sábado, 31 de março de 2018

O véu rubro (de Alma Welt)

Às vezes, me perdoem, eu quero ir-me.
Quantas vezes, ai! quero partir,
Com esta "dor de pátria" a afligir-me
E não tendo mais pra onde fugir...

Minha nação envenenada, agonizante,
Os lábios distorcidos em agonias;
Dois punhais de fogo temos diante,
Mas, há muito, povo nosso, já não rias...

Não quero mais ver isto, e ir embora
Tornou-se-me desejo imperativo
Conquanto nada exista pra mim fora.

Ó véu rubro que assomas como nuvens,
Não há nada de bom de onde tu vens,
Nem mais o doce gosto de estar vivo...

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31/03/2018

sexta-feira, 30 de março de 2018

A falsa paz (de Alma Welt)

Sempre senti que paira uma ameaça
No ar, em meio a paz deste jardim,
E diante de uma nuvem má que passa
Eu perguntava à minha avó, assim:

"Nenhum alarma nem flâmula se alça
E mal ouvimos o rangido da porteira.
Vó Frida, por quê a paz me soa falsa?
Por quê razão não a sinto verdadeira?"

E a velha zombeteira e perspicaz
Piscou o olho fazendo uma careta,
E disse: "Alma, pergunte ao capataz."

"O Galdério é que sabe dos rumores
E ouve primeiro o rufo dos tambores
E muito longe o sopro da corneta..."

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30/03/2018

quinta-feira, 29 de março de 2018

O Manjar Branco (de Alma Welt)

"Como estar em paz na vida e relevar
Tantas ofensas graves e ameaças?
Como inteira ser feliz e perdoar
As perfídias alheias e as trapaças?"

Assim falava minha mãe pondo perguntas
E questões na minha boca emudecida
E perplexa, já que essas coisas juntas
Sequer faziam parte da minha vida.

" Mãe" - eu respondi - "Não tenho queixas!
Mas do que a senhora está falando?
Fiz um branco manjar cheio de ameixas...

Vê, olha os contrastes, sou assim.
As ameixas são escuras, mas melando,
Não desejes pôr receios no pudim..."

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29/03/2018

terça-feira, 27 de março de 2018

Memórias da Alma (de Alma Welt)

"Minha filha, viver é estar na selva
E deixar o rastro onde passemos.
Nossas ações, nossos passos nessa relva
Definem quem nós somos ou seremos..."

Assim meu pai dizia, aventureiro
Que avistara coisas escabrosas
Na ascensão do Reich (o Terceiro),
Mas voltara aos vinhos e às rosas...

E eu, sentadinha em seus joelhos,
Viajando em suas palavras como um coche
Diante do Jardim da minha avó Frida,

Cercados pela vinha do avô boche
Chegado mais aos mandos, não conselhos,
Lá ia eu, no coração forte da Vida...

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27/03/2018

domingo, 25 de março de 2018

As três perguntas (de Alma Welt)

                                D'ou Venons Nous / Que Sommes Nous / Où Allons Nous (pintura de Paul Gauguin)


As três perguntas (de Alma Welt)

A meu pai, quando guria, eu prometi
Investigar a razão e o sentido
Da Vida e da Arte... e comovido
Então, mais uma vez, o grande homem, vi...


"Alma minha" - disse ele- eu acredito
Que procurarás o Bem, o Justo,
E a Beleza, que já têm um alto custo,
Pois neles, sim, é que repousa todo Mito.

Fiquei perplexa, mas só por um segundo,
E respondi que os usaria como meio
Pois queria penetrar ainda mais fundo.

Pois queria é encontrar as três respostas
Para as três perguntas, no alto postas
Da pintura de Gauguin, que sempre leio...
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25/03/2018

quinta-feira, 22 de março de 2018

Quê mistério... (Alma Welt)

Quê mistério a vida é, quão espantoso!
A rigor tudo é milagre, se pensamos...
Dormir e sonhar são um dos ramos
Da Árvore da Vida em pleno gozo.

Mas em quê pesadelo a transformamos
Em nosso recebido arbítrio livre
Que, se nos define enquanto humanos
Também cria o Inferno que em nós vive.

Sempre uma e outra coisa, sempre extremos,
Sempre dupla a visão ou o conceito,
Dupla chance ou falsa escolha temos...

Quantas vezes quando estou desesperada
Peço a Deus mais uma mão, nova cartada,
Outra rodada de blefes no meu peito...

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22/03/2018

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Olhai as flores (de Alma Welt)

Vivo, sim, em eterna vigilância,
No que for concernente à minha alma,
Que me foi dada, eu sei, em confiança,
Para levá-la de volta sem um trauma.

Mas "trauma" é sonho, dizia minha avó *
Se referindo da palavra a própria origem
Na sua aldeia, de onde saiu só
Pra encontrar com meu avô, ainda virgem.

E zelaria por mim muito mais tarde,
Preservando não a minha inocência
Mas a própria chama que em mim arde.

" Minha Alma"- ela dizia- "olhai as flores
E mantenha como elas vossas cores
Até o fim, tudo mais é excrecência"...

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23/02/2018

Nota
*..."trauma" é sonho, dizia minha avó - O termo psicanalítico "trauma", deriva da palavra alemã "traum" = sonho, sonhar.
Frida (Frieda Henner-Welt), a avó da Alma, era alsaciana e sua língua de origem, o alemão.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Devolução (de Alma Welt)

Muito andei por aí perambulando
No meu tempo de desassossego,
Algo muito específico buscando,
Não tateando como camundongo cego...

"O que buscas?"-perguntaram- "Estás perdida?
"Não perdeste o aplom e a doçura...
De onde vem essa desenvoltura
Como quem já se encontrou na vida?"

Busco um poema tão perfeito (eu respondi)
Que revele do Ser o quando e o como,
E que tenha sido eu que o escrevi.

Quero levá-lo ao meu Jardim e seus limites
E dizer logo a Deus: "Eis Vosso pomo.
Tomai-o, pois, de volta e estamos quites ..."

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22/02/2018

Entre Deus e o Diabo (de Alma Welt)

"Que queres, Alma?" me disse Deus um dia.
"Peça claro e bom som embora eu saiba.
E não me venha com papo de poesia
Ou qualquer outro truque que não caiba."

"Mas Senhor, só me destes as palavras,
Do teu Logos um pouco, em verso e rima.
Se tudo isto não vem aí de cima,
De onde vem, Senhor? Que outras lavras?"

Assim eu conversava com o Senhor,
Inconteste criador do Céu e Terra
A quem, modesta, atribuo meu pendor...

"Filha, o Diabo aqui esteve em meu salão.
Qual Salomão me pediu que usasse a serra
Pra dividir-te com ele, o fanfarrão..."
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22/02/2018



Nota
*Qual Salomão me pediu que usasse a serra - Alusão ao episódio bíblico do Juizo de Salomão, em que duas mulheres disputavam a maternidade de um um recém nascido acusando-se uma a outra de usurpação. Salomão mandou que um soldado dividisse a criança ao meio com a espada (aqui,figuradamente "serra") A verdadeira mãe, cujo bebê fora roubado durante o seu seu sono pela vizinha que sufocara no leito o seu próprio por acidente, desesperada, gritou: "Não o matem! Deem a ela o bebê!" O rei Salomão então soube que essa era a verdadeira mãe...

A filha pródiga (de Alma Welt)

No bosque das ilusões perdidas *
Encontrei-me em certa ocasião
E perdido o rumo e as saídas
Sentei-me e chorei, não por Sião,

Mas por minha vida àquela altura,
Sem fé, sem rumo, sem um Deus
Que me pusesse de novo na procura
Ou mesmo uma razão para um adeus.

O bosque mesmo já desaparecia
Como a quem sua própria terra arrasa
Quando ouvi uma voz que me dizia:

"Alma, já que não foste nada módica,
Podes voltar agora pra tua casa
E seres de ti mesma a filha pródiga..."

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22/02/2018

Nota
* " bosque das ilusões perdidas"- Alma pede emprestado este belíssimo título brasileiro do filme francês do diretor Jean-Gabriel Albicocco, baseado no romance de título original infeliz:" Le grand Meaulnes"...

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Lições e lembranças (de Alma Welt)

"Que podemos nós fazer diante do mundo
Repleto de maldade e injustiça? "
"Olha dentro de ti a tua preguiça
E se puderes vai mais fundo..."

Assim com meu pai eu conversava
Já que era um agradável moralista
Pois que a alma alguma condenava
Mas as passava em boa revista...

A mim nunca ralhou, era meu fã,
E se a sua ternura me mimava
Me acordava muito cedo de manhã.

Com sua voz de baixo irrompendo
No meu quarto a Nona ele entoava,
Eu mais fundo nas cobertas me escondendo...

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21/02/2018

O País dos Belos Sonhos (de Alma Welt)

As lembranças da infância, recorrentes,
Não cessam de me acompanhar,
E aparecem também as provenientes
De outra dimensão, tempo e lugar.

Temos muitos passados e presentes,
Estou disso há muito tempo convencida,
E vivo por enquanto ou entrementes
Na experiência de um exílio nesta vida.

Daí esta minha eterna nostalgia
Que não há meios e modos de curar-se
E que é a raiz de minha poesia...

"És romântica" (me dizem com espanto),
"Para ti o feio mundo é um disfarce
Do país dos belos sonhos sob um manto"...

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21/02/2018

O que cala um coração (de Alma Welt)

Meu pai dizia "plebe insana e rude"
Se referindo ao nosso bom povão,
E chocada e pensativa nunca pude
Entender muito bem esta noção,

Porque ele era bom e compassivo
No trato pessoal com os peões
E com todo e qualquer outro ser vivo,
Excetuados os bandidos e vilões...

Um dia me pediu, e nunca esqueço,
Que fechasse a porta do escritório
Pois recebia um tipo "faço e aconteço"...

Pouco depois saía pálido o peão,
E aquilo que cortou-lhe o palavrório,
Vi, era o medo que cala um coração...

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21/02/2018

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

O Mau Passo (de Alma Welt)

Queria voltar àquela estaçãozinha
Que se foi, agora sei, não mais existe.
Fechou e era a derradeira linha
Que passava por aqui, tu a cumpriste.

Levei-te já saudosa à plataforma,
A despedir-me de ti entre vapores,
Uma névoa de lembranças que se forma
Quando vou abandonar os meus amores...

E tu me acenaste após o abraço,
Sabendo ambas que foram só delírios
Como as que deram, virgens, um mau passo.

E fiquei a acenar-te aliviada,
Porque agora poderia amar sem lírios,
Sem sustos, sem culpa, sem mais nada...

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20/02/2018

O Cais Perdido (de Alma Welt)

Questionar a existência e seu declínio
Foi-me sempre uma coisa recorrente
Desde que me foi dado o raciocínio
E no auge do poder de minha mente...

Perderei minhas memórias tão queridas
Um dia velha e carente de razão?
Eu que me nutro de meus gozos e feridas
Rumarei a uma implacável escuridão?

Quando medito nisso a voz me treme
E eu, a bordo de uma nave decidida
Me dou conta de que me falta o leme...

E gargalho qual marujo enlouquecido
Que ainda lembra da hora da partida
Os acenos, o apito, o cais perdido...

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20/02/2018

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O Importador (de Alma Welt)

Minha vida é bela, eu reconheço,
Não sei a de vocês, se assim também...
Pois para haver beleza é um começo
O prazer em aceitar o que se tem.

Minha avó assim dizia e me ensinou
Às coisas boas sempre reverenciar
Excetuadas às que o Demo importou
Mas mudou a marca, hora e lugar...

Eu ria e ria com as lições de minha avó
E jamais as haveria de esquecer
Pois quando se ri cria-se um nó.

Sim, a vida é bela, eis seu sentido,
Malgrado o Importador a perverter
Falsificando tudo, o intrometido...

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19/02/2018

domingo, 18 de fevereiro de 2018

A Mariposa (II) ( de Alma Welt)

O medo é nosso triste companheiro
Que nos acompanha a vida inteira,
Uma síndrome perpétua de atoleiro
Para alguns, uma espécie de coleira.

Para mim foi felizmente um aguilhão
Que me impeliu além das minhas forças,
Frágil guria mas de forte coração,
E alguém por certo por quem torças

Porque ser poeta é um desafio,
O mais antigo chamado das estradas
A um coração afeito ao meio fio

Ou mariposa em noites desastradas
(senão borboleta em plenitude),
Que, alada, fiz de mim mais do que pude...

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18/02/2018

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Eu, heterônimo (de Alma Welt)

Confesso, sonhei grande, tola eu era
Fui em busca do meu sonho de guria,
Tão ingênua a perseguir uma quimera
Ser poeta e viver da minha poesia...

Mais tarde descobri que ser poeta
É o mais miserável dos amores,
E a triste razão de tão seleta
É que a fome é o premio dos melhores.

E claro, existem os poetas diplomatas
Que, pobres funcionários de escritório,
Não passam de modestos burocratas.

Mas na dimensão poética, só, viver
Para mim se tornou obrigatório,
Um caminho bem mais digno do ser...

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15/02/2018

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-feira de cinzas (de Alma Welt)

Meu irmão Rodo chegava de ressaca
Na quarta e a custo se esgueirava
Subindo para o sótão quase em maca,
Ajudado por mim que o amparava...

E ele gemia como o arrependido faz,
Maldizendo um amor de Colombina,
Decepção que o amor fútil sempre traz
Pois amor com saideira não combina.

E eu rindo, condoída, perguntava:
Era bela aquela tua bailarina?
E na caixinha de música rodava?

Ele então chorava mais e mais,
Dizendo: Alma, ela era uma menina,
Não parecia ser cruel e foi capaz...

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14/02/2018

Soneto da Quarta-feira (de Alma Welt)

Apreciava sobretudo a quarta-feira
De cinzas e com a súbita tristeza
De quem cai na real ou está na beira,
Como quem para dançar subiu na mesa...

Meu avô boche me dizia: "Ai de ti,
Se colocares a saia na cabeça,
Tendo ingerido champanha ou Parati,
Não esperes que depois te reconheça."

Mas pobre de mim, e quem me dera!
Eu era sóbria, recatada até demais,
E o Carnaval, uma espécie de quimera.

Minha avó dava risinhos de ironia
Pois sabia do meu navio no cais,
Em cuja mesa eu sonhava e escrevia...

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14/02/2018

Velho Tema (de Alma Welt)

"Procurar-se um amor não tem sentido
Pois que amor deve estar dentro de ti.
Deus dá a cada um o que lhe é devido
Se te faltar amor por dentro, não és daqui."

Assim dizia minha avó podando rosas
Com sua vetusta figura de espantar,
Tão curvada e com suas mãos nodosas
Com uma pequena tesoura de podar.

E eu confiava em minha avó em tudo,
Já que ela tinha amado a vida inteira
Aquele velho difícil e carrancudo.

Não procurou o amor e o amor subiu
E o derramou de si sobre a roseira
Toda de espinhos com que Amor surgiu...

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14/02/2018

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A cabrinha valente (de Alma Welt)

Meu pai tinha pistola e espingarda,
Esta, pequena, na parede fixada,
E um dia garantiu-me que a mantinha
Para que, eu quando moça, fosse minha.


Isto me chocava, não entendia
Por qual razão uma arma empunharia;
Impensável um enredo àquela altura
Que comportasse na Alma tal loucura.

Mas uma noite li "Lettres de mon Moulin"
De um Alphonse Daudet, francês querido,
E com a cabrinha resisti até a manhã...*

Mas se venceram os lobos na novela,
Com chifrinhos tendo tanto combatido,
Eu teria uma arma como ela...

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13/02/208

Nota
*E com a cabrinha resisti até a manhã - Alma se refere ao conto "La chèvre de monsieur Seguin", tocante conto das "Lettres de mon Moulin", um clássico de Alphonse de Daudet (1840 — 1897).

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A cruz e as asas (de Alma Welt)

"No Vale de Lágrimas que é a vida
Cada um tem que levar sua própria cruz..."
Assim dizia minha mãe, e eu dividida
Hesitava entre a depressão e a luz.

Meu pai adepto da luzes do saber,
Dizia à minha Mãe: "Para com isso!"
Não ensines a guria a só sofrer,
Sentir tal peso nesse ato submisso..."

"Não lhe acenes com essa abantesma.
Vê, a cruz era objeto de tortura
E nada tem a ver com a Vida mesma."

"Os versos tornarão sua vida leve,
Não vês que a sua alma nasceu pura?
Grandes asas lhe darão na vida breve."

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12/02/2018

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Báh! Amores meus ( de Alma Welt)

Báh! Amores meus, peço perdão
Por tanta independência que mantive
E por pouco tolerar guri mandão
E ser esta poeta que ainda vive.

Gostar de aninhar-me em largo peito
Iludiu alguns de vós por um momento
Quando isso era apenas o meu jeito
De ser mansa e feliz trinta por cento.

Olho agora pra trás, como uma tela,
E minha face desconheço e meu andar
Embora reconheça que era bela...

Então deixem-me sozinha com os meu versos
Mas não me digam que já não sei amar:
Sem amor até os poemas são perversos...

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11/02/2018

Minha pátria (de Alma Welt)

Minha pátria trago em mim em carne viva
E sangra quando a choro pelas noites,
Por toda essa baldada tentativa
De sorrir e libertar-se dos açoites.


Meu país fracassado, tão bonito,
Mas viola embolorada no seu bojo,

De caráter fraco, afeito ao mito
Do gigante que agora me dá nojo.


E me sinto como a mãe trazendo meia
Ao filho delinquente, que aos sussurros,
Lhe pede alguma droga na cadeia..

E penso como ela que ainda ama:
"Só lamento tenhas dado com os burros,
Nem sequer foram na água mas na lama..."


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11/02/2018

O riso que fica (de Alma Welt)

Todo e cada passo e pensamento
Nosso, fica registrado em nossa alma?
Consiste nisso a eternidade do momento
Ou o Tempo escolhe com mais calma?

Quanta ninharia e perda fútil
Da matéria preciosa do minuto
Que parece longo ou breve, até inútil
No silencio pedido por um luto.

O mistério do Tempo, eis o mistério
Maior que a Morte e suas ossadas
Cujo crânio não parece nada sério.

O que resta é oculto em seu sentido
E as órbitas nos miram, esvaziadas,
E só fica de nós o que foi rido...

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11/02/2018

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

De anjos e demônios (de Alma Welt)

Meu pai era austero e carinhoso
Pois comigo ele se identificava
Já que muito de mim ele esperava,
Cada sucesso meu era seu gozo.

Um dia mostrei-lhe um meu poema.
Ele ficou sério e constrangido
Pois que não concordou com o seu sentido
Que colocava em xeque seu sistema.

Nada disse, entretanto, pensativo
E esperou ao todo uns quinze anos
Para questionar-me sobre o assunto:

"Alma, disseste que o pecado é relativo
E acreditas nosso dom, pobres humanos,
Sermos anjos e demônios, tudo junto..."

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09/02/2018

O que disseram as flores (de Alma Welt)

Quanto é bom colher flores no jardim
Já que deixo por momentos inefáveis
As perpétuas doze sílabas contábeis
E tão somente de tratar tanto de mim.

Na sala ponho as flores nos seus vasos
Nos quartos e cozinha, no conjunto,
Que alegria dão em muitos casos,
Exceto os lírios e cravos de defunto.

Mas minha avó Frida disse um dia:
"Alma pare de colher as minhas flores
Que não são passarinhos de gaiola."

"Elas se queixaram que as colhia
E agora a mim gritam seus pudores,
E que nada as obriga a dar esmola..."

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09/02/2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Que belos olhos... (de Alma Welt)

Que belos olhos tinham os meus amigos!
Alguns fortes, uns mais doces, uns atentos,
Revelavam-se às vezes em perigos,
E regiam-me alguns dos movimentos.

Quanto aconcheguei suas belas frontes
De macias cabeleiras, de bons cheiros!
Uns como que fluindo como fontes,
Uns como milharal, outros trigueiros...

Quanto se quer partir quando se é moço!
Alguns foram parar no fim do mundo
Mas outros conheceram o fim do poço...

Alguns deles se perderam, não voltaram;
O pálido era antes rubicundo,
Alguns só reconheci quando choraram...

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07/02/2018

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Corretora (de Alma Welt)

Guardar as emoções na mente apenas,
Então mantendo o coração à parte
Das alegrias fáceis e das penas,
Eis aí um segredo para a arte...


Minhas dores não distingo da poesia
E por isso as faço interessantes
Quanto uma grande ode à alegria
Ou o antigo lirismo dos amantes...

Então não és como todo mundo?
Me perguntam os de coração partido
Que querem me ver também no fundo...

Mas, talvez como poeta e fingidora,
Desta vida como simples corretora
Sofro muito mais que o consentido...

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05/02/2018

Sonho mau ou A Floresta do Não Sei (de Alma Welt)

O nome do castelo sempre esqueço
Onde, pasmem, sou princesa encantada.
Também perdi o rumo e o endereço
E o caminho que refiz não leva a nada.

Estou perdida na Floresta do Não Sei
E me sinto levemente esfarrapada.
Esta noite sobre a ervilha dormirei?
Tal proeza não é de minha alçada...

Numa nau de súbito embarcada
Deito cartas para ver se me descubro
Ou saio deste sonho de enrascada,

Mas a nave em que me vejo a bordo
E o território obscuro que não cubro
Ainda são os mesmos quando acordo...

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05/02/2018

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Aonde Vais? (de Alma Welt)

"Aonde vais?" um sitiante perguntou-me,
Vendo-me perdida e andarilha
A caminhar em círculos na coxilha
E para a sua casa convidou-me.

"Aonde vais, bom velho?" perguntei
A um desnorteado caminhante
Como eu mesma fui e me lembrei
De quão perdida estive e hesitante...

Perdidos, na verdade algo nos junta
Abandonados nesta Terra, forasteiros
À procura de caminhos verdadeiros.

Até ao Cristo caminhante, esta pergunta
Fez Pedro velho, e ensejou melhor escolha...
A cada um sua cruz, novinha em folha.

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04/02/2018

Nota

* ... ao Cristo caminhante esta pergunta/ Fez Pedro, velho... - Alma alude à seguinte lenda cristã: Durante o massacre dos cristãos no Coliseu, ordenado por Nero, o apóstolo de Cristo, Pedro, bastante velho, estava entre eles pregando e consolando-os nas catacumbas antes que fossem presos e martirizados . Então, os fiéis imploraram a ele que fugisse, pois era o último apóstolo, testemunha viva do Mestre, e outros tantos precisariam de sua palavra. Então Pedro cedeu e se esgueirou à noite para fora dos portões de Roma e começou a caminhar na Via Ápia, se afastando da cidade. Eis que no começo do caminho parou quando avistou ao longe um andarilho que caminhava na estrada em sua direção. Quando este chegou bem perto, Pedro reconheceu o próprio Jesus, e surpreso perguntou-lhe em latim: "Quo Vadis, Domine? " ( Aonde vais, Senhor?). E Jesus respondeu-lhe: "Vou a Roma ser crucificado novamente, visto que abandonas meu rebanho." E desapareceu. Então Pedro voltou pela estrada e logo nas portas de Roma foi detido pelos pretorianos de César, e identificando-se foi imediatamente preso e condenado à crucificação. Pedro então pediu que fosse crucificado de cabeça para baixo, no que foi atendido, porque disse "não ser digno de receber o martírio idêntico ao do Mestre"...

sábado, 3 de fevereiro de 2018

O Enigma de um Dia (de Alma Welt)

Como no dia dos meus anos ser feliz
Como no tempo de uma quase perfeição
Quando o sorriso era a simples condição
Do projeto de vida que me fiz:

Se eu pudesse sempre rir me bastaria
Pois seria sinal de estar acima
Do obscuro enigma de um dia
Que eu solveria, assim, como uma rima.

Eu singraria mares, desfaria teias
Sendo pequena nau de volta ao lar
E imune àqueles cantos de sereias...

E não seria esta simples pretendida
Assediada e renitente no tear
Pelos versos, qual se isto fora a vida...

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03/02/2018

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Farelos sobre a mesa (de Alma Welt)

Quisera que uma festa a vida fosse
De retorno dos amigos tão dispersos,
Agora em torno e esbanjando versos,
Depois silencio (eu imitando tosse):

"Meus amigos, façamos novo brinde!
Todos os maus enfim foram recolhidos;
Vós, os bons, foram, pois, os escolhidos,
Bebamos, e aos Novos Tempos vinde !"

Eis como penso um reencontro alegre
Com esta tola alma idealista
Que evitava engolir gato por lebre...

Mas olho em torno a mesa desolada,
Com farelos de pão, única pista
De um café da manhã, de abandonada...

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02/02/2018

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O Jardim de minha avó (de Alma Welt)

No jardim de minha avó eu aprendia
Muito mais do que na escolinha
Pois sua esperteza surpreendia
A pura ingenuidade que era minha.

Mas sua malícia aberta, sem pudor,
Não logrou manchar minha pureza
E logo transformou-se nesse humor,

Minha carta da manga, sobre a mesa...

Essa ironia me manteve a salvo, sim,
De sujar minhas mãos na porcaria
Como as luvas que ela usava no jardim

E me deu certa distância, de quem sonda
Com um olhar de oblíqua simetria,
E um sorriso, assim, de Gioconda...

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01/02/2018

A Estratégia da Mentira (de Alma Welt)

Firmei meu compromisso com a verdade
Quando ainda bem guria em meu jardim,
Sem nenhuma consciência da maldade
Nem sequer da porção dela que há em mim.

Depois vi que a maldade e a mentira
Se juntam amiúde em aliança
Pra que de uma a outra se transfira
Algum peso pro equilíbrio na balança.

É por isso que a Justiça, sendo cega
Muitas vezes é assim ludibriada
Ou hesita em pegar a sua espada.

Pra isso abro mão de minha maldade
E garanto que a mentira não me pega,
Reduzida que já foi, à sua metade...
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01/02/2018

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A dama da paisagem (de Alma Welt)

                                         A dama da paisagem- pintura de Guilherme de Faria


A dama da paisagem (de Alma Welt)

Tenho muito a sensação de estar vagando
Em território alheio, e inoportuna
Com a minha estranheza quando ando,
Branca, ruiva, solitária, antiga e una.

Levo sempre por disfarce meu cãozinho
Não só pra me dar ares mais domésticos
Mas pra no âmbito ficar do comezinho
Malgrado esta beleza sem cosméticos...

Sou essa pálida dama da poesia
Celebrada em nostálgicas pinturas
Que refletem minha própria nostalgia,

Já que fora do meu tempo e ambiente
Vivo num limbo com as outras criaturas
Que unir ousaram o coração e a mente...

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31/01/2018

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Uma vez (de Alma Welt)

Uma vez senti por perto a Tentação
Rodeando a minha alma imortal,
Que nem mesmo de
 poder ou ambição
De prata e ouro ou translúcido cristal,

Mas volúpia de voragem, vã vertigem
Da perfeita paz, supostamente,
Num momento infeliz da própria mente
Chamando aquela branca e falsa virgem...

Já pendia a corda em laço no galpão
E a banqueta colocada bem debaixo,
Faltava mesmo era a final disposição.

Então num grito: "Vade retro, tentadora!"
Voltei ao simples nicho em que me encaixo
E enchi de flores minha caixa de Pandora...

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30/01/2018

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A Volta aos Risos (de Alma Welt)

Voltar àqueles risos de alegria,
Tão simples, espontâneos, sem malícia,
De olhinhos brilhantes de delícia
Por coisas singelas que ainda havia...

"Caímos na real. Não é mais possível...
Por que queres, Alma tola, retornar?"
O riso é imaterial, mas perecível
Como os nossos sonhos são ao acordar...

Vê, a tua velha casa inteira estala
E geme e suspira em agonia,
Cheia desse tempo que não cala.

"Põe fogo em tua casa, dentro em ti!
Liberta-te!" diz a voz que não havia
Quando o riso era real, e tanto o ri...

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25/01/2018

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O Eterno Retorno (V) (de Alma Welt)

Tive sempre a sensação de estar voltando
Para um ponto de partida original
Acabado, organizado e já final,
Em que nada é o "se", mas simples "quando".

Conhecer, sempre me foi "reconhecer"
E inteirar-me foi sempre "relembrar";
E me perdoem pretensiosa parecer
Mas Platão já nos fazia isto notar...

Voltar ao lar foi sempre a minha meta,
Sem bússola, perdida pelo mundo,
Mas com uma saudade como seta.

E quando ao longe avistei meu casarão,
Murmurei num suspiro, o mais profundo:
"Posso morrer, voltei de mim ao coração."

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19/01/2018

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O país do limbo eterno (de Alma Welt)

Eu vivo no país do limbo eterno
Onde nada chega a ir ao fundo...
Não me refiro ao nicho onde hiberno,
Um dos mais formosos pagos deste mundo... 


Mas a uma pátria, além, de fancaria,
Onde nada afinal se concretiza
Não estas flores na minha pradaria
Ou a relva que a geada cristaliza,

Nem ao montado peão jogando o laço
Ou à sua boleadeira em extinção
Só pra efeito de performance de feira,


Nem da varanda a olhar (o que mais faço),
O Poente sem igual, que mais não queira,
A promessa de Deus, da perfeição...

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17/01/2018


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Pequenos fogos (de Alma Welt)

Meu mundo é o dos versos ritmados,
Acidentado universo de perigo
Alcançando momentos inspirados
Ou caindo no vórtice do umbigo.

É preciso savoir-faire e vigilância
Para evitar lugar comum e o banal,
E talvez um pouco aquela ânsia
De esconder um bem possível lado mau.

Mas quanta aventura num soneto!
Sequer sabemos o que mais dará no fim,
Dourada chave do último terceto...

Então, tudo se faz luz, parte do Logos
Que a própria Divindade pôs em mim,
Se não a Luz Maior, pequenos fogos...

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15/01/2018

À estrela do mundo (de Alma Welt) (para Clarisse Lispector)

Ó amor, quisera amar como nas lendas
Dos que davam suas vidas pelo amor
E enfrentavam as feras pelas rendas
De uma donzela vezeira de se expôr...


E ser eu a donzela desses versos
Naquela torre cercada de floresta,
A mercê de cavaleiros controversos,
Só um capaz do tal beijo que presta.

Mas que sei eu dos tempos de nobreza
Se nasci num casarão já decadente
De família não fidalga, mas burguesa?

Assim, só me restava reinventar-me,
Ser eu mesma a cigana e a cliente,
E à estrela do mundo também dar-me...

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15/01/2018

domingo, 14 de janeiro de 2018

Deem-me Tempo (de Alma Welt)

Minhas fontes vêm todas da memória:
Do passado vem meu Eu cristalizado,
De onde fruo do presente toda a glória,
E o sentido oculto, ou disfarçado...

"Então não vives o Presente, cara Alma?"
Pergunta um leitor meio apressado...
E eu respondo com a costumeira calma:
"Não, não vivo. Tua pergunta é já Passado."

Deem-me Tempo, ó coisas e fatos,
Pra digerir vossas tramas e delícias
E os coelhos que saíram desses matos...

Pois tudo o que depois de acontecido
Deixou os seus sabores, tons, malícias,
É Poesia e não pão amanhecido...

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14/01/2018

A princesa meio-quilo (de Alma Welt)

Eu, guria, minha avó recomendava:
"Alma minha, seja sempre recatada
E mantenha tua porta com a trava,
Olhos baixos quando passes pela armada." *

"Olha, os homens estão sempre numa guerra,
Cada donzela é como aldeia sitiada...
Então te valorizes como à terra
E não te entregues assim de mão beijada."

E eu ria, ria ouvindo aquilo,
Qual se estivesse nua num castelo
E fosse uma princesa meio-quilo...

E não tendo me levado muito a sério,
Tornei-me, não princesa, ao percebê-lo,
Mas poeta, o que é bem maior mistério...

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14/01/2018


Nota
*Olhos baixos quando passes pela armada - A avó da Alma faz alusão ao famoso poema medieval português de autoria anônima " A Donzela Que Foi à Guerra", que certamente inspirou Guimarães Rosa para o seu personagem Diadorim, do "Grande Sertão: Veredas." ( "Venham armas e cavalo e serei filho varão. /.... Quando passar pela Armada, porei os olhos no chão/ .....Senhor pai, senhora mãe, grande dó de coração/ Os olhos de dom Martinho são de mulher, de homem não./Convidai-o, voz, meu filho.... ")

sábado, 13 de janeiro de 2018

Alma no facebook (de Alma Welt)

De perder falsos amigos sou vezeira,
E me perguntem se sequer me importo...
Se ainda fosse por falar muita besteira!
Na verdade, muitos outros também corto.

"Olha, Alma, assim vais ficar sozinha!"
(ouço dentro de mim uma vozinha)...
"A casa das centenas não avança ,
A cada um que ganhas outro dança."

Então vejo que o mundo virtual
É talvez muito mais cru e verdadeiro
Que as antigas picuinhas de quintal.

E me debruço sobre o grato facebook
Como outrora sobre o meu diário inteiro,
Onde só eu saber de mim era meu truque...

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13/01/2018



Nota


Sem dúvida um momento inusitado da Alma, já que ela foi sempre atemporal em seus sonetos. Mas falar de sua própria atuação no facebook... por essa eu não esperava! rrrrsss (Guilherme de Faria)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

De repente (de Alma Welt)

De repente olhei assim ao meu redor
E me vi no deserto da Esperança
Onde rasteja o Mal e o Desamor
E temos medo da noite, qual criança.

Mas o mundo era o mesmo... O que havia?
Na verdade era uma guerra escondida
No dia a dia até no íntimo da vida,
E rubro sangue nas almas escorria...

Nossas mãos como inimigas degladiam,
Direita e esquerda, num funil,
Enquanto nosso tronco asfixiam...

E vi que o homem do homem é o tormento
Desde que o fumo de um ao céu subiu
E o do outro foi levado pelo vento...

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12/01/2018


Nota
*Desde que o fumo de um ao céu subiu/
E o do outro foi levado pelo vento. - alusão ao episódio do Gênesis, da Bíblia, em que Caim oferece um sacrifício de um fruto da terra a Deus (provavelmente queimando ervas), mas Deus não aceitou a oferenda (o fumo não subiu para o céu) mas aceitou de Abel "as primícias de seu rebanho e a gordura deste". Então, Caim enciumado matou seu irmão Abel. Quando Deus perguntou a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim respondeu: "Acaso sou o guardião do meu irmão? " E Deus o amaldiçoou... Eis aí a origem de toda a discórdia entre os homens.

Ó meus amigos (de Alma Welt)

Ó meus amigos, mais um ano com vocês...
Eu que até pensava em ir embora,
Para a vizinha Vila Nova das Mercês
Ou para a mais distante Bora Bora...

E fico, fico sempre até o final...
Sou aquela que fica na estação
A acenar pro trem em comoção
Na plataforma eternizada do real...

Estou cansada, amigos, de ver claro
A ponto de enxergar o trem fantasma
Que me irá levar sem cobrar caro,

Quando meu peito cheio de ar fecundo
Não quererá fechar, se não de asma,
Pelo apego que tenho a este mundo...

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12/01/2018

sábado, 6 de janeiro de 2018

Propósitos para o novo ano ( de Alma Welt)

Como todo novo ano que começa
Reúno meus melhores pensamentos,
Conquanto intenções boas não meça,
Sei que delas é o Vale dos Tormentos...

Neste ano não darei sequer conselho
Aos amigos que perderem o juízo,
Evitando, pois, meter o meu bedelho
Ou no gato sugerir botar um guizo...

Mas palavras de consolo, isto não nego,
Que embora seja grande pessimista
Meu coração mole logo entrego...

Dos sonhos despojados ou de intrigas
Consciente de estar na mesma lista,
Hei de unir minhas cigarras e formigas...

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06/01/2018


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Os Conselhos de Meu Pai (de Alma Welt)

"Seja honesta, justa e verdadeira,
Mas não se esqueça de ser boa.
Eis só o que é preciso, mais não queira,
Não vieste ao universo bela à toa."

"Se tiveres ambição, vai com calma,
Esta pode te levar a correr muito.
Alguns deixam para traz a própria alma
Numa curva perigosa do circuito..."

Assim dizia meu pai, se bem me lembro,
Comigo sentadinha em seus joelhos,
E se não me engano era Dezembro...

Mas do que disse, e me ficou do conselheiro
Não foram na verdade os bons conselhos,
Mas meu toque em sua barba, o tom e o cheiro...

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01/01/2018

Réveillon (de Alma Welt)

Chegamos afinal no fim do ano,
Nada levava a crer (cá entre nós);
Estivemos navegando a meio pano
Num oceano só de dúvidas, atroz.


Mas, marinheiros, fizemos nossa parte
Acorrentados e remando qual galés
Em calmarias ou abalroo de combate,
E estamos já com água pelos pés...

Mas pensando bem, esta é a vida.
Não foi diferente pra minha avó,
Sorridente e disposta à acolhida...

E ao chegar ao minuto da passagem
Que seja mais pra cima e não ao pó
E sejamos pleno rio e não a margem...
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31/12/2017

sábado, 30 de dezembro de 2017

O Lobo no armário (de Alma Welt)

O poeta é um enganador quase perverso,
Reverte suas pegadas de tal sorte
Que como um perseguido, faz o inverso:
Indo ao sul mais parece ir ao norte.

As palavras são essas impressões,
Deixadas no musgo das florestas
Apontando à ilusórias direções,
Enquanto escapamos pelas frestas.

Nunca vá para onde aponta o teu poeta,
O seu recado é pra ser lido ao contrário
Como um espelho, não como uma seta,


E a cada olhar veremos nova ruga.
Afinal se trata sempre de uma fuga

Da Morte, ancestral lobo no armário...
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30/12/2017

sábado, 23 de dezembro de 2017

A Gargalhada (de Alma Welt)

                                 A Gargalhada- desenho de Guilherme de Faria, 1967

A Gargalhada (de Alma Welt)

E vi aquela imensa gargalhada
Vir rolando como onda pela sala
Até formar espuma concentrada
E morrer com um vazio que não cala.

Eram os homens fúteis e eu os via
Loucos para rir a qualquer hora
Já que a estupidez os denuncia
E seu riso sem sentido corrobora.

Não rirei convosco, ó gargalhantes,
Nem mesmo que a piada seja boa,
Que alegria verdadeira assim não soa.

Um som de cristal, um brilho vago
De dentes modestos, hesitantes,
Eis o riso da alma que em mim trago...

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23/12/2017


Nota
A Gargalhada- desenho de Guilherme de Faria, 1967 coleção do MAM de São Paulo (este desenho em forma de vinheta, a pincel, foi feito como ilustração para o conto " A Gargalhada " de Luigi Pirandello, em tradução primorosa do Alfredo Bosi, publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, em 1967, e décadas depois doado por aquele jornal ao MAM em cujo acervo agora se encontra junto com outras obras do artista.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Retorno a Wuthering Heights (de Alma Welt)

Retorno ao meu Morro dos Ventos
Conquanto não haja morro mas planura.
Uivantes minuanos de meus tempos
Esperavam por mim, que volto pura.

Sou a Cathy desta terra do meu pampa
E como ela, volto ao que se adora
De tanto amor cheia até a tampa
E aberta como caixa de Pandora...

E te adentro, ó casarão velho que estalas
Aos meus leves passos como outrora
E levantas teus espectros das valas...

Eu, Anita e Giuseppe, entrelaçados,
Nos abraçamos no turbilhão de agora:
Nossos cumes estão longe de alcançados...

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21/12/2017


Nota
*Wuthering Heigths - titulo original do maravilhoso romance O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (era o nome da propriedade da família de Cathy Earneshaw, depois Cathy Linton, a heroína do romance, amada por Heathcliff...

(Nos anos 90 eu fiz uma litografia com esse título: "Retorno a Wuthering Heights". Mas infelizmente não fiquei com nenhum exemplar para postar agora como ilustração a este soneto da Alma). (Guilherme de Faria)

O bem vivido (de Alma Welt)

Não nos desejo muito para a frente
Mas que tenhamos muito bem vivido,
Aproveitado ao máximo o presente
E não só "o que queríamos ter sido".

Foste feliz, meu amigo, te cumpriste?
A vida nos devolve um bom passado
Para degustarmos como alpiste
Na pequena gaiola de alambrado...

Olha, a vida é o que foi, não que será,
O futuro é uma cigana charlatã
Que as cartas corta, lança e Deus dá"...

Se não soubeste viver, agora é tarde,
Nem sequer desejarei-te um amanhã,
Que desperdiçarás como um covarde...

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21/12/2017

Velhos amigos (de Alma Welt)

Vejo alguns velhos amigos se acabarem
Derrotados por um sonho que os ilude,
Batendo as teclas até se esfacelarem
Dos equívocos de nossa juventude...

Quanta coisa já não é mais o que era
Ou perdeu o sentido com o vento
Por sua natureza de quimera
E seu canto de sereia longo e lento...

E eu baixo os olhos constrangida
Com imensa pena dos amigos,
Alguns quase reduzidos a mendigos.

Quisera reuni-los, e sem mágoa
(todos demos com os nossos burros n'água)
Combinar com os amigos nova vida...

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21/12/2017

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

(O Jardim das Aflições" (de Alma Welt) Para o Mestre Olavo de Carvalho (republicando)

Estamos à deriva em meio a brumas,
Se perderam nossos sonhos superiores;
Nosso barco é um circo dos horrores,
As melhores ilusões viram espumas...

Marujada, quem quer ser o capitão?
Nosso último se foi pela amurada
E só de noite aparece no porão,
Onde os ratos construíram sua morada...

Contra-mestre, avisto terra no horizonte!
Só pode ser a tal Ilha dos Conflitos,
Onde dizem que nem com Deus não conte.

Vamos lá, ao Jardim das Aflições!
Beber da água amarga dos aflitos,
Sem um consolo mas repleta de lições...

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19/11/2017

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Meu Natal da Infância (de Alma Welt)

Depois de saber de tudo um pouco,
Buscando a compreensão universal,
E mesmo tendo lido como um louco
Ainda ingenua esperar pelo Natal...

Voltar ao lar, que nem "devera" ter saído,
Com aquela imagem de guria
De pé diante da leda maravilha
Que é aquele pinheirinho revestido

Com a estrela no topo, a de Belém,
E aqueles mil presentes em pacotes,
Que ainda nem sabemos para quem...

Destruir o que a memória ainda tece,
Os anos não puderam, nem as mortes:
O meu Natal da infância permanece...

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06/12/2017

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O sonho do real (de Alma Welt)

Sonhar com o real é meu ofício,
Não propriamente os "Sonhos da Razão",*
Que estes produzem um malefício,
Como queria o grande Surdo da Mansão. *

Meus sonhos são singelos, literários,
Não lembram os anseios de homens fortes,
Rotas falsas, logo seus itinerários
Ou seus amores francos, sem "transportes".*

A Arte é mais real que a realidade,
Foi por isso que a concebeu o homem,
E pra ter algum controle da maldade...

Quanto a mim sonho a beleza com humor,
Ainda mesmo que por cínica me tomem
Brinco de amar meu verdadeiro amor...

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01/10/2017

Nota
*...o grande surdo da mansão - Alma se refere ao grande pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes, que vivia na chamada "Mansón del Sordo" (por ter ficado surdo na velhice) cujas paredes encheu de seus quadros da "Fase Negra", com temas escabrosos de feitiçaria e até o horrendo canibalismo de Cronos. Quanto aos * "Sonhos da Razão", é alusão à gravura de Goya que ostenta a famosa frase: "El sueño de la razón produces monstruos".

*..."sem "transportes". - antigamente, em linguagem poética se falava em "transportes de amor", os arroubos dos apaixonados...

A Lição (de Alma Welt)

Pensei ter obtido o dom das fadas
Por ter nascido em berço esplêndido
E muito bela também, ruiva sem sardas,
Pecando cedo sem ter me arrependido.

Com tal orgulho ingênuo fui crescendo
Perdoada de antemão pelo bom Deus,
Pois as bençãos sobre mim e sobre os meus,
Visíveis, eu sabia e ia vendo...

Mas o Senhor quis dar-me uma lição
E fez-me uma sonetista desde cedo,
Incapaz para qualquer uma outra ação,

Só contar sílabas, colher flores no jardim,
Como se o mundo fosse bom e ledo,
Porquanto dói, que assim o é só para mim...

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01/12/2017

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Julgamentos (de Alma Welt)

Que a vida me permita o bom julgar
Já que tudo são escolhas judiciosas,
O bom Deus o livre arbítrio nos quis dar
Nas nossas fúteis causas pretensiosas.

Mas Deus não me permita julgar outrem
Sem antes muito olhar meu próprio rabo.
Nossa vida, dizem, passa como um trem,
Quer embarques ou o percas no lavabo.

Tudo tem sua hora marcada, seu lugar,
E não temos em geral segunda chance.
Também nada vem de graça, nem o lanche.

Acho que devo ir parando por aqui,
Noto em mim uma tendência ao "popular":
Tantos chavões nunca outrora cometi...

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29/11/2017

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Para amar a Alma (de Alma Welt)

Não temais, meus amores, meu mistério,
Embora digam que deveis temê-lo...
Se meu coração é um eremitério,
O é em plena primavera de degelo.

Só acolho o solitário, é bem verdade.
Aquele de exigente natureza,
Ou o que renunciou à sociedade,
Moderno Prometeu de alma presa.

Não quero o bom guri, eterno infante
Que só pensa na vida em divertir-se;
Devo, pois, evitá-lo como amante...

Então venha, meu amor, mas reverente:
Meu coração é tal como a deusa Circe,
Tudo que toca é seu eternamente...

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28/11/2017

sábado, 25 de novembro de 2017

Sem restauro (de Alma Welt)

Não tiraria uma vírgula sequer,
Dos meus erros e acertos nesta vida.
Também não me prevalece ser mulher
E com esta dupla alma dividida.

Quê dizes? De nós, Alma, ocultas algo?
"Não" (eu respondo). "Duplos somos,
Um de nós raposa e o outro galgo,
Este a perseguir alguém que fomos."

Anima e animus (disse o mestre)
Em perpétuo convívio conturbado,
Ou em harmonia, frágil e equestre:

Sim, cavalo e cavaleiro, não centauro.
Podemos ir ao chão, vidro rachado,
E, portanto, impossível de restauro...
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25/11/2017

domingo, 19 de novembro de 2017

Lições do abismo (de Alma Welt)

Já não temos mais consolo nem perdão,
Estamos fritos, ferrados e mal pagos
Como diria o povo simples, com razão,
Já não cabem panos quentes nem afagos.

Medea exclama: "Tudo está perdido!",
Com fogo no palácio, os filhos mortos,
Quando já nem procuramos nossos portos,
Na esperança de algum novo sentido.

Quê resta então? Agarrados num arbusto
De amoras na beira de um abismo
Com um tigre a acrescentar ao nosso susto,

Só nos cabe colher uma ou duas frutinhas
E comê-las a esperar um novo sismo,
Ou aprender a agarrar como as gavinhas...

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19/11/2017

"O Jardim das Aflições" (de Alma Welt) Para o mestre Olavo de Carvalho

Estamos à deriva em meio a brumas,
Se perderam nossos sonhos superiores;
Nosso barco é um circo dos horrores,
As melhores ilusões viram espumas...

Marujada, quem quer ser o capitão?
Nosso último se foi pela amurada
E só de noite aparece no porão,
Onde os ratos construíram sua morada...

Contra-mestre, avisto terra no horizonte!
Só pode ser a tal Ilha dos Conflitos,
Onde dizem que nem com Deus não conte.

Vamos lá, ao Jardim das Aflições!
Beber da água amarga dos aflitos,
Sem um consolo mas repleta de lições...

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19/11/2017

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Às claras (de Alma Welt)

Mais tarde desceria à profundeza
Do abismo de minha própria alma,
Coisa que uns percebem com clareza
E outros experimentam como trauma.

Corresponde àquela selva escura
Que o bardo florentino descrevia
Tendo perdido a verdadeira via,
Adentrando a porta dos sem cura...

Mas ao chegar num certo turbilhão
E tendo conversado com a Da Rimini
Que continua voando desde então, *

Eu preferi voltar e amar às claras
Nada como quem desfila de biquini
Mas nua, sem pudores, dando as caras...

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15/11/2017

Nota
*Mas ao chegar num certo turbilhão/
E tendo conversado com a Da Rimini/
Que continua voando desde então. -
Na Divina Comédia de Dante Alighieri, o bardo florentino na sua travessia do Inferno guiado pelo poeta romano Virgílio, atravessa um círculo onde estão as almas dos amantes clandestinos, levados eternamente abraçados, sem pouso, num turbilhão sem fim. Ali estava a alma de Francesca Da Rimini, com seu cunhado e amante Paolo Malatesta, e esta contou ao poeta a história de seu amor e sua desgraça, assassinado que foi o casal pelo marido corcunda de Francesca, Giovanni Malatesta, que os pegou em flagrante.
Alma sugere que visitou como Dante o Inferno e conversou também com a alma de Francesca da Rimini, tantos séculos depois de Dante, já que os suplícios do Inferno são eternos...

A Casa do Enforcado (de Alma Welt)

O casarão da infância, misterioso,
Continha lembranças de outra era,
E mesmo de um evento pavoroso
Que as paredes recobria como hera.

No sótão houvera um enforcado,
Da trave do telhado pendurado,
Com a banqueta tombada, o chimarrão
Esparramado e fumegante pelo chão.

Valentim, antigo proprietário, *
Pelo seu gosto das cartas arruinado
Preferiu a saída pelo armário...

E eu, guria, aquilo tudo ouvia
E o via de bombacha, ataviado,
Na vida e na corda em que pendia...

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15/11/2017

Nota
* Alma, no seu romance autobiográfico A Herança, se refere a este episódio real narrado por seu avô Joachim Welt, que adquiriu a velha estância Farroupilha (da qual mudou o nome para Santa Gertrudes) do seu último herdeiro, Valentim Ferro, de antiga família gaúcha e que arruinado pelo seu vício do poker viu-se forçado por imensas dívidas a vender ao "boche" (alemão) arrivista, a estância e seu casarão.. No dia seguinte à passagem da escritura, o velho Welt o encontrou todo ataviado, de bombacha bordada, botas, faixa na cintura com punhal de prata atravessado, lenço vermelho no pescoço e chapéu de aba dobrada na cabeça, enforcado por laço de couro na trave do sótão, com a banqueta caída e a bomba e a cuia do chimarrão esparramado ainda fumegante (!!) pelo assoalho... Essas coisas enchiam a imaginação da guria, futura poetisa daquele pampa cheio de assombros e mistérios.

Ricordanze (de Alma Welt)

Eu tenho até vergonha da saudade
Que me causa o recordar da infância,
Malgrado uma ou outra circunstância
Menos feliz, ou eventual maldade.

Tal era o meu mundo, e me conformo.
Também nunca blasfemei contra a vidinha.
Perguntada o que fazia na escolinha,
Disse: "Eu merendo, brinco e "dormo"...

Era plena, feliz e até sabia...
E isso me dava aquela aura
Que (alguns afirmavam) me envolvia...

E cresci entre flores e pastagens
Cuja lembrança ainda me restaura,
Mesmo agora, cercada de bobagens...

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15/11/2017

Ricordanze (by Alma Welt)

I'm ashamed of the longing
That causes me to remember childhood,
In spite of either circumstance
Less happy, or maybe evil.

Such was my world, and I am satisfied .
I have never blasphemed the life.
Asked what I was doing in the school,
Said: "Eating, playing and sleeping "...

I was full, happy and even knew
And that gave me that aura
That (some claimed) involved me ...

And I grew up among flowers and pastures
Whose memory still restores me,
Even now, surrounded by nonsense ...
.
11/15/2017

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Palavras à Realidade (de Alma Welt)

Realidade, quanto eu vos venero,
Perseguindo-vos em bruma persistente,
Tateante como o cego Homero,
Nosso ponto comum a toda gente...

Também eu pra captar-vos faço versos,
(e há quem diga que só amo a fantasia!)
Com o palpável, sabeis, não tergiverso,
Jamais sonhei fugir para Utopia...

Pois confiante na beleza do real
Prosterno-me aos pés da Natureza
Mesmo quando se apresente em areal.

Mudar o vosso mundo jamais quis,
Senhora, este pecado, e a avareza,
Não pertencem à breve lista que me fiz...

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13/11/2017

domingo, 12 de novembro de 2017

A Chave (de Alma Welt)

"Não esperar do mundo, eis o segredo
Para se evitar amarga frustração.
Espere de si mesmo, acorde cedo,
Depois faça em casa a sua lição."

Assim dizia meu pai, bom pessimista,
Solitário como uma soberba ilha
Apesar de exemplar pai de família,
E malgrado a tendência fatalista.

Assim criada, eis a chave dos meus versos
Que cumprem à risca os mandamentos,
E guardam uma surpresa em passos lentos.

Sim, espero a resposta sem pergunta,
Que é a graça de meus sonhos dispersos,
E que só o derradeiro verso junta...

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12/11/2017

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O Jogo (de Alma Welt)

"A vida é aventura, puro acaso,
Como um jogo de dados permanente,
E não porto seguro, sem atraso,
A que chegas pura e simplesmente... "

Assim dizia minha avó plantando flores
Enquanto eu, curiosa, a observava
A formar um certo código de cores
Que parecia desmentir o que falava...

Então ali percebi, a certa altura,
Existe um jogo, sim, mas só de cartas,
Num balanço entre a astúcia e o acaso,

Com a ajuda das Musas do Parnaso,
Saber blefar, manter a cara dura,
Num jogo com a Moira antes que partas...

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30/10/2017

Manhã nublada (de Alma Welt)

Hoje o dia amanheceu triste e nublado
Como se as vidas nossas lhe pesassem,
Ou ainda não estivesse acostumado
Que suas próprias horas venham e passem.

Então eu me remonto àqueles dias
De minha meninice, em minha mente,
Em que nem precisava de poesias
Pois a vida era bela o suficiente...

Quanto esforço faço, na verdade,
Para conservar a alma alegre
Sem trocar meu belo gato pela lebre...

Então de novo olho o dia e agradeço
À manhã triste e sua generosidade
Pelo o que possa trazer que não conheço...

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30/10/2017

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Turista em Babilônia (de Alma Welt)

Imersa em falsas circunstâncias
Me vi de repente em pleno mundo
Cercada por ânsias e ganâncias
Das quais não avistava nem o fundo.

Dentro da grande Paulicéia estava eu
Como uma turista em Babilônia
Ou no Egito sem um José judeu,
Pobre bebê despencado da cegonha.

Eis que vi o mundo humano claramente
Mas ele era confuso, borbulhante,
Como um caldeirão efervescente...

Voltei ao meu jardim e à minha varanda,
E a mirar o poente deslumbrante...
Bah! O mundo? Já sei como ele anda...

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26/10/2017



Translation...

The Tourist in Babylon (by Alma Welt)

Immersed in false circumstances
I suddenly found myself in the middle of the world
Surrounded by cravings and greed
Of which I could not even see the bottom.

Within the great Paulicéia I was
As a tourist in Babylon
Or in Egypt without a Jewish Joseph,
Poor baby falling off the stork.

Behold, I saw the human world clearly
But he was confused, bubbly,
Like an effervescent cauldron ...

I went back to my garden and my balcony,
And looking at the stunning sunset ...
Bah! The world? I already know how he's doing ...

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10/26/2017

Free transliteration in rhymes:

The Tourist in Babylon (by Alma Welt)

Immersed in false circumstances
I suddenly found myself in romances
Surrounded by cravings and greed
Of which I could not even seed

Within the great Paulicea as an Alef
Or as a tourist in Babylon
Or in Egypt without a Jewish Joseph,
Baby falling off the stork for now on.

Behold, I saw the human world clearly
But confused, bubbly, I met
As an effervescent cauldron, or nearly ...

I went back to my garden and my balcony,
And looking at the stunning sunset ...
Bah! The world? I already know its agony.

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10/26/2017


Tradução literal da transliteração livre em rimas:

A turista na Babilônia (por Alma Welt)

Imerso em circunstâncias falsas
De repente me vi em romances
Rodeada de desejos e ganância
Os quais eu não podia nem semear

Dentro da grande Paulicea como Alef
Ou como turista na Babilônia
Ou no Egito sem um Joseph judeu,
Bebê caindo da cegonha, por enquanto.

Eis que eu vi o mundo humano claramente
Mas confuso, borbulhante, eu conheci
Como um caldeirão efervescente, ou quase ...

Voltei para o meu jardim e minha varanda,
E olhando o pôr do sol deslumbrante...
Bah! O mundo? Eu já conheço sua agonia.



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26/10/2017

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O fogo e a Luz (de Alma Welt)

Para ser merecedora de minha alma,
Atenta à sua provisória condição
De empréstimo ao pobre coração,
Tentei mantê-la doce, pura e calma.

Quantas faltas, pecadilhos, devaneios,
Entretanto esta minha alma cometeu,
Alvo de tentações por tantos meios
Desde o fogo que ganhou de Prometeu.

Perdoai, Senhor, arcaica alegoria
(bem sei que a vossa Luz é que vigora)
Foi somente para efeito de poesia...

Pois se a alma num cárcere é encerrada,
A beleza que me foi dada por fora
Tornou bem mais amena a temporada...
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25/10/2017



Notas

*Atenta à sua provisória condição/
De empréstimo ao pobre coração - A poetisa está dizendo que o coração, símbolo da nossa morada corpórea, recebe a alma somente por um período provisório, passageiro (o que não destoa do próprio cristianismo).

*Desde o fogo que ganhou de Prometeu- aqui Alma faz alusão ao mito grego do titã Prometeu, que tendo roubado o fogo dos deuses do Olimpo, doou-o aos homens e por isso foi punido por Zeus.

*Perdoai, Senhor, arcaica alegoria/
(bem sei que a vossa Luz é que vigora)- Alma pede perdão a Deus por referir-se ao mito pagão da posse do fogo pelos homens (origem da razão ou consciência) para designar o que na fonte judaico-cristã do nosso cristianismo é simbolizada pela Luz divina da Criação.

*Pois se a alma num cárcere é encerrada - Aqui Alma lança mão do mito órfico da alma encerrada no corpo titânico fulminado por Zeus e atirado na Terra, e de cujas cinzas Zeus criou o Homem, durante a grande batalha da Teomaquia (ou Titanomaquia) quando os titãs devoraram, Dionisos-criança (a alma) mas foram derrotados. A Alma é Dionisos que recupera as asas depois de dez ciclos de reencarnações e consegue libertar-se do cárcere corpóreo, e voando alçar-se ao ponto mais alto do Empíreo, a morada dos deuses e das almas purificadas.

*A beleza que me foi dada por fora/
Tornou bem mais amena a temporada - a poetisa Alma é grata a Deus por ter sua alma abrigada num corpo de extraordinária beleza reconhecida, o que lhe abriu muitas portas, e tornou a sua passagem na Terra menos penosa.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Ah! Meus amigos... (Quatro Fábulas) ( de Alma Welt)

Ah! Meus amigos, tão tolos quão formosos
Na nossa louca juventude ou logo após,
Acreditando-nos de algum modo poderosos,
Como alexandres a cortar mil górdios nós

Que o Destino apresentasse vida afora,
E que tudo estaria ao nosso alcance,
Como se o leão da vida a gente amanse,
E com Androcles nossa fera a ir embora...

Quanto a mim fiel fiei como Penélope
No tear a minha teia de sonetos
A esperar um rei nada a galope...

E se a espada pendurada por um fio,

De novos Dâmocles faz de nós suspeitos,
Já nada temo mais e apenas rio...

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23/10/2017



Notas
*Como alexandres a cortar mil górdios nós - alusão ao episódio mítico da vida de Alexandre da Macedônia, que instado a desatar o intrincado "Nó Górdio", da corda que atava o varal de uma carro de guerra a uma coluna de um templo (o oráculo predizia que quem o fizesse seria o rei daquela terra), sacou de sua espada e de um só golpe cortou o nó.

*E com Androcles nossa fera a ir embora - Alusão à fábula popular cristã de Androcles e o Leão, em que o personagem, um andarilho grego cristão encontrou na estrada um leão que sofria desesperadamente com um espinho na pata. Compassivo, Androcles se aproximou corajosamente da fera, que por instinto o deixou retirar o espinho, aliviando-o da dor. Anos mais tarde Andrócles, capturado pelos soldados romanos do imperador Nero, foi jogado na arena do Coliseu para ser devorado por um leão. Por coincidência era o próprio leão tratado pelo cristão, e que dele agora se lembrou e veio deitar-se ao seus pés, lambendo-os em sinal de gratidão. A multidão em êxtase pediu a César o perdão do condenado.

*Quanto a mim fiel fiei como Penélope- Todos conhecem a história contada na Odisséia de Homero, da fiel esposa de Odisseu, a rainha Penélope, que esperou por vinte anos a volta de seu marido da guerra de Tróia (dez anos de guerra e dez anos perdido em aventuras em seu retorno). Pressionada por príncipes estrangeiros pretendentes à sua mão e ao seu trono, que acreditavam Odisseu morto na guerra, Penélope sempre confiante no regresso de seu marido, para ganhar tempo empregou um estratagema: prometeu que escolheria um dos pretendentes mas somente quando terminasse de tecer uma teia que celebrava em imagens a façanhas lendárias que o povo contava sobre o bravo Odisseu. Ela tecia de dia no tear e de noite destecia os pontos para nunca terminar.

* De novos Dâmocles faz de nós suspeitos  - alusão ao episódio de Dâmocles, rei que dormia com uma espada suspensa por um fio de cabelo sobre sua cabeça. Este mito é interpretado como uma alegoria da coragem ou aceitação do nosso destino humano.

Depoimento da Alma (de Alma Welt)

Eu não fiz mais que cumprir o meu destino,
Fui somente a poetisa que me coube,
E se mais realizar não pude ou soube,
Bem... ao menos fui mulher de trato fino.

Minha mãe, mulher de outrora, dama fina,
Preconizava uma nobreza de atitudes
Que me ficou, malgrado a minha sina
De poeta atenta às finitudes.

E se alguma rebeldia pode haver
Em querer perpetuar o belo instante,
Senhor, só da Beleza fui amante...

Porque o que escrevo, sinto ou vejo,
Vem da guria que corria para ler
As promessas de um velho realejo...

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23/10/2017

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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A pergunta (de Alma Welt)

Estaquei ao ver as sombras avançando
E voltei ao meu jardim ainda florindo
Como se o mundo fosse bom e lindo
E o Bem ainda estivesse no comando.

E perguntei às rosas que não falam
(talvez sejam elas próprias as respostas),
Quais as perguntas, lançadas, que não calam,
Que na vida quase tudo são apostas...

Descobrindo que a melhor é a Beleza
Atravessei a varanda e a soleira
E como outrora me sentei à nossa mesa:

Lá estavam meus pais, irmãs e irmão,
Naquela prece profunda mas ligeira,
E logo os chistes, risos e o "Passe o pão!"

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18/10/2017

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O Mergulho (de Alma Welt)

Reconstruir a vida a cada verso,
A própria vida assim me coube,
Como pra não ter o olhar disperso
O pintor se cerca do que soube,

Quero dizer: dos seus quadros já cumpridos,
O quais não o deixarão desintegrar-se.
Ah! Teimosa criatura sem ouvidos,
Porque todos lhe pediam que parasse...

Sim, nada recomenda o verso e a tela:
Quanta dor para no escuro ver nascer
A pequena labareda de uma vela...

Mas quanta alegria e mesmo orgulho,
Quando a própria noite foi mergulho,
E o poema ou tela o alvorecer...

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16/10/2017

sábado, 14 de outubro de 2017

Um certo horror... (de Alma Welt)

Há um tom patético em nossa vida,
Um imenso desamparo universal
Que nos induz comprar brinquedos no Natal,
Pra criança nossa interna, presumida...

Pior é muita dor para além disso,
Ignorância e mortes corriqueiras,
Bebês não nascidos... com parteiras,
E um povo explorado e submisso...

Corrupção e roubo em todo nicho
Do tecido social virando lixo,
Torpe indução ao feio e ao vício...

E o nosso voto, em si, tornado fraude,
Tanto esforço empenhado, mas debalde.
Sim, há, um certo horror em tudo isso...

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14/10/2017

Entrevista com o artista (II) (de Alma Welt)

Prosseguindo do artista a entrevista,
Notei que em sua mesa de desenho
Não havia, pelo menos não à vista,
Caneta a indicar seu desempenho.

Não havia pena, de metal ou de bambu,
Normalmente encontradas nas pranchetas
Também sequer apareceu modelo nu
A indicar as ocultas, velhas tretas...

Então o mestre revelou, assim, sem mais,
Que aprendeu a desenhar de estalo
Não com Musachi, o maior dos samurais

Mas com o velhinho, no Cine Niterói,
Com a cena da rosa, e o corte no seu talo,
E a pincel, seu traço fluido, que não dói...

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12/10/2017

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Entrevista com o Artista (de Alma Welt)

"Muito tempo nadei contra a corrente
Enquanto isso era belo e diferente
Agora é o oposto e indigesto,
E ao fazê-lo dizem que eu não presto."

Assim disse o artista no ateliê,
Cuja imensa bagagem se notava
Pois como elo da corrente ele se vê
Numa longa tradição de vida brava.

Mas artista excluído e já sem preço
Disse: "Prefiro o isolamento e a rejeição
Como nos tempos heroicos do começo"...

"Ser aceito por este mundo agora
Continua covardia e sujeição,
Mas toda a Grande Arte foi embora"...

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11/10/2017

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Não tem jeito (de Alma Welt)

Não tem jeito, o mundo é uma desgraça,
Ninho de víboras ou saco de gatos;
Meu telhado tem um gosto de vidraça,
E meus pés são maiores que os sapatos.

A vida é chata, a gente se aborrece,
E o tédio grassa a bordo da goleta. *
O capitão quer que eu faça a prece,
E pra isso faz a "russa", a tal roleta.

Isso tudo ainda vai acabar mal,
As coisas não têm como dar certo,
A beleza recebeu a pá de cal...

Então, não avistando mais saída
E da Morte estando pois tão perto...
Suspendo o sonho mau e volto à vida.
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10/10/2017

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Nota
*E o tédio grassa a bordo da goleta - Alma alude ao impagável conto Acontecimentos a Bordo da Goleta "Banbury", do livro Bakakai, de Witold Gombrowicz.

O espelho e o poema ( de Alma Welt)

Pensei mudar minha vida ou ir além,
E fazer da minha lavra um testemunho,
Pois que da alma mesma ela provém
E as sementes caem do meu punho.

Mas não queria estar sozinha tão somente,
Pensando o mundo ou fruindo dos prazeres
Já que a alma não é auto-suficiente,
E o espelho não é ponte entre os seres.

Mas se todos nos espelhos nos miramos
Para ver como é que Deus nos fez,
Nem por isso nosso Ser capturamos...

E o poema tem bem mais acuidade:
Nele enxergo melhor e em nitidez,
Que Narciso no seu lago de vaidade...

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10/10/2017

sábado, 7 de outubro de 2017

Contos de minha boemia (I) (de Alma Welt)

Eu costumava entrar em certo bar
Na cidade no meu tempo de boemia,
Procurando, disfarçada, com o olhar
Aquela por quem meu coração gemia.

E tomava uns tragos feito homem
No balcão como se no Velho Oeste
E não onde os proletários comem
O prato feito de que fujo como peste.

Mas um dia, o barman que era o dono
Sussurrou-me ao ouvido no balcão
Uma espécie preventiva de abandono...

Disse:"Alma, tua gata não vem mais,
Não somente por amor da profissão,
Mas de medo desse olhar verde demais..."

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07/10/2017

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Contos de minha boemia (II) (de Alma Welt)

Eu caminhava nas ruas noite e dia
Procurando o amor que me faltava
E a me prostituir mesmo pensava,
Que àquela altura eu pouco me valia.

Alma perdida de mim mesma, ainda bela,
Quanto perigo corri sem me dar conta,
Chegando a dormir numa viela
E acordando cercada e meio tonta.

Foi quando umas freiras caridosas
Me levaram com elas pro convento
E me puseram pra cuidar das rosas.

Mas um dia a Superiora disse assim:
"Tua poesia é para o mundo e para o vento,
E Deus me disse pra te liberar enfim..."

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07/10/2017


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Contos de minha boemia (III) (de Alma Welt)

Não eram verdes tempos, mas cinzentos,
Minha casa estava longe e a inocência
Dos meus dias nos campos e nos ventos
A colher flores em torno da querência.

Agora estava solitária e à deriva
Como o barco embriagado de Rimbaud
Em que de certo modo ainda estou,
Mas queria experimentar a vida viva...

Corria ruas de Montmartre e Montparnasse
Como o faziam Lautrec e Modigliani
Que bebiam o absinto que calhasse...

Mas então disse: Chega! O que preciso
É alguém que me queira, e que se dane:
Vou voltar para o meu pampa e meu juízo.

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07/10/2017

O idioma da serpente (de Alma Welt)

Neste universo fomos postos a pensar,
E é o que fazemos noite e dia,
Muito embora deixe um pouco a desejar
O timbre, a qualidade e a valia...

Deus no legou o Verbo e o Logos
Que chegou a nós por extravio
Por meio da serpente e não dos fogos
Das estrelas de Deus em que me fio.

Ainda hoje a ouvimos sibilar
Dentro de nós, a rastejante criatura,
Nos incitando a nos apaixonar...

Conheço bem o idioma da serpente
Mas o uso só para a escritura
Dos poemas que Deus olha ternamente...

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07/10/2017

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

O Maior dos Poetas (de Alma Welt)

Vir ao mundo para escrever poesia
Não me parece nada fútil ou em vão,
Pois Jesus fez poesia num sermão:
"Olhai os lírios do campo"... (e descrevia).

Também fez poesia em prosa na montanha,
A mais bela das respostas nos contando
De um pai diante de um filho e sua manha
Por ciúme do irmão pródigo voltando...

Poeta, e o maior que jamais vimos,
Que o Pai o enviou com esse dom
Para ao menos, por beleza, o ouvirmos.

Perdão, Pai, por puxar assim a brasa
Sem ter feito nada assim tão bom,
Só queria escrever um e ir pra casa...

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05/10/2017

A Verdade (de Alma Welt)

"A Verdade existe e está nos livros,
Cabe garimpá-la em meio aos tomos.
Mas, Alma, observe os seres vivos,
A que nos propusemos e o que fomos".

"Quanta torpe iniquidade mundo afora!
Sinceramente devo pois pedir perdão,
A ti, Alma, tuas irmãs e teu irmão,
Por trazê-los a este mundo aqui de fora."

Assim disse meu pai num mal momento,
Num raro, estranho modo ressentido,
Poucos meses após minha mãe ter ido.

Mas eu, que não sou poeira ao vento
Mas uma Alma entre mundos, imortal,
Disse: "Bobagem, meu paizinho, não faz mal...

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05/10/2017

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Oração para a Era do Equívoco (de Alma Welt)

De equívoco vivemos uma Era
Em que torpe confusão é o Juízo.
Todos gritam, os ratos viram fera,
Enquanto gatos, com medo, pedem guizo.

Como concurso para ver quem grita mais,
Assistimos a um debate de dementes
Em que nunca o derrotado volta atrás
Pois deixa, venenosas, suas sementes.

Senhor, com perdão, está na Hora.
Mas quem sou eu para pedir intervenção?
Não sei ,Senhor, se fico ou caio fora.

Quase todos somos tolos e daninhos.
Só vos peço: nos dai novo coração
Ou mudai em pura água nossos vinhos...

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04/10/2017

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Uma Luz! (de Alma Welt)

Ó Senhor, vivemos tempos tenebrosos,
A escuridão reina em todo canto.
Estão de volta os crimes escabrosos
Só registrados nos anais do espanto...

Não sou uma energúmena, Senhor meu,
Bem conheceis meu complicado coração
Que foi mesmo por um longo tempo ateu
Por medo, ignorância ou solidão...

Mas, Senhor, se não for pedir demais
Enviai um ser de Luz, que se faz tarde,
E já estamos afundando na maldade...

Uma luz, Senhor, em torno a Alguém,
Mas tão forte que comova e crie paz,
Nada mais será preciso, nem convém...

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03/10/2017

Primaveras (de Alma Welt)

Queria ter minha nova primavera,
Levantar em esperanças da minha cama,
Não triste como um fado da Severa, *
Nem como os de ainda hoje na Alfama.

Também não como baladas da Irlanda,
Por mais belas que elas sejam e dolentes,
Nem serestas brasileiras de varanda,
De serenos e ventinhos de repentes...

Também não de bosques de Viena
Ou de róseas cerejeiras japonesas,
Ou de um acordeão de beira-Sena...

Primaverona dos amantes, cotovia,
Sem noturnos rouxinóis das incertezas,
Mas com flores a explodir, pura alegria...

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03/10/2017
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Notas
*Não triste como um fado da Severa
- Severa foi a primeira grande fadista de Portugal, célebre, ainda no século XIX, que teria lançado as bases do estilo das fadistas de ainda hoje, passando por Amália Rodrigues, que consolidou o modo peculiar de modular mouriscamente os versos finais nas letras, quase sempre tristes, de fatalidade, de destino...

*Nem serestas brasileiras de varanda/
De serenos e ventinhos de repentes. - Alma faz alusão à canção folclórica brasileira, "Fiz a cama na varanda"...

* Primaverona dos amantes, cotovia/
Sem noturnos rouxinóis das incertezas
- (primavera grande de Verona) Alma alude à famosa cena de Romeu e Julieta, os amantes de Verona, de Shakespeare, em que o casal passa a primeira noite juntos, após se casarem em segredo, e Julieta desperta alarmada com o canto da cotovia e eles devaneiam incertos se ainda é o canto noturno do rouxinol ou a cotovia da manhã, pois ele não pode ser encontrado no quarto dela, em sua casa paterna, ou será morto.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Volto ao Jardim (de Alma Welt)

Ter meu jardim por dentro em meio ao caos,
Foi em vão sem as rosas desta estância.
Aqui passo momentos bons e maus
Mas foi fácil distingui-los à distância...

Malfadado auto-exílio que me impus!
Nada era muito claro: tateava,
E entre os amigos novos que supus,
Devo reconhecer: ninguém me amava,

Mas como cobiçavam meu corpinho!
E por esta cabeleira rubra e brava,
Outras rubras fantasias no caminho...

Então disse: Basta, isto me trava,
Estou a dar a quem não me merece!
Volto ao jardim... e o samba cesse. *

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02/10/2017
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Nota
*Volto ao jardim... e o samba cesse - Alma alude ao famoso e belíssimo samba do Cartola, "As Rosas Não Falam"...

Aquela que fica (de Alma Welt)

Quantas vezes pensei em ir-me aos mundos
De encontro aos perigos e aventuras;
Subir montanhas, descer vales profundos,
Contar com leais sherpas nas alturas...

Sentar em flor de lótus frente a um mestre,
Esperar e ver prodígios dos humanos,
Ou assumir minha condição pedestre,
Cruzar o mundo a pé por alguns anos...

Aquela sou que quer partir e sempre fica.
Mesmo partindo, fica, fica, como o Campos
Aquele Álvaro que o Poeta exemplifica.

Mas assumo o que em mim mais belo resta:
Simples mulher, pôr no cabelo os grampos,
Pôr roupa pra secar, ver mundos pela fresta...

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02/10/2017

Meu diálogo com a varanda (de Alma Welt)

Minha varanda, mirante do poente...
Quanto me viste na cadeira balançante
Não somente a mirar o circundante.
Mas a observar minha própria mente...

Não te assustes, velha, minha varanda,
Não confesso deste modo a ruptura
Em duas almas e que uma já desanda:
Sou eu mesma, a passada e a futura...

"Alma pensas mirar tua própria mente
Mas estás a fazê-lo ao teu umbigo.
Vê só como o mundo é diferente:

Vê os homens nos Campos do Senhor,
Como labutam no limite do perigo...
Vê quanta dor, coragem, e quanto amor!"

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02/10/2017

domingo, 1 de outubro de 2017

Primavera fria (de Alma Welt)

Primavera tristonha em seu começo...
Como me faz lembrar outras, passadas,
E malgrado um ou outro vão tropeço,
Uma infância feliz, das mais amadas...

Manhã gelada, mas clara, auspiciosa,
Em que saio de um casulo de invernada
Como noturna, deslocada mariposa
Em lúcida manhã, meio ofuscada...

Quero viver, reviver, tudo de novo,
Insaciável de vida e de experiências
Num contato ainda vivo com meu povo...

Mas levanto, me dirijo ao meu teclado,
Meu virtual espelho das vivências
De um tempo mais real... abandonado.

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01/10/2017

sábado, 30 de setembro de 2017

Sinais na tempestade (de Alma Welt)

"Estão em ti teu pai, mãe, avô e avó,
E digo que a morte é uma ilusão,
Que nossa vida não se reduz ao pó,
Somos almas em breve transição..."

Assim dizia o padre em seu sermão
E o repetiu quando veio aqui em casa
Pensando em dar-me a extrema unção
Por alarme que desta estância vaza...

"Alma está morrendo!" (murmúrio dos peões).
"Não viram os sinais na tempestade?
Na casa escura já nem vemos lampiões!"

Então percebo como meus humores correm:
Se sofro os que me amam também sofrem.
E me alteio de mim contra a vontade...
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30/09/2017

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Quase, tudo (de Alma Welt)

Ouvi de mim quase sempre o coração
E esse "quase", quase foi minha desgraça.
O "quase" mesmo, não o orgão-diapasão
Que afina tudo o que por ele passa.

Deus me deu uma mente prodigiosa
Capaz de tudo traduzir em mil sonetos,
Numa linguagem próxima da prosa
Mas vinda de além-mar e não dos guetos.

A Portugal e a Camões devo o acento
E mesmo um pouco aos castelhanos
E a até seu invasor envolto em panos.

Mas se me falta às vezes um alento,
Dentro em mim um lampejo do Walhalla *
Não me permita, ó coração, cair na vala...

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27/09/2017
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Notas
*E a até seu invasor envolto em panos - Alma se refere aos árabes e seus albornozes e mantos, que pela conquista da península Ibérica influenciaram a língua portuguesa e espanhola.

"Dentro em mim um lampejo do Walhalla - Alma alude ao seu sangue alemão por parte de pai, ou ao seu inconsciente coletivo germânico, cujos arquétipos guerreiros permaneceriam no seu íntimo mais profundo.

Meu retrato nu (de Alma Welt)

                             Grande Nu - óleo s/ tela de Guilheme deFaria, 1991, 140x120cm

Meu retrato nu (de Alma Welt)

Quando bem jovem morei na Paulicéia
E no ateliê de um bom velho pintor
Me desnudei como se fora ateia
Ou mesmo após o pomo, sem pudor...

E então ele me disse: "Ao retratar-te
Precisarei te amar demais, sem restrições.
Retrato nu tem que ser obra de arte
Que a nós expulse, a ambos, dos salões."

E eu, claro, caí na sua lábia
E logo o amei de mais, pernas pra cima,
Descobrindo então que nasci sábia.

Mas voltei ao Sul sem meu retrato
Porque o pintor a sua pintura mima
Retocando-me sem fim, fora do trato...

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27/09/2017

Quase (de Alma Welt)

Ouvi de mim quase sempre o coração
E esse "quase", quase foi minha desgraça.
O "quase" mesmo, não o orgão-diapasão
Que afina tudo o que por ele passa.

Deus me deu uma mente prodigiosa
Capaz de tudo traduzir em mil sonetos,
Numa linguagem próxima da prosa
Mas vinda de além-mar e não dos guetos.

A Portugal e a Camões devo o acento
E mesmo um pouco aos castelhanos
E a até seu invasor envolto em panos.

Mas se me falta às vezes um alento,
Dentro em mim um lampejo do Walhalla *
Não me permita, ó coração, cair na vala...

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27/09/2017

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O que virá (de Alma Welt)

Quando me sento pra escrever, o que virá?
Essa incógnita é uma esfinge da minha mente,
E quase sempre o resultado é surpreendente:
De minha alma... o que agora sairá?

Sou eu mesma minha caixa de Pandora
Mas não de demônios e outros bichos,
Mas de entes e arquétipos de outrora,
Colocados todavia em novos nichos.

Consciente dos tesouros que carrego
Percorro este mundo que me aponta
Como o judeu errante que não nego,

Guardando ouro para uma Terra Santa
Mas da alma, que a riqueza já nem conta,
E como um rei trovador que apenas canta...
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26/09/2017

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Nota
*E como um rei trovador que apenas canta - Alma parece evocar D. Dinis I, O Poeta (Lisboa, 9 de outubro de 1261 – Santarém, 7 de janeiro de 1325), que foi Rei de Portugal e do Algarve de 1279 até sua morte. Era o filho mais velho do rei Afonso III e sua segunda esposa Beatriz de Castela.
D. Dinis I foi grande amante das artes e letras. Tendo sido um famoso trovador, cultivou as Cantigas de Amigo, de Amor e a sátira, contribuindo para o desenvolvimento da poesia trovadoresca na Península Ibérica. Pensa-se ter sido o primeiro monarca português verdadeiramente alfabetizado, tendo assinado sempre com o nome completo. Foi o responsável pela criação da primeira Universidade portuguesa, inicialmente instalada em Lisboa e depois para Coimbra.
(Fonte: Wikipédia)






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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Lembranças de minha avó (de Alma Welt)


                                                         Frida Welt, a avó da Alma - lito de Guilherme de Faria


Lembranças de minha avó (de Alma Welt)

"A vida é dura, não adianta reclamar.
Se queres o melhor pra ti e pros outros,
Monta tu e teu irmão aí nuns potros
E vão vós mesmos, galopando, lá buscar."

Assim dizia minha avó meio matuta,
No jardim ou pondo a mesa pro jantar.
E eu, calada, em permanente escuta,
Aguardava seu espantoso gargalhar.

Eu pensava que minha avó era uma bruxa,
Que assim diziam os peões e suas prendas
Que apontavam seu nariz e a boca murcha.

Então dizia uma besteira, simples chiste,
E sua risada que deixava o pelo em riste,
Vinha do fundo ancestral de antigas lendas...
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25/09/2017