domingo, 21 de outubro de 2007

Sonetos da Pintora II (de Alma Welt)

Prólogo

1
Amanhecendo, neste prólogo, acordei
Para enfrentar a tela nua, temporã,
Com pincéis dos meus cabelos, que cortei
Na penumbra de uma flácida manhã.

E pus-me a pincelar o rarefeito
Espaço boicotado pelo tempo,
Onde quase tudo já foi feito
Pela mente audaz, em contratempo.

E assim perdida a inocência do pintar
Era debalde a tentativa sem pulsão
E a criação perdera-se no ar.

Atiro, pois, o meu pincel sujo no chão
E vendo a mancha esplêndida, borrada,
Pintora sou, refeita... retomada.



2
Quero pintar, ao mesmo tempo ser amada
Com a sofreguidão da pobre Frida*,
Pois, se criar é transgredir, ser odiada,
Meu dilema estabeleço de saída.

E assim debato-me entre o verso e o cavalete
Buscando uma palavra inconcebida
Como no Larrousse um só verbete
Que pudesse esclarecer a própria vida.

Mas quando toca a sineta e abro a porta
De imediato o impasse se desfaz
Pois trazes o único que importa:

O teu dom de zerar-me prazerosa
Como quem deleta a dúvida e refaz
O verso em rima fácil, como rosa.



3
Pinto uma montanha e o seu vale
Mas com formas chave, pensamentos,
Abstraídas pinceladas, movimentos
Que calem a palavra e a alma fale.

E tendo já soado o diapasão
De minha audaz procura e sua sanha,
Não há retorno, temor do coração,
E escalo de verdade esta montanha

Pra logo mergulhar como uma vela
Na sombra do sopé, na depressão
Noturna, como alguém que tece a teia

Para o ser amado, nua e bela,
No repouso que reina sobre a aldeia
Sob a sombra majestosa do vulcão.



4
Hoje pintarei só mentalmente
Já que tenho as mãos tão atacadas
Pelas tintas, tão belas e rachadas
E a testa parecendo meio quente.

Na certa morrerei da profissão
Depois dessa vida de safári,
Matando todo dia um leão
Para morrer depois qual Portinari*.

E estendo-me no solo do ateliê
Olhando minhas telas como espelho
De Narciso que a si mesmo ama e vê

Até perder-me nas cores, deslumbrada
Pelo ritmo, textura, pincelada
De um orgasmo tingido de vermelho.


5
Estou enlouquecida em minha procura
De uma rima de cor, de uma palavra
Fluida como tinta em sua textura
Pintura e poesia desta lavra,

Pois não vejo real dicotomia
Entre palavra e gesto, dorso e palma,
Que são da mesma bela anatomia
Fundidas assim, em minha alma,

Da mão, o dom de Deus, o vero signo
Com que fomos dotados quando feitos
Antes da expulsão, qual ser indigno,

Para vagarmos na terra agora hostil
Escrevendo, polindo o verso vil
Para ser novamente, um dia, aceitos.



6
Amor meu, alma e poesia
Pintura em minha veia, cantoria
E a dança dos meus gestos quando pinto
Diante da tela branca em que me sinto.

Assim também, no leito me coloco
Passiva agora diante do teu foco
Que a pintora és tu, neste momento
Para fazer tua prova, teu evento.

E se souberes combinar as minhas tintas
Colhendo-as onde fluem generosas
Terás na mesma tela em que pintas

O duplo retrato, arte e vida,
Que vejo em mim e ti, enquanto gozas
Sobre a minha boca agradecida.



7
Venham elfos, fadas, venham cores,
Venha todo o tropel dos pensamentos
Quero pintar, sentir sem mais pudores
A féerie de ser bela e ter talentos.

Quero celebrar meus privilégios
Nascida para o belo e para o amor
Vivendo a vida em meio a sortilégios
De um destino raro, “de pintor”;

Na verdade, de “pintora-poetisa”,
O que produz uma guinada no destino,
De viés, como a tal torre de Pisa

Que se sustém por milagre, tão sem prumo
Já que o Arquiteto teve o tino
De ir moldando para cima, no seu rumo.


8
Lancei um quadro exuberante como festa
Que transforma o ateliê numa floresta
Em que passeio nua como as ninfas
Urinando seivas, nobres linfas.

E refaço o meu espaço em tons de verde
Ludibriando este cimento dos Jardins
Que a cada ano uma árvore perde
Por velhice, roída por cupins.

E assim, repintando o fundo antigo
De ilusões, longe do Pampa, em meu exílio
Aqui onde atingi ponto mais baixo,

*Ad Augusta per angusta, é o “estribilho”
Do Ex-libris desenhado pelo amigo
Como uma canção em que me encaixo.




9
Amores meus, artistas, almas nuas,
Nijinsky, o supremo bailarino;
Pintor e cineasta em suas gruas:
Fellini, roteirista do divino.

Caruso, e outros mestres da canção
E aqueles pianistas revelados
Que sabiam dedilhar os seus teclados
Não deixando ouvir a percussão.

E pairando sobre mim, qual bailarina
A soprano com a sua voz mais fina,
Callas que era mezzo, a meu ver.

Van Gogh, Gauguin, heróis da Arte
Mais Picasso, Breton anti-Descartes*
A todos quero dar até morrer.





Epílogo

10
Quero pintar, perder-me, poetar,
Amar, ser amada e possuída
Pois que tudo quero desejar
E desejada ser a própria vida.

Confundindo-me com aquilo que desejo
Entregar-me assim nua e sem pejo,
Ser atingida pelo amor em pleno cerne
Através do sexo e da epiderme

Ser a musa doida de um poeta
(que jamais me entregaria a um burguês)
E ser então cantada em prosa e verso,

Depois, quando o Tempo, falso esteta
Atingir-me como a todos sempre fez
Ainda feliz poder mostrar o meu anverso.

FIM


Notas
* Frida- Alma se refere à pintora mexicana Frida Kahlo.
*"...qual Portinari- Alusão à morte do grande pintor por envenenamento pelas tintas.
*"Ad augusta per angusta"- este mote latino significa "chegar a resultados magníficos por vias estreitas", e é a senha dos rebelados na peça Hernani, de Victor Hugo. Ao ser escolhido para o seu Ex-libris desenhado pelo amigo Guilherme, Alma descobriu nele uma possível tradução ao pé da letra: "à Augusta pela angústia", expressando o sentimento que a levou do seu pampa ao auto-exílio nos Jardins, de São Paulo, (às margens da rua Augusta.)
*Breton anti-Descartes.- A autora se refere ao líder dos surrealistas, que detestavam o racionalismo francês representado pelo pensamento "cartesiano"(de René Descartes, filósofo francês do século XVII), primado da razão e do consciente, que os surrealistas pretendiam destruir.( Descartes , em francês pronuncia-se "Decarte", que rima com Arte).

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