capitão, retirando-o das águas. A Nau Catarineta chega afinal "a um porto de mar".


quarta-feira, 21 de junho de 2017

Injustiça (de Alma Welt)

Conheci um velho sábio realista
Que tendo ele destrinchado muitos tomos,
Dizia não haver pura injustiça
E que tudo dependia do que somos,

Que sofremos somente por defeitos
De nosso próprio caráter meio tosco
E que as virtudes tem sempre bons efeitos
Como dizia o nosso bom Dom Bosco.

Mas o erro percebi de sua premissa
Pois a imperfeição do mundo só consiste
Justamente na falta de justiça

Quando vejo uma criança esfaimada
Sem nenhum motivo justo vitimada,
Nós, periquitos, a desperdiçar alpiste...

.
21/06/2017

Mundo Impressionista (de Alma Welt)

Para entender o mundo e a vida
Precisamos um pouco de distância
Pra enxergar pontos na tela em sua ânsia
De somarem-se pra ser vista e entendida.

Assim, como um quadro, mais ou menos,
Que nós mesmos pintamos apressados
Mas não como coisa de somenos
Ou buscando conquistar interessados.

Muito de perto e à primeira vista,
Vede, o nosso mundo impressionista
Não era o que todo mundo via.

Mas na distância certa, quê beleza,
Se descortina a verdadeira natureza
Do caos que dissimula a harmonia...
.
21/06/2017

A Barqueira (de Alma Welt

Temos todos que atravessar o rio,
Não podemos simplesmente aqui ficar.
Sempre há um grande rio a nos cortar
E nesta margem estou que não me fio.

Olhai o sol, vai nascer no outro lado
Onde as grandes pastagens são mais verdes
Como os olhos de alguém que eu tenha amado
Antes de eu me entregar e vós me terdes...

Como poeta, barqueira confiável
O óbulo não cobro e sou afável,
Não sinistra como aquele velho guia,

Um morto a oferecer o seu serviço,
Cobrando de um povo assustadiço,
Fazei, então, comigo, a travessia...

.
21/06/2017

terça-feira, 20 de junho de 2017

Foi-se Martello... (de Alma Welt)

Ser bom poeta é ter os pés na terra,
Ao contrário do que muitos apregoam.
É ser lúcido, condição que aberra,
Numa terra onde os sonhos sobrevoam.

Sonhos de grandeza ou de maldade,
Estes últimos bem mais numerosos
Proliferam no campo e na cidade
Com seus falsos devaneios rumorosos.

Aqui no bairro, uma mulher se despediu
Do marido, o conhecido seu Martello,
E acenando disse "Foi-se! Ele partiu!

Agora chora a viuvez desencantada
Tendo desmoronado o seu castelo,
Sem Martello, já que foi-se, sem mais nada...

.
20/06/2017

A Barca do Esquecimento (de Alma Welt)

Se de bajuladores tu não gostas,
Por que Deus gostaria, não é verdade?
Neguinho a toda hora de mãos postas
Os joelhos no chão, falsa piedade...

Mas o momento superior, de contrição,
É uma imensa pena disto tudo,
Do sofrimento real por tua nação,
À dor de quem ainda sofre mudo

Uma vida miserável, de agonia,
Sem real perspectiva de um alívio,
Já caído nas garras da Utopia...

De Deus o Reino quase tudo abarca,
Mas um monte escolhido pelo oblívio
É justamente onde foi pousar a Barca...

.
20/06/2017

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Flores falsas (de Alma Welt)

Descontando serem meio interesseiras,
Só as flores são de fato generosas,
Pois dão mais do que cobram, como as rosas
Que os espinhos relevamos, por besteiras.

Existem as carnívoras, entretanto,
Que nos parecem personagens de terror
Que nos causam tanto medo quanto espanto
Com dentes grandes ou somente mau odor.

Até as flores têm seu paradoxo,
Como um crente fiel muito zeloso
Disfarça um fanático ortodoxo.

Por isso precisamos sobriedade
Pra não sermos com a nossa dubiedade
Flores falsas num mundo já enganoso...

.
19/06/2017

A cruel harmonia (de Alma Welt)

Para estar em paz com a natureza
É preciso alcançar nossa harmonia.
Vede o voo da coruja, que leveza!
E o macho alfa da alcateia como guia.

O bote da raposa sobre a neve
E o balanço do chita em disparada;
O mergulho da águia após se eleve,
Já quase nas nuvens, sua emboscada.

O sonar do morcego, o olho do lince,
Da cascavel o chocalho generoso
Para dar um aviso ao presunçoso...

Mas dou-me conta de que tudo é predação,
E o homem com seu "veni, vidi, vinci"
Teve tanto a quem puxar na Criação...

.
19/06/2017

Cartas marcadas (de Alma Welt)

O Tempo nos conjuga o tempo todo,
Brincando, báh, conosco nos três tempos,
Dando às vezes com a gente nalgum lodo
Ou somente inventando uns contratempos.

Um cozinheiro gentil que nos cozinha
A fogo lento com temperos de ironia;
Falso vidente o final nos advinha,
Que em cartas marcadas já o sabia.

Aquele bobo da fortuna, ou coringa,
É carta descartada em nosso truco,
Que o gaúcho bebe mate e pouca pinga.

Mas sabemos, nada adianta nosso zelo
Se tivermos que morrer por um trabuco
Ou rezando a Deus no leito e quase a vê-Lo...

.
19/06/2017

domingo, 18 de junho de 2017

Oração espertinha (de Alma Welt)

Deitei-me sob o meu umbu pampeiro
Após ter muito andado na coxilha,
Das gramíneas sentindo o doce cheiro
E ouvindo o som da vida que fervilha.

Então pensei: isto tudo é um presente
Da Natura que é Deus disseminado,
E é assim que Ele se faz onipresente
Pois em cada segmento unificado.

Assim aconchegada em vasto colo
Eu estive por momentos tão completa
Que nem mesmo pousava sobre o solo.

Não me solte, Senhor, vos peço, nunca mais!
Já estou no Céu, que é a Vossa meta,
Morrer agora seria andar pra trás...

.
18/06/2017

sábado, 17 de junho de 2017

Receita para um feriado prolongado (de Alma Welt)

Temos muito o que fazer dentro de nós,
A começar: tirar teias de aranha
E espanando esse nosso pó, após,
Polir pratas se isso não as arranha.

Depois dentro enfeitar com bandeirola
Senão com nosso estandarte da paixão;
Então botar um bom disco na vitrola,
De preferência a nona, aí à mão.

Sim, a Ode à Alegria de Beethoven
Parceria com o Schilller, mas bem alto
Pois assim nossos vizinhos também ouvem.

E então regendo com entusiasmo,
Abrir os braços correndo até o asfalto
Entre carros que buzinam, o povo pasmo...
.
17/ 06/2017

sexta-feira, 16 de junho de 2017

As Invasões bárbaras (de Alma Welt)

Estamos na beirada, não no meio,
Do abismo nascemos numa borda.
Brincamos, tolos, no campo de centeio, *
Falta o apanhador ou uma corda. *

Diante deles, como somos indefesos!
Mas tão só no mau sentido inocentes,
Em espírito tornamo-nos obesos
E estamos precisando ser valentes.

Por nossa atual fraqueza e covardia
E de nossos vãos tremores de maleita,
Do Mal não se obtém nenhum proveito.

Bárbara invasão já se anuncia,
Enquanto a canalha rola e deita
Pintemos novamente a cruz no peito...

.
16/06/2017


Nota
*Brincamos, tolos, no campo de centeio,
Falta o apanhador ... - alusão ao episódio chave que dá nome ao livro "O Apanhador no Campo de Centeio", de JD Salinger.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Por quê não te calas? (de Alma Welt)

Uma ou outra pessoa, temerosa,
Se afasta de mim, furtivamente,
Por medo da verdade em verso e prosa,
Deste meu questionamento permanente.

"Por quê não te calas, Alma inquieta?"
Pensam essas pessoas, eu presumo.
"Já falaste bastante, estás completa,
Já fizeste da vida um bom resumo... "

Mas destas pessoas desconfio
Já que querem me calar com indulgencia
Ou docemente me fazer perder o fio.

Sou doce, mas com um pequeno travo.
Rosa com espinhos de emergência,
Rosto meigo que protege um peito bravo...
.
15/06/2017

Onde reinam os lobos (de Alma Welt)


Onde reinam os lobos (de Alma Welt)


Dentro em nós, num país de gelo e sombra
A alcateia reina absoluta,
Patas na neve macia como alfombra,
Silenciosos, furtivos, sempre em luta

Contra a fome de um reino contingente
Que avança no nosso território,
Não obstante o falso palavrório,
Já que tudo se passa internamente.

Ninguém estende a mão, braço esticado
Para um dócil focinho, engano ledo,
Que este cão nunca foi domesticado...

Onde os lobos reinam em nossa alma
Raramente voltamos, pelo medo
Que nós temos de lhes dar a nossa palma...
.
15/06/2017

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Em Nova Temporada (de Alma Welt)

O rastro que deixamos nesta vida
E que pode como trilha ser seguido,
Tem por certo nossa marca definida,
A digital da alma e seu sentido...

Mas não quero ser assim tão taxativa:
Existem almas com uma passada leve
Que não deixa impressão ou marca viva,
Conscientes demais que a vida é breve.

Mas eu, graciosa ou estabanada,
Dancei, cantei, girei minha bengalinha
Esperando por Deus ser contratada

Não apenas pr'uma exibição privada
Que só Ele reconheça como minha,
Mas pra voltar numa nova temporada...

.
14/06/2017

Chocolate com pimenta (de Alma Welt)

Quantas vezes eu já pensei em desistir...
Perdoem-me, amigos, minha fraqueza,
Num mundo duro e seco fui cair,
Contrário à minha doce natureza...

É verdade que uma dose de ironia
Apimentou meu relacionamento
Com vocês através da minha poesia,
Fiel que sou à deixa do momento:

Perco o amigo mas não perderei a rima
E por isso fui tachada negligente,
Ocupada demais com a auto-estima.

Mas garanto, amigos meus, sou inocente,
Não como uma criança sem maldade,
Mas sim como uma criança de verdade...

.
14/ 06/2017

terça-feira, 13 de junho de 2017

Alma e o Lobo-Guará (de Alma Welt)

                                      Alma e o Lobo - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2006, 150x150cm 

Alma e o Lobo-Guará (de Alma Welt)

Entre tantos caminhos que se abriam
Escolhi pelo jeito o mais ameno,
Aquele em que até os cães se fiam
E o capim pro meu cavalo, puro feno...

Entretanto, a poesia é uma armadilha
Cruel, terrível, de pegar lobo-guará,
Que os malvados armam na coxilha
Para quem anda por aí ao Deus dará.

Bah! Que engano ledo é o mar de flores,
Antes ficasse co'a avó em seu jardim,
O que me evitaria tantas dores...

Mesmo assim andei nua pela vida
E fui lobo e caçador, ambos de mim, *
Quase só por mim mesma enaltecida...*

.
13/06/2017

Notas
*E fui lobo e caçador, ambos de mim - uma alusão ao verso "Eu, caçador de mim... ", da canção famosa de Milton Nascimento.

*Quase só por mim mesma enaltecida - a chave de ouro deste soneto é ilustrada com precisão na minha pintura "Alma e o Lobo", pelo gesto de mão para o alto da poetisa nua...

(Guilherme de Faria)

O caminho (de Alma Welt)

Realmente, amores meus, eu sinto tanto
Que demos com os nossos burros n'água,
Que a nossa vaca foi pro pântano
E que minha rima falsa causou mágoa.

Dei de mim o que melhor me parecia,
E se, ao menos, não falhei com a poesia,
E nela nunca abjurei a minha fé,
Alguns já dizem que me dei tiro no pé...

Arruinei a minha estância e meu vinhedo
Que agora seco está (não mais seu vinho)
E minha casa em ruínas mete medo.

Mas se o vento retomou a minha estância,
O mesmo frio minuano de minha ânsia,
Nada foi chegada mesmo, só caminho...

.
13/06/2017

Caminhando entre as flores (de Alma Welt)

Caminhar entre estas flores me foi dado
Como um dos meus muitos privilégios,
Que foram como que presentes régios
Ofertados pelo Deus que os tem criado.

Não vivi em terra árida mesquinha
Que, bem sei, também as há pelo planeta.
E se minha caminhada é tão sozinha
Não recomendo a outro que a cometa.

Mas bem cedo percebi que vim pra dar
E vivendo em plenitude e abastança
Bons amigos não iriam me faltar...

A solidão entre flores foi escolha:
Do "amor-perfeito" se não tive a aliança,
A mim não foi vedado que Amor colha...

.
12/06/2017

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A hora marcada da Alma (de Alma Welt)

O melhor de mim é o desespero,
Surdo, pálido, contido, amordaçado,
Que me dá esta tez branca, um certo esmero,
Que alguns pensam ser um anjo disfarçado.

"Como? O que dizes? Não blasfemes! "
-Clamam os amigos de minha alma-
"Bem sabemos que quase nada temes
E no porte aparentas muita calma."

Bah! guris, que muito já brincamos!
Então não vêem aonde já chegamos?
Tão marcados por dentro e não por fora...

Minha dor é querer mais de tanta vida
E saber que está chegando a minha hora,
A de vocês ainda é desconhecida...

.
12/06/2017

A Chave do Soneto (de Alma Welt)

Para alguém ao bom soneto se lançar
É preciso que ele tenha o que dizer
Mas mais ainda o que muito perguntar
Pois os versos cuidarão de responder.

Curiosidade imensa, em resumo,
E de fundo uma certa rebeldia
Para questionar da vida o rumo,
E tanto mais de onde se inicia.

O sentido da Vida? Seu mistério?
O soneto lhe dirá, mas ele inverte
Apontando teu lugar no cemitério.

Deus lê os teus sonetos, pobre Alma,
E sorri, pois muitas vezes se diverte:
Tudo estava escrito em tua palma...

.
12/06/2017

domingo, 11 de junho de 2017

O enigma do presente (de Alma Welt)

"O desencadear das circunstâncias
É o que explica o nosso aqui-agora.
Não entrarei no mérito das ânsias
De tudo o que em nós germina ou gora..."

Assim falava uma vidente num jantar
Durante a estadia aqui em casa,
E eu, guria, não cansava de a mirar
Com interrogação no olhar em brasa.

Então um dia dirigindo-me a ela,
Questionei-a com entonação singela:
"Senhora, saberás ler minha mão?"

"Eu queria decifrar o meu presente
Pois não há maior mistério ou confusão
Do que este próprio coração da gente..."

.
12/06/2017

O Elefante na Sala do Banquete (de Alma Welt)

A mesa está posta, do banquete,
Mas não servida, é claro, para todos.
Não falta nem o pão e o rabanete,
E assado, o javali grande dos lodos.

Enquanto o teto não desaba, o inimigo
É cupim quase invisível: rói por dentro
Enquanto preservamos nosso umbigo
Porque pensamos só estar no centro.

Não estamos na selva? Um restaurante?
Me desculpem, me perdi a admirar...
Então é só decoração o elefante?

O menu é sempre o mesmo, a se notar:
À direita um pato exuberante,
Na metade da esquerda, o caviar...

.
11/06/2017

sábado, 10 de junho de 2017

Psico ecologia (de Alma Welt)

Deus criou a terra e o mar salgado
E nos deu o pão e o presunto.
Nós fazemos arte quando muito
Mas suponho que também é emprestado.

A arte é divina quando é boa
Porque existem aquelas do demônio
E que não são simplesmente da garoa
Mas camada falsa como ozônio.

É preciso separar joio de trigo
E isso dá canseira e até muita
E deixamos passar o inimigo.

Amiúde fazemos vista grossa
Para quem se aproxima e só assunta
Furando o ozônio da camada nossa...

09/06/2017

Depoimentinho (de Alma Welt)

A vida é muito triste, eu reconheço.
Quanto a mim, no entanto, nem um pouco.
Eu rio, gargalho, e me enterneço
E às intrigas faço ouvido mouco.

Não sou chegada a rapapé nem vênias,
Meus sonetos não comportam emendas,
Minhas bacantes são todas abstêmias,
Creio pouco no real e mais nas lendas.

Vivo como se a vida fosse justa
E feiura e maldade não houvessem
E portanto desmontá-las não me custa.

Felicidade? Não estou falando disso...
Para que a dor e os sofrimentos cessem,
Desisti de ter com ela compromisso.
.
09/06/2017
.

O deus dos desacatos (de Alma Welt)

O soneto é melhor em quantidade
E necessário escrever um depois de mil,
Como poeta ser uma Sherazade
Salvando sempre sua vida por um fio.

De Damocles a poesia é uma espada,
Se a tememos o fio se romperá,
Mas de Penelope a teia desmanchada
A sua bela integridade salvará.

Mas somente os poetas sabem disso
E são às vezes olhados como loucos
Pela incerteza de assumir tal compromisso.

Mas lhes garanto, ó sábios e sensatos,
Que um poema é um labirinto para poucos:
No centro está o deus dos desacatos...
.
08/06/2017

À individualidade (de Alma Welt)

Mantenhamos individualidade,
Nossa dádiva maior e espantosa
Nesse imenso canteiro da cidade
Desde que uma rosa é uma rosa... *

Porque nada nos levaria a crer
Que a nós fosse possível tal milagre
Quando a alma pode ou tende a se vender
E o próprio vinho caminha pro vinagre.

O Criador nos quer à sua imagem
Que é múltipla como a sala dos espelhos
E infinita como estrelas sem contagem.

Então nossa máscara retiremos,
O único ou melhor dos meus conselhos,
São infinitos os grãos do pó que recebemos...

07/06/2017

Nota
* ...uma rosa é uma rosa - alusão à frase
famosa da escritora americana Gertrude Stein: "uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa..."

domingo, 4 de junho de 2017

No Olho do Furacão (de Alma Welt)

No furacão há sempre uma calada
Profunda, imóvel, e em pleno olho.
Assim também em nossa estada
Vital e que por graça ainda escolho.

O silêncio em meio à agitação
E desvario que é a vida humana
No debater-se e no crispar da mão
Para agarrar-se nesta nau insana.

Mas a serenidade ou harmonia
Também será possível em meio ao caos
Se nos refugiarmos na Poesia

Que nos dá guarida e até consolo,
E perante tanta dor e tanto dolo
Uma nota de humor que ri dos maus...

.
04/06/2017

sábado, 3 de junho de 2017

A Idade das Trevas (de Alma Welt)

Poeira sobre a terra, aglutinada,
Estamos a mercê dos grandes ventos,
Das chuvas de pedras, da queimada,
Mas sobretudo dos fatos, dos momentos,

Que não temos então como contestá-los
Embora alguns o façam, os ridículos
Amantes da utopia em pratos ralos
Na mesa dos outros, falsos vínculos...

Ah! Os santarrões de sonhos falsos!
Já meu pai me advertia contra eles,
Que apenas construíam cadafalsos...

E como mentem, torcem, desfiguram
A verdade crua e nua, mesmo a deles,
Que a Idade das Trevas inauguram...

.
03/06/2017

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O Destino e as cartas (de Alma Welt)

“Se é verdade que temos um Destino
Os arbítrios foram todos programados,
E o seu total desvelo sibilino
Não lograria mudar os resultados.”

Assim disse um filósofo caseiro
Que não obstante o pedantismo
Não queria de mim nenhum dinheiro
Mas apenas exibir seu ceticismo.

Afinal procurei a minha cigana
Pelo mistério dúbio que emanava
Da estranha silhueta de Medusa

Que sugeria a terrível morte humana
Que me esperava como poetisa e Musa,
Mas que deitando cartas me encantava...
.
02/06/2017