quarta-feira, 31 de outubro de 2007

SONETOS MITOLÓGICOS DA ALMA ( de Alma Welt)

SONETOS MITOLÓGICOS DA ALMA



Índice

1. Prólogo (Teogonia )
2. Ariadne em Creta
3. Ariadne em Náxos ( Dionisos )
4. Narciso
5. Perséfone
6. Perséfone II ( Deméter )
7. Penélope
8. Penélope II (A Teia)
9. Helena de Tróia *
10. Psiqué
11. Psiqué II ( o Rato)
12. Psique III ( No Hades)
13. Epílogo ( O Triunfo de Psiqué )

* (este soneto foi recentemente descoberto, inédito, na Arca da Alma)

Alma Welt

Sonetos Mitológicos da Alma



Prólogo (Teogonia)

1
No princípio era Crono, como um fole,
Acasalou-se com Ananke, pois faminto,
Mas não a Adrastéia, que não minto,
Mas aquela que lhe deu tríplice prole:

O Éter, o Caos e o Érebo profundo,
E deles gerou o imenso mundo
Onde num ovo colocou o grande Zeus
Como o filho que escapou aos dentes seus.

Mas Ananke, a cruel Necessidade,
Tem, um dia, um ataque de saudade
Recordando sua pureza, e então se acalma

Ao resolver criar a bela Alma
Que nasceria mortal, nesse roldão,
E chamou-a Psiqué... em solidão.




Ariadne em Creta

2
Ariadne outrora fui, perdida
De amores por Teseu, em labirinto.
O fio do meu destino era a partida,
E o Minotauro, meu irmão (eu tanto sinto),

Era a chegada, não um torpe obstáculo
Colocado por meu pai, o feroz Minos
( que ele próprio tinha chifres como báculo),
Para truncar de sua filha os desatinos.

E eu, que de mim só tinha um fio
Como Aracne, sem a trama dedálica,
Tudo esperei do herói de fama fálica

Que despejou no meu ventre um doce rio
Numa Náxos, de passagem, na partida
Esquecendo-me depois, adormecida.


Ariadne em Naxos- John William Waterhouse


Ariadne em Náxos

( Dionisos )

3
Nesta Náxos, perdida, abandonada
Fui por Teseu logo esquecida,
Ou então foi a vela, assim, quadrada,
Que não pode interromper sua partida.

Por isso, ou razões da deusa Ananke
Fiquei a Zeus dará, meio perdida,
Com o fluir do meu destino assim estanque,
A ver crescer meu ventre, embevecida.

Até que o deus alegre, brincalhão,
Aportou nesta Náxos sem nexo
Trazendo um grande falo, como sexo

De madeira, polido, ornamentado,
Com correias preso, pendurado,
E pediu-me que o servisse... esse bufão!




Narciso

4
De Narciso fui a doce ninfa,
Rejeitada, triste, obstinada,
A quem foi negada seiva ou linfa
De uma árvore sequer: petrificada!

Olho-me em ti, compreendo-te, Narciso,
Teu triste rosto contempla eternamente
A tua beleza, e nem ao menos um sorriso
Se vê no teu olhar deliqüescente.

Como é triste a beleza extraordinária
Que traz aos olhos a fonte onde se espelha
Para sempre incompreendida, solitária,

Que não cabe à pobre Eco partilhar
De tão fundo cismar, sem ficar velha,
E poder em flor se transformar!





Perséfone

5
Nos prados de minha mãe, então floridos,
Andava eu, colhendo de braçada
Sempre-vivas e outras, e os zumbidos
Distraíram-me, e não vi a debandada

Dos pequenos animais, que alertaria
Mais atenta criatura, ou temerosa.
E eu que na inocência só vivia,
Vi-me colhida por mão tão cobiçosa,

Arrastada ao solo assim fendido
E levada em grito lancinante
Ao fundo da terra fumegante

Onde senti afoito o grande falo
Invadir-me, rasgar-me, em meio ao halo
Que abriu-se em torno ao meu marido.




Perséfone II

(Deméter)
6
Minha mãe chorou por meio ano
E bateu à porta dos poderes
Enquanto eu, perdida em novo engano,
Esquecida do mundo e afazeres,

Tornei-me fogo, rainha tenebrosa,
Mas doce para o meu escuro rei,
A quem nem sob o sol esquecerei
Quando buscar-me a mãe tão extremosa.

Disputada, afinal, fui dividida
Entre mãe e esposo, meio a meio,
E a colheita enfim foi conseguida.

Sol e terra, a amplidão florida
E depois a noite tão comprida
De obscuro prazer e... tanto enleio.





Penélope

7
Na doce Ítaca, rochedo em mar de anil
Fui esposa zelosa de Odisseu
No início relutante, que partiu
Por poucos meses, conforme prometeu,

Mas que as Parcas retiveram ao bel prazer,
Girando os pesos do seu fuso incompreensível
De modo a fazê-lo se perder
Em aventuras e o amor do impossível.

E eu, cercada de um povo sedentário,
Cobiçoso do seu trono e nosso leito
(aquele que ele mesmo havia feito)

Cujo segredo eu haveria de cobrar
Do mesmo estrangeiro sanguinário
Que os pretendentes acabara de matar.





Penélope II

( A Teia )

8
Penélope fui, da Teia inacabada,
Que em tecer e destecer eu me esmerava,
Para ganhar tempo, desolada,
Mas numa estranha fé que me amparava.

Por dez anos, de príncipes cercada,
Que em orgias devoravam meu rebanho,
E cujo vinho me fazia cobiçada,
Pondo-me em perigo até no banho.

Telêmaco meu filho ameaçado
Quis partir, mas retive-o implorando
Para mais aguardar o nosso amado,

Que camuflado de mendigo, já tornara
E estava entre nós espionando...
Ai de mim, se a fé me abandonara!


Helena de Tróia (de Alma Welt)
9

Fui Helena de Tróia, com certeza,
Sua nudez esplêndida em mim sinto,
A tal guerra também, por minha beleza,
E sobre minha culpa já não minto:

Com o príncipe fugindo, como todas,
Para sempre felizes... ai de nós!
A começar sem as festas e as bodas
Que prenunciariam dor atroz...

E no final caí nas mãos primeiras
De meu marido, o maior daqueles brutos
Que conclamavam guerra pelas feiras,

O meu mesquinho e traído Menelau
Que me levou consigo em sua nau
De volta para o leito dos estupros...


Psiqué

10
Minha alma é toda Psiqué
E tenho sua memória em mim plasmada,
Os Zéfiros levando-me até
Eu lembro, ao palácio enfim levada,

E como por sombras fui servida
E à doce alcova encaminhada
Para a grande cama escurecida
Que me engolfava em prazeres, desvairada.

E como, depois envenenada
Pelas irmãs, somente pelo ouvido,
Encaminhei-me com a foice iluminada

Por lanterna de azeite, até o leito
Onde acabei queimando meu marido
Ao cair de borco no seu peito.




Psiqué II

( O Rato )

11
Quanto peregrinei em penitência
Até atingir a colunata
Do templo do “Amor plenipotência”,
Representado pela minha sogra chata!

Que agarrando-me os cabelos me arrastou
Por entre as colunas, e açoitada
Deixou-me quando quase me matou,
Para voltar depois com a empreitada

De eu tecer com palha suas esteiras
Pra que, em ouro, as deixasse amarelas,
Pra que eu “não fizesse mais besteiras”,

Enquanto, eu dormindo, vinha a sogra
Como um rato, roendo minhas telas...
Assim é que o Amor a Alma logra!





Psiqué III

( O Hades )

12
Foi-me dado enfim pesado encargo
Por Vênus (que devia ser do Amor)
Descer ao Hades, sem embargo,
Para pedir à sua comadre um favor:

De Perséfone eu devia receber
Uma pomada, um perfume, que sei eu?
Que sã e salva voltar me prometeu,
Se lhe trouxesse o embrulho sem saber

O conteúdo, que enfim não resisti,
Abri, e fui por ele envolvida
Em nuvem infernal, e sucumbi.

Prostrada fiquei até o momento
Em que levada fui, e absolvida
Diante de Zeus, cessando meu tormento.



Epílogo

( O Triunfo de Psiqué )

13
Eis que narrei tua saga, ó Psiqué,
Em três sonetos, o que é coisa de maga,
E que somente é explicado, fácil até,
Pelo fato de ser minha própria saga.

Venho de longe, de um tempo inconcebível
E Alma, poeta sou, eternizada
Pelo brinde de Zeus, inesquecível,
Convidando-me a viver em sua morada:

“ Vinde a nós, Psiqué, que tanto amaste,
Abrace teu marido, o deus alado,
E pertença-lhe pra sempre, que o roubaste

À sua mãe, Vênus do amor (ó vingativa!)
Bebe conosco o néctar sagrado,
Sê imortal, e ama, nova diva!”


FIM

23/04/2005

Notas
*Teogonia- neste prólogo Alma reproduz o inicio da Teogonia de Helânico, autor órfico do século VI AC, que diversamente à famosa Teogonia de Hesíodo (que coloca a Noite e o Caos como princípios teogônicos), tem Crono (o Tempo) se acasalando com Ananke (a Nescessidade) para gerar uma tríplice prole: o Éter úmido, o Caos infinito, e o Érebo nebuloso. A seguir Crono insere no Éter o Ôvo Primogênito, que daria nascimento a Zeus, o "princípio ordenador" e aos protágonos (primeiros deuses).
O detalhe de Ananke ter criado Psiqué (a alma, a princípio mortal) por saudades de sua pureza perdida, é uma contribuição genial da própria Alma Welt ao mito, pois isso não consta de nenhuma teogonia conhecida.


Ariadne em Naxos- Este episódio, muito celebrado por pintores, se refere ao abandono de Ariadne na ilha de Náxos por Teseu após este ter penetrado no labirinto de Creta com a ajuda dela, princesa, filha do rei Minos, para matar o Minotauro, seu monstruoso meio-irmão. Como todos sabem, Ariadne empregou um ardil muito simples: amarrou a ponta de um longo novelo de lã à cintura de Teseu para que este pudesse voltar sem se perder depois do duelo com o monstro no centro do labirinto. A seguir o casal foge para ilha de Náxos onde Teseu engravida Ariadne na primeira noite ali, e parte na manhã do dia seguinte, bem cedo, deixando Ariadne adormecida. Já em alto mar se lembra que que deixou (por esquecimento !!) a sua amante para trás, mas não pode voltar pois as velas quadradas do seu barco só funcionavam com o vento a favor, isto é, por trás (os gregos ainda não tinham inventado a vela tringular para singrar em ângulo contra o vento). Ariadne abandonada, é encontrada pelo deus Dioniso, que apreciava essa ilha, e tinha acabado de inventar o "dildo" (consolo) pois estava apaixonado por um homem. Antes de se relacionar com Ariadne de quem por sua vez terá filhos, obrigou-a a servi-lo com aquele instrumento recém inventado (!!!).
Alma tomou conhecimento desse espantoso detalhe do mito num texto Junguiano de curiosa interpretação e, ao que parece, de fontes gregas fidedignas (risos). Como os leitores percebem, Alma lança mão do humor em diversos momentos deste seu ciclo de sonetos mitológicos.

Demeter*- A deusa das colheitas (Ceres, entre os romanos), mãe de Perséfone (Core), depois de muito chorar pela filha raptada pelo deus Hades que surgiu do fundo da terra quando a donzela colhia flores no campo, conseguiu que Zeus permitisse que a filha saisse temporariamente do Hades, deixando o marido, e vivesse seis meses com ela, sua mãe, a cada ano. Estes ciclos correspondiam ao plantio e a colheita.

* O triunfo de Psiqué- É curioso ver como Alma se identifica e celebra a si própria neste soneto, por profunda identificação com o mito, até porque seu nome, Alma Welt, significa "Alma do Mundo" (Anima Mundi). Aliás, a identificação plena da poetisa com as diferentes personagens femininas dos mitos que ela aborda, constitui a graça maior e originalidade de seus sonetos.
((Guilherme de Faria)

Nenhum comentário: