Este espaço é destinado às diversas séries de sonetos da poetisa gaúcha Alma Welt, que, mais genéricas, não se enquadrem nos outros blogs da poetisa, de séries mais específicas, como os eróticos, os metafísicos, etc. (vide lista de seus blogs)
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
Sonetos da Pintora ( I ) (de Alma Welt)
Tempestade no mar- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 90x100cm, coleção particular, São Paulo, SP, Brasil
"Porquê me vejo assim, como barcaça
Em perigo de chocar-se, no seu curso,
Contra rochedos, ali, como ameaça,
Em silhueta agressiva , como um urso?"
Prólogo
1
Amanhece, o ser me abro e as janelas
Em seguida caminho no ateliê
Pelas sendas que sei entre as minha telas,
Trilhas que o olhar ainda não vê.
Ligo o rádio, captando uma sonata
De Beethoven, que me soa auspiciosa:
Aurora sobre a mente logo grata
Lembrando-me que estou quase famosa.
Nestes tempos difíceis, escasso o pão,
Não preciso caminhar senão a pé,
Já que não tenho nem pra condução...
E reflito o privilégio em “minhas vidas”,
Do caminhar tranqüilo, doce até,
De minhas belas pernas tão queridas.
Soneto de Aceitação
2
Eis que a pobreza me cai bem:
Olhando a silhueta em meus espelhos
A curva do meu ventre me entretém
Pela perfeição, louros pentelhos.
Não voltarei tão cedo àquela estância,
Tão desolada, desde que partiste, Vati!
Não mais transporei essa distância
Por teu beijo, teu afago ou o teu mate.
Daqui mesmo ainda vejo o meu pomar
As iniciais na macieira e o coração
Gravados para nunca se apagar.
E se me entrego talvez à nostalgia
É por sentir dentro de mim a tua mão
Puxando-me pra diante, como guia.
Soneto da Dor
3
Esta dor insidiosa, dor no imo
Que a mim mesma denuncia a derrocada
Do meu fundo ser, perdido o mimo
De meu destino de princesa tão mimada
Vem de um feminino abantesma
Que insiste em cobrar o seu direito
De rainha ou de musa de mim mesma,
Da louca artista que carrego no meu peito.
Esta dor, devo aceitá-la, dela emana
Minha arte, a pintura e minha poesia
Que se pretende alegre e não reclama
Pois nela reside a fantasia
Que reconstrói minha alma a cada instante
Como ao corpo a carícia de um amante.
Soneto de Marinha
4
Pinto uma tormenta, surpreendente,
Com um barco vermelho a soçobrar.
Metáfora, certamente, não do mar
Mas da vida, do meu coração e mente.
Do humano destino alegoria
Tão contrária ao chamado vanguardismo...
Que me importa a moda e sua mania,
Que procura evitar tal simbolismo!
Romântica sou, assim me assumo
Nesta época de caos e decadência
Ou de aridez estéril, em resumo.
Percebo, então, que o tema defasado
Encontra em minha alma referência
Do meu barco e de seu rumo ignorado.
Soneto de Marinha II
5
Porquê me vejo assim, como barcaça
Em perigo de chocar-se, no seu curso,
Contra rochedos, ali, como ameaça,
Em silhueta agressiva , como um urso?
Será a minha morte aproximada
Ou mais um acidente de percurso,
De minha existência atribuladas
De pura vida interna, sem recurso?
Subjetivista empedernida
Que me sei, mas com certo desgosto,
Meu próprio mundo reflete-se na vida
Ou será justamente o oposto?
A vida atravessando o meu cristal
Da alma, e decompondo o bem e o mal...
Um Soneto de Outono
6
Voltou o Outono e sua quietude
Estação de mortal melancolia
Em minh’alma, malgrado a juventude
Que afinal ainda me anima, serve e guia.
Lanço quadros, em ouro matizado
De vermelho, mas em telas abstratas,
Abstraídas folhas, cataratas
De cores, tons, e frio antecipado.
É o nórdico Outono dentro em mim,
Pois que aqui a cidade se acinzenta
E dói como um cristal dentro de um rim
Que urina sobre a tela em ouro e sangue
Produzindo esta matéria densa e lenta
Onde a alma chafurda como em mangue...
Soneto da Conciliação
7
Nesta cidade e seu caos amanhecido,
Sem um galo ao longe, sem um sino
Sem um mugido, relincho ou latido,
Perdida estou, talvez, do meu destino?
Perscruto-me, como quem se deita carta
Se devo ou não voltar pra minha estância
Abandonando a veleidade que descarta
Meu ser de sua pompa e circunstância.
Mas logo lanço um quadro e me apaziguo
Ao ver fluir os tons com seu recado
Tão amplo, neste espaço tão exíguo
Pois gaúcha e pintora, eis o meu Pampa:
Um retângulo de tela, tão sagrado
Como caixa de Pandora, sem a tampa.
Soneto da Infidelidade
8
Tem dias que me deito enlanguecida,
Largada, nua, em meu divã
Diante de uma tela enlouquecida
Lançada a esmo, sensual, pela manhã.
Pois que estando projetada, me despojo
A ponto de querer-me assim nua,
Entregue num sofá onde me espojo
Pensando como faço pra ser tua.
E percebo então que minha nudez
Se reflete nessa tela, ou o contrário:
Alimentando meu desejo em sua avidez.
E se imagino-me tomada nos teus braços
A pintora dentro em mim, com seus espaços,
Sai de cena, ocultando–se no armário.
Soneto da Fênix
9
Toca minha sineta nada alto,
Que comprei na Liberdade, japonesa
Assim deixo o pincel, sem sobressalto
E vou abrir a porta, mas... surpresa!
Eis que visão de um rosto amado
Me nubla o olhar extasiado
Ao ver entrar Aline, meu modelo,
A quem eu dediquei tanto desvelo.
E toda a paixão, com sua dor
Explode, dentro em mim, em um segundo
E quase desfaleço sem pudor.
É ela! A camiseta, o jeans e o tênis,
Seus seios despontando como o mundo,
Dessa paixão de cinzas, como Fênix.
Epílogo
10
Explode a minha paleta, qual pletora
De danças, cantos, riso e alegria,
E volto a celebrar a fantasia
Que rege o meu destino de pintora.
Como é belo assim viver em plena arte
O amor e a pintura conjugados
E fazer da minha sina, em contraparte,
O segundo e o minuto eternizados.
E abraço a doce Aline, em euforia
Como fazem as amigas reatadas
Em dupla que em gritinhos rodopia.
E sem pedir licença a ti, leitor,
Rumo ao quarto (na espiral, sutis guinadas)
Pra fruir, a sós, o meu amor!
FIM
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