domingo, 28 de agosto de 2016

Ardente (de Alma Welt)

Ardente como o tom das minhas mechas,
Com um preço a pagar, demais até,
Minha poesia é profissão de fé,
Como um santo crivado de mil flechas.

Haja fôlego, prazer e desespero,
Pois todo mel tem seu veneno.
Para impune mexer nesse vespeiro,
Desarmei a cama no sereno.

Fui até aquele arroio do Chuí
Mas não subi até o Oiapoque
Pois fiquei na estrada e sem reboque.

E logo voltei pra minha estância,
Não pra ficar quietinha por aqui,
Mas para dar um tempo em minha ânsia...

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28/08/2016

Memórias (de Alma Welt)

A felicidade é uma virtude
Da qual infelizmente tenho pouca
Na verdade dela tive o quanto pude
Antes de viver a vida louca.

Como foi gloriosa a minha infância!
Brincando no jardim em meio às flores
No aconchego do lar e desta estância,
Com seus peões gaúchos domadores

Que cercavam nossa casa como um forte,
Homens rudes mas como cães fiéis
E eu podia brincar na minha corte...

Tudo era bem-me-quer e bem-me-queira,
E a vida era suave, em tons pastéis,
Como princesa eu fora, verdadeira...

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28/08/2016

A Torre (de Alma Welt)

                                      A Torre de Babel- pintura de Peter Bruegel, o Velho

A Torre (de Alma Welt)

Aos vinte fui ao encontro da cidade
Pra conhecer melhor o ser humano.
Meu pai morto, para mim calamidade,
Me deixara prostrada por um ano.

A Porto Alegre fui e à Paulicéia
Onde estava a raça laboriosa,
Segundo uma certa lenda hebreia
De Babilônia e sua torre gloriosa.

Ali vi cada homem com sua língua
Que nunca era igual e a mesma
E faz com que alguns vivam à mingua.

O mundo era caos e iniquidade
O amor era uma espécie de abantesma
E vi que a torre surda era verdade...

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28/08/2016

sábado, 27 de agosto de 2016

Minha escolha (de Alma Welt)

Minha vida para mim é um mistério
Pois me foram dados tantos dons
Que tive que escolher meu ministério
Para não incorrer em meios tons.

A mediocridade é uma desgraça
De que jamais eu quero fazer parte:
Beleza relativa, escassa graça
Ou risinho amarelo de descarte...

Mas paixão, amor em dobro, lancinante,
Meu reino de prazer dali por diante,
Foi escolha ao preço da agonia

De viver assim no fio da lâmina
E ser último reduto da poesia,
Minha própria musa, ninfa e anima...

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27/08/2016

Punhais lavrados (de Alma Welt)

Quando guria, dos peões me aproximava
E pedia para ver os seus punhais
Que cada um em sua faixa carregava,
Cabo de prata, bainha e tudo mais.

E ficava um momento admirada
Das belezas cinzeladas nos seu cabos
E nas bainhas de prata tão lavrada
De proezas eram eles uns nababos...

Mas um dia ocorreu de eu ver sangue
Numa peleia entre dois daqueles machos
E meu rosto, por sua vez, ficou exangue.

E diante do cadáver de um rapaz,
O primeiro de uma série de despachos,
Proezas, prata e sangue, nunca mais...

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27/08/2016

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O que dizem os mortos (de Alma Welt)

"A vida é de tal modo perigosa
Que a morte é o menor dos seus perigos.
Podes perder a alma numa prosa
Se o diabo for um dos teus amigos."

Dizia a minha avó, a feiticeira,
Dando uma gargalhada muito fina.
E eu então me esgueirava bem ligeira
Pra visitar meus mortos na colina.

Que entre lajes e o silencio tumular
Eu podia com os mortos conversar,
Onde só se ouvia o som do vento.

Quando de dúvidas a nossa alma criva
O diabo existe, sim, por um momento,
Mas os mortos só diziam: "Viva, viva!"

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27/08/2016

O Elogio da Feiura (de Alma Welt)

Um dia ainda me canso da beleza
E jogo para o alto essa procura
E passo a dedicar-me, sem tristeza,
Ao discreto charme da feiura.

Mas não entendam feiura como o Mal
Que este pode até ser belo às vezes
E dizem, para a Terra é como sal
Que nos coxos faz pirâmides pras reses. *

A feiura é o reverso da medalha
E não tem do Mal a insensatez
Ou a banalidade como falha.

Um dia, o feio e o mau se encontraram
E juro que de cara se estranharam:
O anjo mau prezava muito a sua tez...

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26/08/2016

Nota
*Que nos coxos faz pirâmides pras reses - Uma curiosidade conhecida no meio rural. O sal que se coloca nos coxos para suprir esse mineral necessário às reses, com um pouco d'água e sob o sol, se cristaliza numa miraculosa forma de tijolinhos que se juntam formando pequenas pirâmides perfeitas.

Fumo no ar (de Alma Welt)

Eu tenho uma tristeza incompleta
Que é a de saber como é o mundo,
Sem maiores ilusões por ser poeta,
Mas por ser poeta vendo o fundo.

Uma dupla visão sempre me coube,
O bem e o mal se completando
E a beleza disso sempre soube
Por instinto, e não por onde ando.

Sim porque escolho as companhias
E não ando por aí a esmo, às tontas,
Com a minha cabeça nas poesias.

Os poemas afinal são o resumo,
Ou uma certa solidez, no fim das contas.
Já a vida, está no ar e é como o fumo...

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26/08/2016

O velho mal (de Alma Welt)

Guria, eu costumava ir pelos campos
Por uma hora até, às vezes mais,
Cercada do fulgor dos pirilampos,
Nas noites de luar, cheias de paz.

E eu pensava que o mundo era perfeito
E que o mal era coisa do passado.
Que os males que os homens tinham feito
Tinham finalmente se acabado.

E só estava nos livros a maldade
Arquivada nas lombadas nas estantes,
Enterrada, agora, e sem saudade.

Mas meu pai me avisou logo, prudente,
Cuidado, minha Alma, não levantes
O velho Mal, com teu olhar tão inocente...

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26/08/2016

A companhia das rosas (de Alma Welt)

O mundo é tão cru, que dá engulho
Se nos dispusermos a enxergar,
Tudo fruto vão do nosso orgulho
E da maldade também, nossa, sem par.

Entretanto o mal podemos evitar
Andando numa senda alcatifada
De flores, como uma perfeita estrada
No meio do lameiro, como um lar.

Pois chafurdar na lama é opcional.
Se com porcos tens alguma coisa a ver
Não te espantes de na foto ficar mal...

Tudo vai de com quem na foto posas,
Tudo é uma questão de escolher,
E a minha companhia é a das rosas...

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26/08/2016

As rosas de minha avó (III) (de Alma Welt)

"Tome muito cuidado com tua vida."
Dizia a minha alsaciana avó
Podando suas rosas na medida
Com aquela firmeza de dar dó.

"A vida tem espinhos como as rosas,
E é preciso saber manipulá-la,
Já que aquelas coisas mais gostosas
Têm como preço a dor e a vala."

Assim ficávamos por uma meia hora
Em relação à vida planejando,
Eu me preparando pra ir embora.

Pegaria o trem na estaçãozinha
E estar despreparada eu já pensando,
Pobre rosa, que eu nem espinhos tinha...

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26/08/2016

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Deus se diverte (de Alma Welt)

A consciência, que devia ser geral,
Foi uma pena de Deus para uns quantos.
Muitos perdem a inocência em alto grau
Sem ganhar esta pena e os seus prantos.

E estão aí seus crimes e desmandos
Atormentando o resto da manada
Como o lobo, às vezes alfa com seus mandos
Mas sem servirem, ao contrário, para nada...

Como nós vendo um Chefão em belos filmes,
(como gostamos de seus tiques e seus crimes!)
Deus se diverte, é visível, com o vilão,

E, é claro, não nos leva muito a sério
Pois parece apreciar filmes de ação
Desses que enchem bem o cemitério...

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25/08/2016

A Deus (de Alma Welt

É espantoso o nosso dom da Vida:
Nascemos, pois, podemos procriar,
Embora sempre em meio à dura lida
Com ou sem licença prêmio pra parar.

Mas a que vem, meu Deus, sinceramente
Sobre este solo tanto desperdício
Com milhões de tuas crias qual semente
Plantadas sem adubo e sem ofício?

Muitas sem razão, pois primorosas,
Que sem nenhum espinho eram rosas,
Tão logo na Terra, em baixo dela.

É difícil compreender os teus desejos,
Quando elas querem colo e coçadela
Ser a morte o primeiro de teus beijos...

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25/08/2016

Psicologia geral (de Alma Welt)

É preciso estômago pra viver,
Coração também, pra viver bem.
Mas digerir o mal desde o nascer
Sem se contaminar, é ir além.

Tudo conspira e vai contra a pureza.
A inocência é assaltada dia a dia
E seu milagre, e até sua poesia,
É resistir sem perder delicadeza.

Quando vejo um inocente vejo um forte.
Todos nalgum ponto nos perdemos
E se percebe isso em nosso porte.

Os fracos com frequência enchem o peito
E quase sua índole esquecemos,
Preocupados também em dar um jeito...

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24/08/2016

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Ambígua (de Alma Welt))

Poetisa, não tenho um só caráter,
Agora estou assim, depois não sei.
Ambígua fonte e/ou célula máter,
Ou prato preparado em dupla lei

Como algo especial por mãe e pai
Cujos temperos eram muito diferentes,
E produziram este meu cai ou não cai
De sabores de tons frios e quentes.

Minha mãe Açoriana, dura e fria;
Meu pai, permissivo, doce e mole,
Dois lados buscando a harmonia

Que pensaram ter encontrado em mim.
Digo isso que a mim mesma me console,
Desta ambiguidade doida e tão sem fim...

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24/08/2016

A Natureza da Política (de Alma Welt)

Todos temos nossa dose de loucura
Que nos confere a identidade.
No mais temos dos tolos a igualdade
Buscando na justiça nossa cura.

"Mas não há injustiça neste mundo!"
Diz uma voz que vem daquele lado.
"Tudo na verdade está errado!"!
Exclama uma voz que vem do fundo.

Não há acordo entre os partidos
Que no corpo vêm de cada lado
Que outrora em um só eram unidos.

Daí gostarmos da inversão do espelho
Que deixa nosso olhar reconciliado
Entre o lado branco e o vermelho...


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24/08/2016

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O paradoxo Van Gogh (de Alma Welt)

A ingenuidade é necessária
Se quiseres conhecer felicidade
Nesta nossa vidinha tão precária
Que a rigor não terá continuidade.

"Báh! Mas teus átomos perduram"
(reiteradamente afirmam os físicos),
Ou a alma, que as religiões faturam,
Uns e outros risíveis, senão cínicos.

Sem a persistência da memória
Nossa vida é só um círculo de giz
E nada na verdade leva à glória.

Somente a arte dura, na verdade,
E Van Gogh é, pois, o homem mais feliz
Pois deu certo sem qualquer felicidade...
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23/08/2016

O mundo é mau ( de Alma Welt)

"O mundo é mau", minha mãe dizia,
" Não deves jamais esquecer isto.
Minha filha, esquece essa poesia
Que em tua beleza é como um quisto.".

Ela falava assim porque sabia
Que a poesia em mim era o universo
Por onde eu sem sair de mim iria,
Não somente um simples fazer verso.

E ela me prender já não podia
Pois eu podia tudo, até sofrer,
Coisa que ela claramente proibia.

Então fui pro mundo, peito aberto
Entre risos de dor e de prazer
E lágrimas também, vistas de perto.

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22/08/2016

O Chafariz (de Alma Welt)

Somos todos crianças vez por outra
Embora para alguns seja o normal.
Conquanto eu mesma nada tenha contra,
Deixei meu brincar lá no quintal.

Não considero meu soneto brincadeira
Mesmo quando escrevo em tom menor
E de forma francamente zombeteira
Mas, reparem, desprovida de rancor.

Então o que te move? Ó Alma, diz!
E eu penso e respondo francamente:
Meu soneto é um rio ou chafariz

Sai de mim como um jorro de minha veia,
E hei de morrer, assim, languidamente
Esvaída quando já ninguém me leia...

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22/08/2016

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O Pacto (de Alma Welt)

Não posso negar meus privilégios:
Nasci branca, ruiva e quase rica,
Além de outros raros sortilégios,
Como qualquer roupa bem me fica.

Mas sensibilidade à flor da pele
Foi minha maldição desde criança
Embora me mantenha na esperança
Que um pacto com a vida ainda sele:

Abro mão de alguns dons, não da poesia,
Para me ver livre da dor da lucidez
De sofrer pelo que sei desde guria:

O dia, a hora, o mês de minha morte
E que para mudar a minha sorte
Eu sofreria de mim própria a viuvez... *

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22/08/2016

Nota
*Eu sofreria de mim própria a viuvez - Significa que Alma casou-se consigo mesma e enviuvou de si para superar a morte, o que escapa à mera conotação de narcisismo. Eis porque tendo falecido em 21/01/2007, continua a nos presentar com seus pensamentos, crônicas e sonetos...

A Nau dos Insensatos (III) (de Alma Welt)

                                      A nau dos insensatos - detalhe de Hieronimus Bosch

A Nau dos Insensatos (III) (de Alma Welt)

Alguns, ao peso vergam-se no lombo,
Outros, retos como se na passarela,
O que não exclui possível tombo,
A humana condição já nos nivela.

Somos patéticos em nosso discurso
A que não fazem senão ouvidos moucos
Por mais que algum nosso amigo urso
Nos diga que por nós é que estão loucos.

Em mais de uma moral como Vinicius *
Vamos tocando a vida pelos vícios
Como aquele infeliz que vai de tontas...

E na nave que persiste insensata
Julgo ser a capitã dessa fragata
Ou então a bela índia Pocahontas...

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22/08/2016

Nota

*Em mais de uma moral como Vinicius - alusão à anedota verdadeira do Vinicius de Moraes, que quando numa entrevista a repórter lhe perguntou como podia ter tantas facetas e dedicar-se a elas, como literatura séria, crônicas, musica popular e shows, ele respondeu: "É que sou plural. Se fosse singular meu nome seria Vinício de Moral."
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Uma curiosidade: fiz uma transliteração para o inglês desse soneto da Alma, tomando liberdades para conservar rimas:

The Ship of Fools (III) (Alma Welt)

Some bend their loins and call
Other, in up stand as if was in the bus
What does not exclude possible fall,
The human condition already flattens us.

May be we were pathetic in what we said
And they did nothing but a deaf ear
As much as our friend bear
Tell us that for him we all are mad

Like Vinicius in many moral actions
Let's playing life by addictions
So unfortunates as if were fictions...

And in the foolish ship that goes on for us
I judge to be the captain of al nations
Or the return of lady Pocahontas...


domingo, 21 de agosto de 2016

De pelos e cabelos (de Alma Welt)

Meus amigos se foram pela vida
E não houve meios de retê-los
Nem pela gratidão talvez a dívida,
Nem por meio de cachos de cabelos.


Foram-se todos, como aves arribadas
Buscando seus sonhos impossíveis,
E nunca mais eu ouviria suas risadas
Cobrindo suas dores mais visíveis.

E depois de uma década perdida,
Incapaz de me pôr enternecida,
Encontrei numa vã confeitaria

Um deles de que não guardei cabelos
Mas meia dúzia de pubianos pelos
Pelos quais que eu apostei que voltaria...

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21/08/2016

O substituto (de Alma Welt)

A vida é das lágrimas o vale,
Dizia minha mãe quando eu guria.
Mas me recordo disso male e male,
Porque me recusei a essa via.

Como se sofrer fosse obrigado,
Uma "justa" nada justa parecia
Quando, de um modo revoltado,
Cobri-me da armadura da poesia.

Mas o Graal não encontrei, da alegria,
Só o seu substituto, a ironia
Que é o sorriso oculto do desdém.

Então por meu fracasso em tudo isso,
Que é uma forma de me perdoar também,
Humilde eu compartilho esse sorriso...

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21/08/2016

Felicidade (de Alma Welt)

Sei que a maior das virtudes, ser feliz,
Não acontece nas pessoas por acaso.
É preciso ter outras, ou como um bis
Repetir-se na pessoa em duplo caso:

Ser feliz por ser feliz, eis o segredo
Numa espécie de feliz espelhamento
Que confirma o tom e afasta o medo
O amigo fatal do vão momento,

Aquele em que estás desprevenido
E esqueces, pões de lado a gratidão,
Como se tudo fora, a ti, devido.

Mas não há felicidade sem bondade,
Mas o contrário e primeira condição:
Pra ser bom nem se requer felicidade...

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21/08/2016

sábado, 20 de agosto de 2016

A virtude da coruja (de Alma Welt)

A compreensão do mundo é improvável
Porque nos faltam dados importantes
Sobre o dom da vida, e o inefável
Segredo do amor entre os amantes.

"Quem ama o feio"... diz velho ditado
Que também é a virtude da coruja,
Que tem tudo a ver com nosso lado
Melhor, e que exclui a mente suja.

Pois amar a beleza consagrada
É bem fácil e até muito suspeito
Pois ela já vem pronta e acabada.

Pra não sair por aí na contramão
E para se manter dentro do peito,
Muito trabalho o Amor dá ao coração...

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20/08/2016

A Senda (de Alma Welt)

Fomos jogados para as feras,
Se nos considerarmos com rigor.
O mundo é cruel e o mal deveras,
Sobre isso estou apta a depor.

"Ah! Lá vem a Alma pessimista..."
Diz a turma do "OK, vai tudo bem."
Filosofia americana muito vista
Em filmes de terror e ruins também.

Minha senda foi triste na floresta
Cercada de uivos e de gritos
E não "a natureza toda em festa"...

O importante é que saio do outro lado, *
Tendo cumprido, sim, todos os ritos,
Sob as luzes do meu céu tão estrelado.

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20/08/2016

Nota
* Este terceto alude sutilmente ao sentido final da travessia do Inferno por Dante na DivinaComédia, que termina sob o céu estrelado.

O jardim e as ervas (de Alma Welt)

"Observar o outro com reservas
É condição pra não se arrepender.
Há gente daninha como as ervas
E o mal nem sempre dá pra ver."

Assim dizia minha mãe, a Açoriana,
Que me queria segura na redoma,
Pois achava que o mundo era sacana
E temia que alguém sua filha coma.

Resultado: fui verde para o mundo
E, confesso, a bela cara me quebrei
Procurando na vida ir mais a fundo.

Não era, então, senão tola guria
Pensando que o mundo inteiro herdei
Pelo fato de escrever boa poesia...

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20/08/2016

A Vida (de Alma Welt)

De qualquer um sofrer só tenho pena
Porque não acho isso muito justo.
E o sofrimento humano é como senha
Para entrar na vida a todo custo.

A gente quer viver como se a vida
Boa fosse, e bela ainda por cima...
Aqui ponho a "Maria concebida
Sem pecado", absurdo e pura rima.

Aliás, nada faz qualquer sentido
Se tudo analisarmos com argúcia,
Que é coisa de maluco ressentido...

Pois na Ótica Inocência, gloriosa,
Ganha de brinde um urso de pelúcia
Quem comprar um par de lentes cor de rosa.

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20/08/2016

O Duplo * (de Alma Welt)

                   Foto do filme de Krzisztof Kieslóvsky, "A Dupla Vida de Veronique", de 1991, sobre o tema do "Duplo".

O Duplo * (de Alma Welt)

Dizem físicos que há mundos paralelos
Simultâneos e que são exatos onze.
Um só me basta para refazer os elos
Com meu duplo, eu de ouro, ele de bronze.

Quero dizer que sou eu, mas piorada,
E não quero topar comigo em chumbo.
Que já me vi alhures e assustada,
Pois saibam, toco flauta e ela bumbo.

Muito raro é com o duplo o encontro,
Pode ser a tua imagem mas em monstro
E não é recomendável, falo sério.

Entretanto não sei mais, exatamente,
Se ela, em que me vi em minha mente,
Ou eu o lado bom desse mistério...

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20/08/2016

Nota
* O fenômeno do Duplo é um dos maiores mistérios da vida humana, e comprovável pela física quântica. Para entenderem melhor recomendo as seguintes obras-primas da Literatura e do Cinema, sobre o tema: "O Duplo", estupenda novela de Dostoiévski; "William Wilson", de Edgar Allan Poe, conto de terror narrado da perspectiva do lado mau. No cinema: "Monsieur Klein", maravilhoso filme francês com Allain Dellon; e "A Dupla Vida de Veronique", do diretor polonês Kristof Kieslóvsky...
Ah! E o belo conto "O Duplo da Alma", do livro "Contos da Alma", de Alma Welt, lançado em 2004 pela Editora Palavras & Gestos, de São Paulo, e ainda encontrado à venda pela Internet. (Guilherme de Faria)

O Último Verão (de Alma Welt)

A mim mesma, às vezes, me abandono,
Não a ponto de sair girando a bolsa,
Mas apenas de mim querendo abono
Pelo o que imagino em minha lousa,

Meu epitáfio vi: "Cuidei de mim
Por cuidar assim do mundo inteiro.
Alma fui, fiel ao verso até o fim,
Mas este é o meu abrigo derradeiro."

Mas aí me acordo e não sou nada!
Apenas uma alma exasperada
Querendo evitar o esquecimento...

Reduzida à verdadeira proporção,
Ouvindo de minha mãe o vão lamento
Por sua guria, no seu último verão...

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19/08/2016

A preguiça (de Alma Welt)

O mundo não se muda, aí, por fora.
É por dentro de nós que o mundo muda
E na hora de mudar fazemos hora,
E esperamos de fora alguma ajuda...


A preguiça é nossa boa companheira
E deixamos pra depois nossa mudança
Para ficarmos morgando na banheira,
Ou só muito depois de encher a pança.

Longe de mim exigir moralidade
Estou falando por falar, longe mim,
Que já não tenho conserto, nem idade.

A preguiça é um dos pecados capitais
E a lista tem mais seis e não tem fim,
Não tocarei no assunto nunca mais...

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19/08/2016

Os profetas (de Alma Welt)

                                                Iluminura bizantina: São Simeão, o Estilita *

Os profetas (de Alma Welt)

"A nuvens do declínio estão à vista,
Não somente o declínio ocidental
Mas aquilo que está fora da lista
Na consciência e raiz, funda, moral."

Assim dizia um profeta do Desastre
Entre os muitos que topei a vida inteira,
Daqueles que, se queres que te castre
Dê o dízimo e entre na fileira.

Mas estou divagando, não importa
O que digam os tais apocalípticos
Que com o livro vêm bater à tua porta.

Preferia "estilitas" ter por perto
Os primeiros e sinceros loucos místicos
Sentados quietos nas colunas do deserto...

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19/08/2016

Nota
* Estilitas (do grego stylos = coluna) - eram eremitas cristãos no V° século DC, que se encarapitavam em cima de colunas de ruínas do deserto e ficavam de pé ou sentados no alto para o resto da vida, até morrer. O povo levava comida e água para eles durarem o mais possível. Faziam isso para merecer o céu de Jesus. O mais famoso deles foi São Simeão, chamado "o Estilita"

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Sem desperdício (de Alma Welt)

Queria escrever um só poema
Inusitado, que me fizesse rir
De mim mesma sem sentir nenhuma pena
Daquele tempo em que restei em vez de ir,

Do triste tempo perdido em ninharia,
Árido, estéril, só palco das tristezas
Pessoais e intransferíveis à poesia,
Refratável às formas e às belezas.

Mas não há isso! Poderias bem dizer.
Na verdade, tudo tem razão de ser
E não há desperdícios nesta vida...

A dor de hoje fertiliza o amanhã
E não há uma lágrima perdida
Como há tanta palavra tola e vã...

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18/08/2016

O Canto no Deserto (de Alma Welt)

O melhor de mim é desespero,
Enquanto o pior, minha impotência
Em mudar a vida que não quero
E rejeitar o mundo em sua demência.

Dramática!- diz o mundo? Não diz nada.
O que faça eu, me não contesta,
Me tratam como musa ou uma fada,
E só à minha beleza fazem festa.

Báh! É duro ser mulher e poetisa...
Querem que me chame de poeta,
Todos querem papa e não papisa.

No canto já não contam com que eu erre,
Mas ser ouvida já não é a minha meta,
Então canto no deserto, talvez berre...

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18/08/2016

A Morte da Açoriana (de Alma Welt)

Dizia minha avó: "Tudo são fases",
Quando junto dela eu me encolhia.
Então não demorava a fazer pazes
Com aquela de quem me ressentia...

Que era sempre a mesma "Açoriana",
Minha bela e pobre mãe intolerante,
Dos Morgados a primeira filha, Ana,
Que não me deixaria ir avante.

Assim pensava eu, em rebeldia
Querendo apenas escrever e fazer arte
Coisa que ela não me compreendia...

Mas quando ela morreu, fez-se um vazio
Como se me faltasse alguma parte
Que eu teria que preencher pra ser um rio...

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17/08/2016

Chiaroscuro (de Alma Welt)

A vida dói de tão bela e interessante,
Também por ser horrível e cruel.
A mesma cena vista noutro instante
É outra peça ou encarna outro papel.

A simultaneidade luz e sombra
Só é mesmo visível para poucos
A maioria de nós dela se assombra,
E os videntes por isso morrem loucos.

Mas, claro, o bom poeta denuncia
Essa dubiedade que é um ágio,
E o nosso lado claro não alivia.

E como o chiaroscuro na pintura,
O forte de Rembrandt e Caravaggio,
Somos todos dessa luta a criatura....

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18/08/2016

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Viciosa (de Alma Welt)

Escrever sonetos é meu vício,
Talvez alguns aqui já o perceberam,
Mas rimar me recuso com "solstício"
Que dessa água muitos já beberam.

O segredo é que a rima é que te leva
Por caminhos tão novos e insólitos
Que o soneto forma legiões de acólitos
Criando mundos que vão da luz à treva.

Juro que não sei nunca o que há de vir
Quando lanço de um jato o primo verso
Que me fará chorar é às vezes rir.

Por isso cresço à custa da Poesia
Que esta é que constrói meu universo,
Que sem ela o de Deus não haveria...

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17/08/2016

A Nova Babel (de Alma Welt)

O mundo da mente é o verdadeiro.
Chego a duvidar do que há aí fora,
Já que a gente na Terra é estrangeiro
Mas ninguém quer morrer ou ir embora.

Cada vez menos falamos nossa língua,
Nova Torre de Babel edificamos;
Breve de amor morreremos, mas à míngua,
Enquanto isso morremos e matamos.

"Alma, és dura, negativa e pessimista"
Disse alguém de quem já não lembro o nome,
E envergonhada eu até baixei a vista.

Não! Eu amo tanto a humanidade
Que queria uma só língua e identidade
E que esse ser não passe jamais fome...

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17/08/2016

Belezas (de Alma Welt)

Há tanta beleza no universo
E também aqui no mundo nosso,
Que tento trazer pra mim em verso
Embora algo me diga que não posso.

"Cuida, Alma! Pretensiosa te revelas...
A ti foi dada uma beleza razoável,
Sapateira, não passes das chinelas *
Querendo ser poeta memorável..."

Eis aí da tentação justo o contrário,
Pois pretende jogar-me para baixo
Para me fazer entrar no armário

Ou que abra mão da outra beleza,
Único papel em que me encaixo,
Que essa picada é a minha natureza... *

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17/08/2016

Notas
* alusão à fabula do sapateiro do rei : "Não queira o sapateiro ir além das chinelas... "

* alusão à fabula do escorpião e o sapo...

Posteridade (de Alma Welt)

Há poetas que brincam com palavras
E com eles às vezes me divirto,
E não nego o valor de suas lavras,
Mas disso eu mesmo me advirto,

Não estou pra brincadeiras, isto é sério,
A vida é uma tragédia anunciada:
Acaba em cinzas ou então no cemitério
E fora o mito não nos sobra nada.

A grande arte compensação retarda,
Posteridade é só o que interessa
Desde que pra sempre a chama arda.

O que queres, falso artista? Viver bem?
A vida é sedução, falsa promessa,
Mas a arte ilumina desde o Além...

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17/08/2016

Por que o soneto (de Alma Welt)

Despojar o soneto é minha missão:
Evitar a retórica e a metáfora,
Mantendo a rima e sua expressão
Mesmo falsa e volátil como cânfora.

Mas, por quê, diabo? me perguntas...
Acaso a poesia não andou?
Permanece travada em suas juntas?
O soneto por acaso não acabou?

Mas de força a camisa é um desafio,
Pendurada de cabeça por um fio
Eis a mágica que não só ilusão cria...

Braços abertos, vejam, estou liberta!
Meu soneto esta sensação desperta,
Conquisto a minha liberdade dia a dia...

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17/08/2016

A descoberto (de Alma Welt)

Estamos nesta vida "a descoberto"
Como o diz o nosso povo do interior,
O desamparo nosso é mais que certo,
Há quem apele para um "Nosso Senhor".

"Vai dar tudo certo, você vai ficar bem."
Diz o americano a toda hora...
Dizem isso após catástrofe de trem,
Ou numa erupção em Bora-Bora.

Mas, eu, uma poeta realista
Não quero panos quentes, cataplasmas,
E faço das misérias uma lista.

Não quero enganar os meus leitores,
Não vim para espantar os seus fantasmas,
Mas somente interpretar as suas dores...

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17/08/2016

terça-feira, 16 de agosto de 2016

O "Eterno Feminino" * (de Alma Welt)

Nossa vida é improvável e frágil
Nada corrobora essa aventura.
Nascemos através de uma tortura
E vivemos por imposição civil.

Ai de quem, antes da hora de partir,
Sair fora dos cânones, regras, normas,
E sem licença para ao Paraíso ir
Propôr inovações e novas formas.

Mormente se mulher esse alguém for,
Não importa sua origem ou sua cor,
Será crucificada em suas anáguas.

Mas não me deterei sobre o capítulo
Que para auto-piedade é só um pulo:
O eterno feminino e suas mágoas...

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16/08/2016

 Nota
* O "Eterno Feminino" é uma expressão profunda, criada por Goethe e embasada tanto no seu romance de mesmo nome como através da imensa cena "A Grande Noite de Walpurgis", da sua monumental peça em versos, "Fausto". Trata-se da dimensão arquetípica da natureza feminina, através de grandes personagens das mitologias Universais, o que antecipa o conceito junguiano (de Carl Jung) de "Anima", que por sua vez tem respaldo no mito de Helena de Tróia e também de Eros e Psiqué, que entre os romanos gerariam o conceito de "Anima Mundi" (Alma do Mundo) a alma feminina universal que trespassa o mundo e o recria e eterniza ...

À Deriva (III) (de Alma Welt) *

Na vida estamos à deriva, navegantes
De barco bêbado furado desde o cais. *
O capitão, que fomos nunca dantes, *
Está perdido, e grita: "Nunca mais!" *

No barco carregamos nosso esquife *
E nos esvaímos de nós mesmos
Ao som de alguém que toca um bife
Para acompanhar os nossos remos.

Tudo está arrevesado por princípio
Nessa nossa aventura desastrada
Onde o puro se confunde com ímpio.

Para o que amou tanto e não amaram,
Não recomendarei surda jornada: *
Na calmaria os ventos me levaram... *

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16/08/2016

Notas
* À Deriva III - este é o terceiro soneto que Alma escreveu com o tema da deriva.

*Barco bêbado - expressão criada por Arthur Rimbaud no seu célebre poema precursor do surrealismo "Le Bateau Ivre" (O Barco Bêbado),

* ...nunca dantes - evocação do verso dos Lusíadas de Luis Vaz de Camões "...por mares nunca dantes navegados..."

* "Nunca mais!" - exclamação célebre (nevermore!) repetida por um corvo aziago, no célebre poema "The Raven" ( O corvo ) de Edgar Allan Poe.

* No barco carregamos nosso esquife- alusão à cena do livro célebre "Dracula", de Bram Stoker, do transporte dos esquifes (caixões de defunto) do Conde Dracula no navio para a Inglaterra, quando então o barco chega à deriva, com a tripulação toda morta.

* Não recomendarei surda jornada - alusão ao estratagema de Ulisses (Odisseu) que colocou cera nos ouvidos da tripulação toda para que remassem através da calmaria entre os rochedos das sereias, cujo canto uma vez ouvido era fatal: os marinheiros seduzidos se atiravam às águas e eram afogados por elas e levados. A propósito: somente ele, Odisseu, não colocou cera de abelha nos ouvidos, mas ordenou que o amarrassem fortemente ao mastro, porque ele, o grande curioso, queria ouvir o canto das sereias e sobreviver.

*Na calmaria os ventos me levaram- fusão da calmaria perigosa do canto das sereias e paráfrase do "E O Vento Levou", título do romance que celebrizou a personagem Scarlet O'Hara, arquétipo do romantismo sulista americano.

Advertência (de Alma Welt)

O direito a uma paixão nos apaixona
Avassaladoramente quando jovem,
De lembrar os amantes de Verona
Que há muito morreram e nos comovem.

Mas cuidado! Não há nada mais mortal
Que uma paixão adolescente
Quando se é imaturo e desigual
Ou carente e solitário, simplesmente.

Mas hoje já sabemos, a paixão
Da anima é uma mera projeção
Sobre o objeto à tua frente

Ficas pois impedido de enxergá-lo,
Vendo nele algo muito diferente
E pensas: foste feita para amá-lo...

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15/08/2016

A Cigarra e a Formiga (de Alma Welt)

Não concebo a vida sem poesia
Que é uma boa maneira de a olhar,
Que capta a dor e a alegria
Bem como as coisas que só estão no ar.

Paga-se um alto preço, e é bom notar,
Para um aedo ser no dia a dia
Pois não tens carteira de assinar
Nem dá direito a aposentadoria.

Em compensação não tens que trabalhar
E não diga que poesia é um trabalho,
Não me venhas minha cigarra convocar.

A cigarra é quem as lendas reinventa,
Princesa oculta, não te pegam pro borralho,
A formiga é quem trabalha e te sustenta.

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15/08/2016

Fé de menos (de Alma Welt)

Tenho pena de não ter a menor fé
Por ser poeta e portanto racional,
Os pés na terra ou aonde nem da pé
Ou bracejando pra estar no pedestal.

A Poesia vem do olhar perplexo,
Às vezes cínico, outras rancoroso
E não se assemelha a um amplexo
Ou um vago carinho vaporoso.

É o lado mais perverso ou infantil
De nossa natureza quase bruta
Pela nossa expulsão, um ato vil

Comandado por um Deus cruel tirano,
Talvez zeloso demais de sua fruta,
Obrigando-nos a nos cobrir de pano...

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15/08/2016

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Considerações (de Alma Welt)

Confesso desejei fama e amor,
Dinheiro também, uns bons trocados.
Mas caindo na real e sem rancor
Troquei homens pelos versos, mais amados.

A mulher não é a fêmea natural
Do homem, disse alguém com certo humor.
A mulher com a mulher é mais normal
Pois girafa com elefante é um horror.

Sempre me espantei com os casamentos.
Como pode a mulher ser tão servil
Em função de tão breves momentos?

Báh! Os filhos são a chave, não me iludo.
Só por eles nos tornamos um barril...
Esqueçam o que eu disse, eu nego tudo.

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15/08/2016

O circo da fé (de Alma Welt)

Outrora a maioria tinha crença
Nos poderes dos santos e da Igreja.
De Deus era a vida uma licença
Conquanto ainda hoje bem o seja.

Vivíamos verdadeira teocracia
Construindo grandes catedrais
Onde a fé cotidiana renascia.
Com o vinho, a hóstia e tudo mais.

Confessar? Quem há-de hoje em dia,
Se mais nada é pecado ou simonia
E a blasfêmia virou norma de conduta?

Vou ao circo depois vou ao padeiro,
E só sorvemos socrática cicuta
Na falta de um Cristo verdadeiro...

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15/08/2016

A coleira (de Alma Welt)

Nascer, viver morrer, dar o sumiço,
E não saber ao menos o sentido,
O patético por trás de tudo isso,
É apelar pra religião ou um partido.

Tomar-se de uma obsessão política,
Quando não simples sexo-amorosa
Perdida pra sempre a veia crítica
E tomar o espinho pela rosa;

Devotar-se ao culto do dinheiro
E trabalhar duro a vida inteira,
Apenas pra cercar teu galinheiro;

Ser cão fiel do teu próprio consumo
Com teu nome gravado na coleira
Caso percas o teu faro e o teu rumo...

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15/08/2016

A Arte de voltar (de Alma Welt)

"Esse mundo não é para uma dama",
Dizia minha mãe sobre a cidade,
Entre o jardim, a sala e a cama,
Sua bela vida em ociosidade...

A Açoriana em mim temia algo, *
Um quê de rebeldia e inquietação
A despeito do meu porte fidalgo
Que dela herdei sem devida gratidão.

E para lá daquela sebe do jardim,
A poetisa tinha sede de viver
O mundo além dos campos do sem-fim.

Para voltar, senão desiludida
Depois de ilusões tolas perder,
Para saber afinal o que é a vida...

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14/08/2016

Nota
*Alma nos seus textos e poemas chamava sua mãe de "a Açoriana" com distanciamento, porque as duas não se entendiam bem, e sua mãe temia um destino solitário para a filha poeta...

domingo, 14 de agosto de 2016

Memórias urbanas (de Alma Welt)

Penoso foi para mim viver no mundo
Fora do cenário destes campos
Como se tudo fora um submundo
Sem mais noites de luar e pirilampos.

As cidades eram feias, nada a ver,
Elas não tinham céu, só o que "arranha"
E feria a natureza do meu ser
Estar perto dos maus e sua sanha.

A luxúria grassava, e eu na mira
De homens e mulheres cobiçosos,
Velha malta que a bajular conspira.

E eu, uma prenda em minha querência,
Por carregar os mistérios mais gozosos,
Reduzida a trapos de inocência...

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14/08/2016

Anjo Rebelde (de Alma Welt)

O dever temos, penso, da alegria
Pois se nos foi dado cor e gesto,
Brilho no olho e rimas pra poesia
E talento ainda que modesto;

Infância e juventude foram dadas
E aquela doce inconsequência
Que nos faz criaturas atiradas
Ao preço perigoso da experiência.

Nossa beleza, também, é obrigação,
Pois nos foram dadas belas formas
Muito embora, reconheça, às vezes não...

Anjo rebelde recalcando um novo sisma,
Calo queixas e me submeto às normas,
Nesse doce enxergar por esse prisma...
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14/08/2016

Consolo (de Alma Welt 1972-2007)

Eu semeei e colhi muito depressa
Pois não me foi dado maior prazo.
Prosa e versos escrevi, então, à beça,
Como se para tirar fosse, o atraso.

Aos trinta e cinco haveria de findar
Minha breve temporada nesta vida.
Como consolo, poderia já contar
Com de outra boa alma a acolhida.

Mas quando vejo uma rosa por acaso
Volto a pensar novos passeios pra mim:
Uma aurora advirá do meu ocaso...

E no limbo em que minha alma foi jogada,
Vago como outrora em meu jardim
Quando eu era bela e era amada...


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14/08/2016

Resumo da Alma (de Alma Welt)

Contra a angústia uma constante luta,
Também contra a tristeza volta e meia,
Assim vivi uma vida de disputa
Por minha própria alma, e não alheia.

Mas com a aliança da inocência
E uma boa dose de ironia
Logrei andar nas trilhas da poesia
Evitando as sobras da veemência.

Pobre alma entre forças disputada,
Fiel a um pacto anacrônico de luz
Como ninfa que fosse ou uma fada...

Mas salva pelo humor, um bom recurso
Que a um espírito simples mais seduz,
Pude a vida humana ter em breve curso...

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13/08/2016

sábado, 13 de agosto de 2016

Ao meu escriba (de Alma Welt)

Meu escriba se levanta quase aflito
De manhã cedo e toma seu café,
Mal espero que termine e já lhe dito
Um bom soneto ou um pensamento até...

Mas ele não se importa, ele é meu fã,
Descobriu-me entre um e outro cordel
Quando os escrivinhava num afã
De enterrar a gravura em tom pastel.

Desde então o atormento, pobre homem,
Com as coisas de sua própria alma
Porque se não o faço as coisas somem.

Agora minhas memórias são as suas,
Se confundem com as minhas, não são duas,
E uma só linha fatal em sua palma...


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13/08/2016

Universos (de Alma Welt)

Nosso mundo tem bilhões de universos,
Cada um tem no centro nosso umbigo.
Todos termos nossa prosa e nossos versos,
Isso, sim, é o mistério, meu amigo...

A vida das pessoas é uma saga
Quando vista de perto o suficiente,
Embora raramente ensino traga
Ou que nos ajude a ir pra frente.

Não sei se amo ou não a humanidade
Pois no todo gosto dela bem de longe
E quando estou carente e com saudade.

Mas não me levem nem um pouco a sério:
Jamais seria em mim meu próprio monge,
Meu coração incendiou meu monastério...


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12/08/2016

O voo da perdiz (de Alma Welt)

                                                            (Foto: o vôo baixo da perdiz)

O voo da perdiz (de Alma Welt)

Um desconforto estranho me desola
E me impede afinal de ser feliz.
Sinto que o meu voo sempre estola
Ou é só um voo baixo de perdiz...

Camões se comparou ao perdigão *
Que perdeu a pena e despencou...
Assim também voou meu coração,
Quis levar-me à alta torre e desabou.

Cacos são o material a que recorro,
E aparentemente laboriosos,
Meus sonetos são um mato sem cachorro.

Vivo então no limbo dos fracassos
Recompondo os voos grandiosos,
Coletando dos meus sonhos os pedaços...
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02/08/2016

Nota
Consta que o grande poeta Luis Vaz de Camões, que perdera um olho na batalha de Ceuta, tendo escrito Os Lusíadas e já famoso foi chamado a viver na corte do rei de Portugal, onde era mal aceito por alguns nobres que por ser caolho e plebeu, puseram lhe o apelido de "Perdigão", porque sabiam que ele jamais ascenderia à nobreza. O poeta se apaixonou por uma nobre dama da corte, e rejeitado por ela, ficou deprimido e melancólico e incapaz de escrever por um tempo. Então aqueles nobres para zombar dele, numa festa na corte o desafiaram em voz alta com um mote para testar seu talento no improviso. O mote era: "Perdigão perdeu a pena" . Camões assimilou a zombaria e no mesmo tom auto-irrisório, imediatamente continuou:

"Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha
Quis voar à alta torre
mas achou-se desasado
e vendo-se depenado
de puro penado morre..."

"Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha..."

As rosas de minha avó (de Alma Welt)

As rosas do jardim da minha avó
Permanecem inesquecíveis para mim,
Assim como seu incrível pão-de-ló
E a sebe com seu cheiro de jasmim.

Nós tomávamos chá entre as roseiras
Numa mesinha caprichada, com toalha
E a louça branca, fio de ouro pelas beiras,
E tudo o mais sequer sem uma falha.

O jasmim faz a vez das madalenas
Numa espécie de memória proustiana
Quando reconstituo aquelas cenas:

Duas guerras na pele, a velha Frida,
Uma vida inteira em luta insana,
E a minha, quase em branco para a vida...

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13/08/2016

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Um sonho da Alma (de Alma Welt)

                                                           A torre na planície - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2015, 

Um sonho da Alma (de Alma Welt)

Parei diante da torre, estarrecida,
Em torno dela uma névoa encantada,
Mas corvos crocitaram em seguida,
E por um pressentimento fui tomada.

Bati na sua porta com a aldrava
Sentindo que a torre eu mesma era
Que sobre a planície dominava
Coberta de musgos e de hera.

Por quê então aquela torre me cabia,
Como transfiguração de minha mente?
Serei eu velha assim, e não sabia?

Eis que a torre então no sonho se desfaz
E em seu lugar plantei uma semente...
- Me diz, doutora, o sentido, se és capaz....
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11/08/2016

O Sentido (de Alma Welt)

Procurei no próprio mundo seu sentido
Porém não o encontrei, não estava lá,
Apesar de muitas vezes ter curtido
Pois beleza no absurdo também há.

Andei por ruas, praças, torres e museus,
E fiquei muito encantada de belezas
Que comovem até mesmo alguns ateus,
Principalmente a arquitetura das igrejas.

Sentido, mesmo, na verdade nunca vi
Pois conservo um olhar meio infantil
E minha mente adulta não escolhi...

Então renunciei à coerência
Deixando para o verso sua eficiência,
Que no mundo real não me serviu...

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11/08/2016

A Liberdade (de Alma Welt)

A Liberdade é que é o bom combate,
Uma vez que a Verdade é relativa.
O cachorro que morde às vezes late
E o real depende da perspectiva...

Assim pontificava um certo mestre
Que não foi levado muito a sério
Porque antes de tudo era pedestre
E adorava passear no cemitério...

Mas como vivemos no absurdo
É preciso peneirar nossos conceitos
Pois há sempre um rumor de fundo, surdo.

Então voltemos à nossa Liberdade,
Que felizmente, pra todos efeitos,
É mulher e há quem diga, uma beldade...

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11/08/2016

Nosso Mistério (de Alma Welt)

Algum dia saberemos finalmente
Quem somos, de onde viemos, ir pra onde?
A que vem tudo isso em nossa mente,
Em que momento perdemos nosso bonde?

Haverá secreto horror em nossa alma
Para nossa memória estar perdida?
Quiçá um lapso causado por um trauma,
O fio perdemos na entrada ou na saída...

Talvez reste uma chave do mistério
Um parafuso na caixa só de pregos,
Ou lenda que ninguém levou a sério...

Não sabemos quase nada, na verdade,
No que respeita à nossa humanidade,
Orgulhosos tateando feito cegos...

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11/08/2016

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Os caminhos (de Alma Welt)

Não vim ao mundo pra me deixar levar
Ou para acompanhar gostos alheios,
Mas com vela ao vento-contra me singrar
Levada avante por meus próprios meios.

Ascendendo rumo ao sol do meio-dia
Sem frágil cera asas grandes fixadas,
Escapar do labirinto eu só queria
Para atingir novos planos e alçadas...

Mas então me vi perdida numa selva,
E como Dante encontrando o meu portal
Na clareira se erguendo sobre a relva.

Mas ao entrar depois de tanta andança,
Bem ao contrário do meu bardo imortal
Meu portal seria a porta da Esperança...

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10/08/2016

Nossa vida secreta (de Alma Welt)

Nossa vida secreta é a verdadeira
Embora a neguemos em juízo.
Trazemos nosso lobo na coleira
Ou o nosso gato com o guiso.

Ninguém de nós quer dar a cara a tapa
A não ser para fazer boa figura.
Se essa foto jamais for sair na capa
Negamos tudo até sob tortura...

Nossa andorinha nunca fez verão sozinha
Mesmo sem distinguir qual ela é qual
Como através de uma cortina de voal.

Nossos gatos são pardos à distância
E não sabemos ler nossa entrelinha
Porque nosso normal é nossa ânsia...

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10/08/2016

Sabedoria simples (de Alma Welt)

Difícil é viver bem, ninguém o nega,
A não ser pra um ou outro amalucado,
Se a vida nos surpreende ou nos pega
Sem vocação pra ser ou criar gado.

Para estarmos à vontade nesta vida,
E andarmos por aí como se em casa
É preciso dar aos outros acolhida
E nunca ser hostil como um fantasma.

Viver no olho da tormenta é para poucos
Mas podemos ter a calma do andarilho
Que prefere andar na trilha e não no trilho.

Para isso é necessário estar liberto
Das tais camisas feitas para os loucos
E termos decretado o hospício aberto...


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10/08/2016

Marionetes (de Alma Welt)

Que a vida seja drama e não tragédia,
É quase tudo o que podemos esperar.
Há quem diga que ela é tragicomédia
Amargas gotas entre os risos de chorar...

Quanto a mim choro e rio amiúde
De alegria e de beleza o mais das vezes.
A tristeza evitei o quanto pude,
Conta somada de três ou quatro meses.

Tal é a nossa vida sobre a Terra,
Marionetes penduradas do Destino
Se esfalfando enquanto a turma berra.

E herdeira da Verdade em verso e prosa
Cantando num tom alto muito fino,
Eu mesma, Alma Pinocchio, mentirosa...

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09/08/2016

Vanitas (de Alma Welt)

A força da vaidade move o mundo
Quase tanto quanto a força da cobiça
O dinheiro leva tudo mais a fundo
E dele só escapa a boa preguiça...

Dois desses pilares fazem o artista
Desde que haja o mistério do talento,
Também que escape ele da preguiça
Pois arte é um constante movimento...

Não me citem o Vanitas vanitatis
Com aquele triste tom pejorativo
Como o vemos no Eclesiastes.

A vaidade move o mundo, eu reitero,
"É um fluido dinâmico psicoativo"
Falei científico e bonito, assim espero...

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08/08/2106

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A Festa (de Alma Welt)

Bem diante de nós se estende o Mundo,
E certamente está tudo por fazer
Pois o poço a cavar está mais fundo
E a esperança foi a última a nascer...

Sim, com meus irmãos herdei a Terra,
Dever e honra maior não poderia...
Então de pronto aposentei a serra
E para efeito de desmate a serraria...

Nosso gado também, já era tempo
De total acabarmos com a matança;
Haja festa, haja vinho e haja dança!

E nova ninfa coroada de parreiras
Erguerei a minha taça de faiança,
À queda pessoal de minhas barreiras...

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08/08/2016

O último encontro (de Alma Welt)


Sempre tive muito medo de morrer
E nem por isso vou me envergonhar.
Covardia é esse medo não encarar
E negá-lo, se já estamos a tremer.

Na hora em que cair o nosso pano
Saberemos talvez o que é o fim.
Com a Moira, no papo mano a mano,
Possa eu esquecer tudo de mim

Mas não esqueça do lenhador a lenda
Em que o pobre velho enfraquecido
Pede à Morte a liberdade,e logo emenda

Tremendo diante da sinistra aparição
(Chamaste-me, senhor, terei ouvido?):
“-Só queria com esta lenha sua mão”...
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07/08/2016

Às rosas do Cartola (de Alma Welt)


É necessário, sim, cantar o amor
Embora esteja tão banalizado,
Em canções pífias, feias e sem cor
Ou muitas vezes até vulgarizado...

Assim dizia minha avó, colhendo rosas
E exaltando a obra-prima do Cartola
Que supera do assunto quaisquer glosas
Pela delicadeza plena e sem esmola.

E revejo estas cenas como um filme,
Encantada com a letra tão sublime
Que haveria de ser minha inspiração,

Pois me lembro da velhinha com voz fina
Cantarolando à capela essa canção
Quando eu era somente uma menina...

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04/08/2016

O que pode a Poesia (de Alma Welt)


O que pode a poesia contra o Mal?
Foi um dia por alguém me perguntado...
Mas à vontade me vi, o que é normal,
Já que adoro um bom campo minado.

A boa poesia não faz proselitismo
Conquanto tenha dentro a liberdade
Que por si só é inimiga da maldade
Mas também da instalação de qualquer "ismo".

A poesia, sim, nos serve pra sonhar
Bem como para a vida sublimar.
Mas também pra colocar os pés na terra.

Uma coisa sempre e seu contrário,
Só o Mal não deverá sair do armário,
Porque o Mal em nós sobra e aberra...

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04/08/2016

As Pantufas (de Alma Welt)


"Eu precisarei mais de uma vida
Para o meu sonho imenso completar,
Trazer à baila a essência concebida
De um soneto puro e exemplar,"

"Algo de inefável e indizível
Que poderá o meu reflexo mudar,
Fazendo-me subir a um outro nível
Quando nesse espelho eu me mirar.

Assim dizia eu para os doutores
Quando todos me queriam internar
Naquele pavilhão dos sem amores...

Mas fugi logo dali em camisola
E nos pés pantufas feias de matar,
Um detalhe que até hoje me desola...


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04/08/2016

Angústia (de Alma Welt)

              A equilibrista - desenho de Guilherme de Faria para série de poemas O Circo, de Alma Welt

Angústia (de Alma Welt)

A angústia da morte estraga a vida
Conquanto universal e tão difusa
A ponto de passar despercebida
A alguns de mente fútil ou obtusa.

Quanto a nós, que a morte vigiamos
Por excesso talvez de lucidez,
Sabemos que na corda bamba andamos
Mas repletos de orgulho e altivez.

Tudo é vão, pois todos despencamos
E para o fundo abismo já nos vamos.
Mesmo os que habitam o rés do chão.

Portanto se me reste muito ou pouco
A pensar se o mundo é belo ou muito louco,
Eu me ponho a mirar minha própria mão...

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03/08/2016

Amor e arte (III) (de Alma Welt)



"Viver um grande amor, é o que importa,
O resto são apenas circunstâncias."
Mas terá ele que bater à tua porta
Ou deves percorrer outras estâncias?

Assim me perguntava quando jovem,
Isolada neste pampa de lonjuras
Olhando nuvens lentas que se movem,
Ou só a observar as tanajuras...

Bem mais tarde eu haveria de sofrer
As tais dores da paixão desenganada
De que Werther haveria de morrer. *

Mas agarrei-me à arte e à poesia
Coisa que pra ele não era nada
Pois ele não amava o que escrevia...

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03/08/2016

Nota
* ... de que Werther haveria de morrer - Alma se refere ao ao grande livro de Goethe, "Os Sofrimentos do Jovem Werther", livro magistral que provocou uma onda de suicídios de jovens românticos na Europa, na época de seu lançamento. O livro é um romance epistolar, isto é na forma de cartas belíssimas, verdadeiras obras de arte, que descrevem um processo de adoecimento psíquico gradativo, produzido por um amor impossível, uma paixão dolorosa que leva ao suicídio do jovem poeta que as escreve.

Percalços literários (de Alma Welt)


"Fora escrever passaste a vida a passear
Com o teu cachorro pelos pastos...
Isso é pouco e a ninguém vai interessar,"
Disse um crítico daqueles mais nefastos.

Folheara um livro meu recém lançado
Que ele lera de viés, em diagonal,
Sem perceber as entrelinhas e o velado,
Nem o ouro que encontrei em meu quintal.

Mas eu autografara uma centena...
Não que isso represente coisa alguma
Pois o livro entrou depois em quarentena.

Não faz mal, o segredo do fracasso
É lançar perolas a esmo, uma a uma,
O ouro do sucesso é mais escasso...

.
03/08/2016

Lições de minha avó (de Alma Welt)


"Amar o que se tem e o que se é.
Eis o segredo de uma vida em plenitude,
A providência que substitui a fé
Caso não se a tenha ou ela mude."

Assim dizia minha avó colhendo rosas,
E ela as colheu a vida inteira,
Pois estas floresciam poderosas
Como a fé que brota na poeira.

Não sei se minha avó era devota
De um santo milagroso ou coisa assim,
Se mais alguém cuidou de sua horta...

Quanto a mim, observando-a aprendi
Em mim a distinguir o não do sim,
Mas rosas como as dela jamais vi...


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03/08/2016

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Penélope-Ulisses (de Alma Welt)

                                    A nave de Ulisses - desenho de Guilherme de Faria ( anos 80)

Penélope-Ulisses (de Alma Welt)

Quisera celebrar um imenso amor
E muitos versos só a ele dedicar.
Mas fêmea não sou de uma só cor
Para machos multicores cortejar.

Tantos são os mares de minh'alma,
Também os amores e lembranças
Com que voltarei à falsa calma
Depois de aventuras e lambanças...

Penélope de mim, mista de Ulisses
Ao mesmo tempo fui daqui e me fiquei
Soñando besos, baci, even kisses...

Mendiga de mim mesma disfarçada
Voltei à teia dos amores que tramei
Para em versos refazer cada laçada...
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02/08/2106

O voo da perdiz (de Alma Welt)


O voo da perdiz (de Alma Welt)

Um desconforto estranho me desola
E me impede afinal de ser feliz.
Sinto que o meu voo sempre estola
Ou é só um voo baixo de perdiz...

Camões se comparou ao perdigão *
Que perdeu a pena e despencou...
Assim também voou meu coração,
Quis levar-me à alta torre e desabou.

Cacos são o material a que recorro,
E aparentemente laboriosos,
Meus sonetos são um mato sem cachorro.

Vivo então no limbo dos fracassos
Recompondo os voos grandiosos,
Coletando dos meus sonhos os pedaços...

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02/08/2016


Nota
Consta que o grande poeta Luis Vaz de Camões, que perdera um olho na batalha de Ceuta, tendo escrito Os Lusíadas e já famoso foi chamado a viver na corte do rei de Portugal, onde era mal aceito por alguns nobres que por ser caolho e plebeu, puseram lhe o apelido de "Perdigão", porque sabiam que ele jamais ascenderia à nobreza. O poeta se apaixonou por uma nobre dama da corte, e rejeitado por ela, ficou deprimido e melancólico e incapaz de escrever por um tempo. Então aqueles nobres para zombar dele, numa festa na corte o desafiaram em voz alta com um mote para testar seu talento no improviso. O mote era: "Perdigão perdeu a pena" . Camões assimilou a zombaria e no mesmo tom auto-irrisório, imediatamente continuou:


"Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha

Quis voar à alta torre

mas achou-se desasado

e vendo-se depenado

de puro penado morre..."


"Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha..."
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Tristeza (de Alma Welt)

Às vezes sento na varanda e fico triste
De uma tristeza de imobilizar. *
A cadeira de balanço fica em riste
Pois que nem mesmo a ponho a balançar.

Então minha irmã Lucia chega junto
E faz doces carinhos na minha face
Como se no rosto de um defunto
Que ao seu belo enterro preparasse.

Ela já sabe que não quero palavras...
Não suporto dos consolos a pieguice,
Que nunca os plantei em minhas lavras.

Deixem-me quieta aqui nesta fonteira
Do sonho e da morte. Ah! quem me visse!
Aqui, de um outro mundo na soleira...


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01/08/2016


Nota
*Alma foi uma vez diagnosticada como bipolar. Mas isso são coisas da modernidade. Alma transcendia esses diagnósticos. Ela vivia no tempo da poesia...

Derivando (de Alma Welt)

A vida não é mais que um grande "imbroglio",
Uma espécie de comédia à italiana
Mesmo vista daqui de onde a olho,
Uma imensa pradaria toda plana...

Não vai nisso, veja bem, nenhum desdouro
Pois adoro o cinema de Fellini
Que em Cannes ganhou Palma de Ouro
Quando desgrudou do Rosselini...

Mas por quê, eu mesma me pergunto
Estive a Dolce Vitta a envolver
Pondo vida e cinema tudo junto?

Estou mesmo à deriva nestes versos,
Esqueci do que queria discorrer...
Bah! A vida e seus muitos universos...

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01/08/2016

Anima Mundi (de Alma Welt)


Como é belo ser anima ou mulher,
Porque assim a alma sou do mundo
Segundo Mestre Jung assim o quer
E não como quis o Sigmundo...

Corpo e espírito, geral, dentro de todos
Mesmo de alguns machos renitentes,
Com seus mamilos róseos e alguns modos
Delicados, mais ou menos persistentes.

Mas Mestre Carl apontou uma questão,
Que é a projeção dessa abantesma
A razão louca do delírio da paixão:

Impedidos de ver a quem se ama
Senão a nossa própria alma mesma,
Sobre a qual nosso ego se derrama...

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31/07/2016

Receita do humano (de Alma Welt)


Tenho tido tanta pena deste mundo
Que como um todo não sabe ser feliz.
Também certa tendência pra ir fundo,
Contra o que o vulgo pensa e diz....

Mas não me leve em conta, quem sou eu
Para julgar ou só mesmo ter piedade?
Um infeliz temperamento meio ateu
Com mescla de cinismo e ingenuidade.

Como todos ao redor, amores, ódios,
Um fascínio misturado com o horror
E a latente violência dos primórdios...

E no final, chacoalhando em coquetel,
Amor e um travo, ou só leve amargor,
Que é a especialidade deste Hotel...


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31/07/2016

Considerações (de Alma Welt)


Como é fútil nossa humana condição!
Carregamos a nossa vã mortalidade
Sem garantias, que não tola presunção
De chegar ao paraíso da bondade.

Da bondade que nem temos, bem se diga...
E imortalidade é o que almejamos
Porque do ego ninguém fácil se desliga,
Enquanto em mil cabeças nós pisamos.

Há quem pense somente em diversão
E poucos a concebem sem bebida
Com o fim de produzir mais confusão.

Enquanto eu, cuja família tem vinhedo,
Tenho de culpa e remorsos arremedo
Mas tendo que ganhar a minha vida...

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29/07/20016


Considerations (Alma Welt)

As our human condition is futile!
We carry our vain mortality
No guarantees, only foolish presumption
To reach the paradise of kindness.

Kindness that we not have, this is the truth..
And immortality is what we aim
Because the ego no one easy to turn off,
While a thousand heads we step.

Some people think only in fun
And few conceive without drink
In order to produce more confusion.

While I, whose family has vineyard,
I have guilt and false remorse
But having to earn my living ...
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29/07/20016

Meio (de Alma Welt)


Nós todos temos nossos medos, afinal.
Se não escrevo um soneto, ai de mim,
Me sinto incompleta e meio mal!
Tudo é "meio", hoje em dia, sem um fim...

Nossos costumes estão meio vulgares
Mas não quero parecer blasée ou snob.
Preciso urgente, talvez, de novos ares,
Já tem gente nisso a fazer lobby...

Há uma amiga que a Paris me convidou
Pra ficar em sua casa e ver o Louvre
E eu, medrosa, meio assim: vou e não vou...

A fim de dar-me rima ou incentivo
Ela diz: "Ouvre ta porte! Allons nous, ouvre!
Eu sorrio, meio assim... vivo, não vivo...

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29/07/2016

A Maldade (de Alma Welt)


Maldade humana vem dos tempos de Noé,
Melhor dito: antes mesmo do Dilúvio.
Após milênios vem Jesus de Nazaré
O primeiro a o Mal tratar como distúrbio 

Foi necessário então mais dois mil anos
Para o Freud, Sigmund, aparecer
E atribuir o Mal aos nossos anus.
Claro, estou simplificando pra valer...

Se temos dentro em nós um matador,
Édipo ou Electra de emboscada,
Não terminará nunca o nosso horror.

O Mal não tem ainda quem o esponje
Mas na renúncia à vingança anunciada
Foram Gandhi e Mandela bem mais longe...

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30/07/2016

Cartas de Amor (de Alma Welt)

Prometi nunca escrever cartas de amor,
Que são só o ridículo dos poetas.
As da Ofelinha do Pessoa causam dor,*
Me perdoe o mestre as minhas setas...

Podia bem passar o Fernandinho
Sem escrever em cartas tais pieguices *
Que fariam corar mestre Alvarinho,
O Campos, das odes como mísseis...

Modesto, não sabia o grande Vate
Que o mundo iria ler aquilo tudo?
Báh! Pobre coração que bate bate...

Dorme, meu poeta, e não me leves
A sério, já que em parte estás mudo,
E teu amor de antanho, como as neves... *

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29/07/2016


Notas
* As da Ofelinha do Pessoa... - alusão as cartas de amor que Fernando Pessoa escreveu para sua namorada Ofélia, cartas terrivelmente piegas, às raias do ridículo, de tal maneira que manchariam sua reputação de grande poeta se elas fossem mais divulgadas. Entretanto o próprio poeta escreveu mais tarde um conhecido poema sobre "cartas de amor ridículas", talvez como autocrítica. Entretando não devemos esquecer que cartas de amor não são necessariamente ridículas se nos lembrarmos dos grandes exemplos como as Cartas de Heloisa para Abelardo (Helois de Argenteuil e Pierre Abélard, amantes reais, da Idade Média) grandiosas e comoventes às raias do heroísmo, e também as chamadas "Cartas Portuguesas de Sóror Mariana Alcoforado, uma freira da cidade do Porto, para o seu amante, um oficial francês.

*Que fariam corar o Alvarinho - Alma chama assim ( no estilo piegas das cartas do Pessoa à Ofélia) o poeta Álvaro de Campos, o maior heterônimo de Pessoa e poeta fortíssimo.

* teu amor de antanho, como as neves - alusão ao célebre verso da "Balada das Damas dos Tempos Idos", do poeta francês medieval, François Villon: "Mais où sont les neiges d'antan"" (" Mas onde estão as neves de antanho?")