Índice
Prólogo
1 Longos prados de ouro...
2 No reino da pintura...
3 Para poder pintar...
4 Aline, meu amor...
5 Hoje me vejo...
6 Voltei a harmonizar...
7 Ontem, eu corria...
8 Aline, hoje não pinto...
9 Vou desenhar-te, Aline...
10 Prólogo
Abro as janelas amplas...
Prólogo
1
Longos prados de ouro no poente
Eu diviso aqui deste ateliê
Sobre um vasto pampa imanente
Que somente em mim a alma vê
Cercada dos caixotes de cimento
Que queria saber apreciar
Abrindo a janela ao nascimento
De uma nova fase em meu pintar.
Talvez o segredo da metrópole
Se abra para mim nestes Jardins
Expulsando por fim aquela Acrópole*
Talvez eu harmonize Yin e Yang
Propondo outros meios, outros fins
Para persistir... “forever young!”
2
No reino da pintura, eterna luta
Com o caos, para ordenar, em harmonia
Mesma, o conflito e a permuta
Entre o Self e o Ego, e sua mania.
Como religar a mediação
Entre os dois pólos subjacentes
Que lutam sob a carne, em ação
Gestual, debatendo-se, emergentes?
Questão que não devo aprofundar
Pois sei que a cor mesma e a pincelada
Nascem do impulso como se do Nada,
E a pintura, como a fome num asceta,
No próprio nascedouro vou matar
Se ponho-me a pensar como poeta.
3
Para poder pintar ainda teimo
Em me manter acesa, erotizada,
Não resisto aos apelos desse reino
Do sexo e da carne insaciada.
Procuro, no entanto associar
Essa pulsão, em mim tão poderosa,
Da libido que insiste em reinar
Sobre tudo em minha vida generosa,
Ao impulso da alma, ascendente
Que busca elevar-se no poente
E descer as trevas na aurora,
Nessa depressão após vigília
De exaltação, pintura agora,
Mar de cores a cercar-me como ilha.
4
Aline, meu amor, com seu desvelo
Está diante de mim em sua nudez,
E eu, que não preciso de modelo,
A ela só, retrato em nitidez,
Como minha musa, minha maja*
Para encantá-la e retê-la
Na minha tela, como amarra
No porto do ateliê, pra não perde-la.*
Pois jovem como eu, ainda me quis
Com essa alma antiga que herdei
E que me faz conhecer esses ardis;
E como um Goya que só Alba retrata
Deitada nua e branca eu a pintei,
Eu, que sou pintora... abstrata.
5
Hoje me vejo especialmente inquieta
Não cabendo em minha pele desvairada
Tentando versos, já que sou poeta
Levantando, pra mais uma pincelada.
E então percebo que preciso é ser amada
Agarrada à força, penetrada
Por algo ou alguém dominador
Que me fizesse sentir alguma dor.
Eu sei que o leitor diagnostica
Histeria ou tpm, tudo indica,
Não me ofendo, mas discordo (antes fora)
O que quero é ser mulher, mais do que musa,
Não ser sequer poeta ou pintora
E ter esta alma assim difusa.
6
Voltei a harmonizar meu interior
Que se reflete em novo quadro e sua cor
Com a presença de um fundo dominante
De um azul mediterrâneo, apaziguante.
E então, minimalista, de repente
Uma mancha, um reflexo, o que for,
Sobre a água plácida que mente
Sua profundeza e sua dor.
Assim, pressinto a erupção em minha mente
De um semi-deus marinho emergente,
Leviatã, Cila e Caribde, até Netuno
E preparo-me pro tumulto dessas águas
Que foram produzidas pelas mágoas
Que surgem como um monstro inoportuno.
7
Ontem, eu corria, livre em mim
Em torno à minha casa avarandada
Soprando as sementes do capim,
Mais que observando: integrada
Às lindas coisas da relvas e do ar,
Pequenas flores, insetos a voar,
Aves, nuvens, o vento nas coxilhas
Nesse desfilar de maravilhas.
Então ouvindo o piano, o som do rei,
Eu corria para vê-lo no escritório
(já que era ali seu território)
E de bruços me punho estendida
Num tapetinho debaixo do Steinway,
Que era a prova do quanto era querida...
8
Aline, hoje não pinto, vou dançar
Contigo o nosso belo pas-de-deux.
Faz tempo que deixamos de lembrar
A nossa parceria no ballet
Que fizemos, ao nos conhecemos,
Quando a emoção nossa transcendeu
Ao dançarmos assim sem percebermos
O tema que então nos comoveu:
Um duo final do Quebra-Nozes
Entre um príncipe e uma fada muito séria
Cujo amor encontra apoteoses
De carne e espírito em fusão perfeita
Produzindo a leveza da matéria
Cuja imensa dor resta insuspeita.
9
Vou desenhar-la, Aline, a puro traço
Para fixar o seu perfil
E a sua silhueta no espaço
Do plano do papel que você viu
De uma pura trama como linho
Vindo de longe, talvez Jerusalém
Ou colhido na beira do caminho
Da estrada que leva até Belém,
E delirando assim sobre o papel
Coloco sobre a mesa o material
Depois de organizar esta Babel
E oficiando, enfim, como vestal,
Invoco os velhos deuses meus do traço:
Leonardo, Hokusai, e até Picasso.
10
Abro as janelas amplas do ateliê:
Entrem o sol, a poeira, e o ar também,
Entre o vento dos Jardins, que aqui me vê
Entre as calmarias e o desdém...
Já que o meu Pampa é tão distante
E aqui me asilei, perdido o Vati,
Aqui encontrei meu amor fati *
Vivendo a glória do meu coração amante.
E cercada de mil telas multicores
Compus o meu cenário sem rancores
Apesar desta “Augusta per angusta”*
Que busquei como a tal saída justa
Para criar, dar ao mundo o puro verso
E amando tanto, recriar meu universo .
FIM
19/07/2006
Nota
*..."amor fati"- Expressão exclusiva da Renascença italiana(século XVI ) do sentido de amor predestinado e por vezes fatal, preconizado pelos poetas daquele período.
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