quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Julgamentos (de Alma Welt)

Que a vida me permita o bom julgar
Já que tudo são escolhas judiciosas,
O bom Deus o livre arbítrio nos quis dar
Nas nossas fúteis causas pretensiosas.

Mas Deus não me permita julgar outrem
Sem antes muito olhar meu próprio rabo.
Nossa vida, dizem, passa como um trem,
Quer embarques ou o percas no lavabo.

Tudo tem sua hora marcada, seu lugar,
E não temos em geral segunda chance.
Também nada vem de graça, nem o lanche.

Acho que devo ir parando por aqui,
Noto em mim uma tendência ao "popular":
Tantos chavões nunca outrora cometi...

.
29/11/2017

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Para amar a Alma (de Alma Welt)

Não temais, meus amores, meu mistério,
Embora digam que deveis temê-lo...
Se meu coração é um eremitério,
O é em plena primavera de degelo.

Só acolho o solitário, é bem verdade.
Aquele de exigente natureza,
Ou o que renunciou à sociedade,
Moderno Prometeu de alma presa.

Não quero o bom guri, eterno infante
Que só pensa na vida em divertir-se;
Devo, pois, evitá-lo como amante...

Então venha, meu amor, mas reverente:
Meu coração é tal como a deusa Circe,
Tudo que toca é seu eternamente...

.
28/11/2017

sábado, 25 de novembro de 2017

Sem restauro (de Alma Welt)

Não tiraria uma vírgula sequer,
Dos meus erros e acertos nesta vida.
Também não me prevalece ser mulher
E com esta dupla alma dividida.

Quê dizes? De nós, Alma, ocultas algo?
"Não" (eu respondo). "Duplos somos,
Um de nós raposa e o outro galgo,
Este a perseguir alguém que fomos."

Anima e animus (disse o mestre)
Em perpétuo convívio conturbado,
Ou em harmonia, frágil e equestre:

Sim, cavalo e cavaleiro, não centauro.
Podemos ir ao chão, vidro rachado,
E, portanto, impossível de restauro...
.
25/11/2017

domingo, 19 de novembro de 2017

Lições do abismo (de Alma Welt)

Já não temos mais consolo nem perdão,
Estamos fritos, ferrados e mal pagos
Como diria o povo simples, com razão,
Já não cabem panos quentes nem afagos.

Medea exclama: "Tudo está perdido!",
Com fogo no palácio, os filhos mortos,
Quando já nem procuramos nossos portos,
Na esperança de algum novo sentido.

Quê resta então? Agarrados num arbusto
De amoras na beira de um abismo
Com um tigre a acrescentar ao nosso susto,

Só nos cabe colher uma ou duas frutinhas
E comê-las a esperar um novo sismo,
Ou aprender a agarrar como as gavinhas...

.
19/11/2017

"O Jardim das Aflições" (de Alma Welt) Para o mestre Olavo de Carvalho

Estamos à deriva em meio a brumas,
Se perderam nossos sonhos superiores;
Nosso barco é um circo dos horrores,
As melhores ilusões viram espumas...

Marujada, quem quer ser o capitão?
Nosso último se foi pela amurada
E só de noite aparece no porão,
Onde os ratos construíram sua morada...

Contra-mestre, avisto terra no horizonte!
Só pode ser a tal Ilha dos Conflitos,
Onde dizem que nem com Deus não conte.

Vamos lá, ao Jardim das Aflições!
Beber da água amarga dos aflitos,
Sem um consolo mas repleta de lições...

.
19/11/2017

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Às claras (de Alma Welt)

Mais tarde desceria à profundeza
Do abismo de minha própria alma,
Coisa que uns percebem com clareza
E outros experimentam como trauma.

Corresponde àquela selva escura
Que o bardo florentino descrevia
Tendo perdido a verdadeira via,
Adentrando a porta dos sem cura...

Mas ao chegar num certo turbilhão
E tendo conversado com a Da Rimini
Que continua voando desde então, *

Eu preferi voltar e amar às claras
Nada como quem desfila de biquini
Mas nua, sem pudores, dando as caras...

.
15/11/2017

Nota
*Mas ao chegar num certo turbilhão/
E tendo conversado com a Da Rimini/
Que continua voando desde então. -
Na Divina Comédia de Dante Alighieri, o bardo florentino na sua travessia do Inferno guiado pelo poeta romano Virgílio, atravessa um círculo onde estão as almas dos amantes clandestinos, levados eternamente abraçados, sem pouso, num turbilhão sem fim. Ali estava a alma de Francesca Da Rimini, com seu cunhado e amante Paolo Malatesta, e esta contou ao poeta a história de seu amor e sua desgraça, assassinado que foi o casal pelo marido corcunda de Francesca, Giovanni Malatesta, que os pegou em flagrante.
Alma sugere que visitou como Dante o Inferno e conversou também com a alma de Francesca da Rimini, tantos séculos depois de Dante, já que os suplícios do Inferno são eternos...

A Casa do Enforcado (de Alma Welt)

O casarão da infância, misterioso,
Continha lembranças de outra era,
E mesmo de um evento pavoroso
Que as paredes recobria como hera.

No sótão houvera um enforcado,
Da trave do telhado pendurado,
Com a banqueta tombada, o chimarrão
Esparramado e fumegante pelo chão.

Valentim, antigo proprietário, *
Pelo seu gosto das cartas arruinado
Preferiu a saída pelo armário...

E eu, guria, aquilo tudo ouvia
E o via de bombacha, ataviado,
Na vida e na corda em que pendia...

.
15/11/2017

Nota
* Alma, no seu romance autobiográfico A Herança, se refere a este episódio real narrado por seu avô Joachim Welt, que adquiriu a velha estância Farroupilha (da qual mudou o nome para Santa Gertrudes) do seu último herdeiro, Valentim Ferro, de antiga família gaúcha e que arruinado pelo seu vício do poker viu-se forçado por imensas dívidas a vender ao "boche" (alemão) arrivista, a estância e seu casarão.. No dia seguinte à passagem da escritura, o velho Welt o encontrou todo ataviado, de bombacha bordada, botas, faixa na cintura com punhal de prata atravessado, lenço vermelho no pescoço e chapéu de aba dobrada na cabeça, enforcado por laço de couro na trave do sótão, com a banqueta caída e a bomba e a cuia do chimarrão esparramado ainda fumegante (!!) pelo assoalho... Essas coisas enchiam a imaginação da guria, futura poetisa daquele pampa cheio de assombros e mistérios.

Ricordanze (de Alma Welt)

Eu tenho até vergonha da saudade
Que me causa o recordar da infância,
Malgrado uma ou outra circunstância
Menos feliz, ou eventual maldade.

Tal era o meu mundo, e me conformo.
Também nunca blasfemei contra a vidinha.
Perguntada o que fazia na escolinha,
Disse: "Eu merendo, brinco e "dormo"...

Era plena, feliz e até sabia...
E isso me dava aquela aura
Que (alguns afirmavam) me envolvia...

E cresci entre flores e pastagens
Cuja lembrança ainda me restaura,
Mesmo agora, cercada de bobagens...

.
15/11/2017

Ricordanze (by Alma Welt)

I'm ashamed of the longing
That causes me to remember childhood,
In spite of either circumstance
Less happy, or maybe evil.

Such was my world, and I am satisfied .
I have never blasphemed the life.
Asked what I was doing in the school,
Said: "Eating, playing and sleeping "...

I was full, happy and even knew
And that gave me that aura
That (some claimed) involved me ...

And I grew up among flowers and pastures
Whose memory still restores me,
Even now, surrounded by nonsense ...
.
11/15/2017

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Palavras à Realidade (de Alma Welt)

Realidade, quanto eu vos venero,
Perseguindo-vos em bruma persistente,
Tateante como o cego Homero,
Nosso ponto comum a toda gente...

Também eu pra captar-vos faço versos,
(e há quem diga que só amo a fantasia!)
Com o palpável, sabeis, não tergiverso,
Jamais sonhei fugir para Utopia...

Pois confiante na beleza do real
Prosterno-me aos pés da Natureza
Mesmo quando se apresente em areal.

Mudar o vosso mundo jamais quis,
Senhora, este pecado, e a avareza,
Não pertencem à breve lista que me fiz...

.
13/11/2017

domingo, 12 de novembro de 2017

A Chave (de Alma Welt)

"Não esperar do mundo, eis o segredo
Para se evitar amarga frustração.
Espere de si mesmo, acorde cedo,
Depois faça em casa a sua lição."

Assim dizia meu pai, bom pessimista,
Solitário como uma soberba ilha
Apesar de exemplar pai de família,
E malgrado a tendência fatalista.

Assim criada, eis a chave dos meus versos
Que cumprem à risca os mandamentos,
E guardam uma surpresa em passos lentos.

Sim, espero a resposta sem pergunta,
Que é a graça de meus sonhos dispersos,
E que só o derradeiro verso junta...

.
12/11/2017