domingo, 21 de outubro de 2007

Sonetos da Pintora IV ( de Alma Welt)

Índice

1. Prólogo
Ergue-se em mim...
2.
Solidão, mar desta barca...
3. Como posso prosseguir...
4.O quadro que pintei...
5.Vem, minha amiga...
6.Amigas, amigos...
7.Hoje bateu-me...
8.Volto a abrir...
9.Amores, amor, música...
10. Epílogo
Raia o dia, ó glória...


Prólogo

1
Ergue-se em mim a manhã do meu amor
Em primavera urbana de esperança.
Renovo o meu olhar e o meu ardor
Em ser como pintora... uma criança.

E assim, abro as janelas do ateliê,
Que dão pra esta Oscar Freire saturada,
Passarela do Fútil que se vê,
E que consiste em ter tudo e em ser nada.

A mim cabe pintar um universo
Cujas raízes estão longe daqui,
No Pampa, onde está o meu anverso.

E recriando o mundo em verso e prosa,
Deixar a minha marca aqui e ali
Num retângulo de tela preciosa.


2
Solidão, mar desta barca criadora,
Estou em mim, inspira-me, eu me entrego!
Quero cantar, dizer a fala da pintora,
Fazer fluir o verso a que me apego.

Cobrir minhas paredes de mim mesma,
Projetar-me em cor, poesia e canto;
A dança de uma alegre abantesma
Que a si mesma reconhece o seu espanto.

Pois numa era triste de marasmo,
Em que as mentes voltam pra si mesmas
Perdido todavia o entusiasmo,

Eu continuo, heróica, acreditando,
Polindo versos e juntando resmas,
Na branca fibra a alma projetando.


3
Como posso prosseguir acreditando,
Manter aceso o olhar, a meta e o desejo,
Se o coração carente traz o ensejo
De perder-se no outro, assim amando?

Refiro-me à pulsão que cria, à Arte,
Da qual não posso certamente prescindir.
Mulher-artista, como prosseguir
Se o doido coração quer liqüidar-te?

Ser só mulher, entregue , possuída,
Fêmea total, à raias da Odalisca,
Da puta gloriosa e assumida,

Assim quer o branco corpo, o alvo seio,
Os lábios cheios de paixão arisca,
As amplas curvas com a fenda ao meio!


4
O quadro que pintei hoje, me guia,
Amanhã serei outra, em plenitude.
A obra que não fiz neste meu dia,
Nunca verá sua completude.

Assim dizia um velho amigo meio sábio
Enquanto eu me achava "meio grávida".
Quero dizer com isso o quanto hábil
Era o meu amigo e... eu, tão ávida!

A sede de viver me confundia,
E na louca juventude dispersiva,
Por delicadeza me perdia... *

E assim, entre ânsias e desejos,
Quanta hora perdida, quão lasciva
Era esta bela Alma, e... quantos beijos!

*Paráfrase do célebre verso de Rimbaud:
"Par délicatesse jái perdu ma vie
".


5
Vem, minha amiga, vem comigo
Para o quarto, já que queres premiar-me.
Pintei o teu retrato, e não consigo
Deixar de a ti, agora querer dar-me.

Terás de possuir-me de algum modo.
Quero que entre em mim o que tiveres:
Lábios, língua, dedo, enquanto rodo
Como frango no espeto. Não me queres?

Adoro sentir-me aniquilada
Depois de ser assim tão obediente:
Não sou mais a pintora, não sou nada!

Conquanto eu não te veja preparada,
Quero, enquanto ainda esteja quente,
Com este relho de meu pai ser fustigada.


6
Amigas, amigos e meus livros;
Telas, desenhos, música e poemas,
Eis o universo: estamos vivos,
Nada a haver com o tal "vale de penas"

Aqui um traço, puro encantamento,
Um verso com a rima sedutora;
Outro ali, livre, um pensamento,
Um bater de asas e.. já se fora.

E como então não ajoelhar-se,
Colocar a grata fronte neste chão
Do ateliê bendito, prosternar-se

Perante o deus da Arte, o ser sortudo
Que reconheço neste rico coração,
Nesta Alma capaz de quase tudo?


7
Hoje bateu-me, eu presumo, um "mal estar
Civil", como dizia um velho mestre.
Um não-sei-quê, a dor de não me dar,
Não pertencer, como um pássaro pedestre.

Nunca fui, certamente "boba alegre",
Pois minha alegria vem do fundo
Mesmo de onde nasce esta febre
De sofrer por quase toda dor do mundo.

Rasgo poemas, choro só de os ler;
Olho meus quadros e viro-os contra o muro,
Dirão vocês que é "coisa de mulher".*

Mas não desqualifiquem, é muito duro!
Sou Alma, não sou uma qualquer,
E tenho orgulho até mesmo de sofrer...

* Alma se refere à chamada tpm (tensão pré-menstrual)


8
Volto a abrir a persiana
Que não existe e que estava tão cerrada.
Minha sala escura há uma semana
Voltou a sorrir, iluminada.

Coloco a tela, o fundo preparado
Branco como um lírio de verbete
No cavalete sujo, tão usado,
Como deve ser um cavalete.

E então boto um Wagner triunfal
No pequeno aparelho de CD
E ataco qual se fora Parsifal.

E vendo nascer um novo mundo
De cores fluidas qual poesia que se vê,
Meu canto de alegria vem do fundo!


9
Amores, amor, música e sexo,
Eis a receita de uma vida em plenitude;
Também escrever versos sem nexo,
Coisa que, no entanto, nunca pude.

Percebo como sou tão racional
E como meu poema vem da mente,
Conquanto o coração fique contente
Com seu próprio poder residual.

E embora eu me debata com freqüência
Com este seu teor conceitual,
Vem do coração essa carência.

E como nos Mistérios de Elêusis
Busca libertar-se, imortal,
Qual Dioniso, do cárcere dos deuses.


EPÍLOGO

Raia o dia, ó glória, raia o dia!
Eis-me defronte à tela iluminada
Por um raio de luz que inicia
Meu trabalho com a primeira pincelada.

Diante destas cores milagrosas
Eu me dispo, branca como a telas,
Ou antes das primeiras aquarelas
O papel com suas fibras generosas.

E como numa espécie de corrida,
Maratona em busca da beleza
Que parece ser o dom da minha vida,

Eu volto a sentir a minha lida
Como um cântico perpétuo à Natureza
Que me doou esta Alma dividida.

FIM

11/11/2005

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