segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A justiça do jogo ( de Alma Welt)

Quantas vezes entro em modo de desgosto
Contra este mundo injusto e desigual
Que parece ser no mínimo o oposto
De qualquer saber transcendental...

Mas então percebo meu orgulho
Que me cega para a grande sutileza
De um baralho de cartas sobre a mesa
Confundido com todo aquele entulho.

E passo a retirar carta por carta
E vejo como o mundo se desata
Em valetes, damas, reis e corações.

Não há pois injustiça neste jogo
Todos temos as mesmas opções
Entre o bem e o mal, sorte e malogro...

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28/11/2016

O poker e a cronista (de Alma Welt)

Há quem no jogo se sinta confortável
E desses o savoir-faire eu admiro;
A cabeça erguida o humor estável,
O blefe nem altera o seu respiro.

Porque a vida é um poker de cassino
E não desses de uma mesa familiar.
Jogamos nossas fichas até acabar
E saímos da mesa ao som de um sino.

Mas eu me pus na vida um tanto à parte
Observando o jogo dos senhores,
Admirada, confesso, dessa arte...

Cronista arguta e "par la grâce de Dieu",
Descrevo o jogo, a esperar que Ele me dê
A entrada em Seus estreitos corredores.

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28/11/2016

domingo, 27 de novembro de 2016

A Biblioteca (de Alma Welt)

A biblioteca imensa de meu pai
Contém segredos que jamais desvendarei.
Um mistério ou um clima dali sai
Que de noite tenho um medo que nem sei...

Presumo que em algum tomo ali perdido
Está todo o segredo do Universo,
A julgar pelo saber reconhecido
Do finado, em poder sereno imerso.

Mas Matilde, minha ex-babá se irrita:
Quer fechar para sempre aquela sala
Acreditando ser a fonte da desdita.

E eu, balançando entre os extremos,
Entre o medo e o amor de desvendá-la,
A vida oculta, ignorada, que vivemos...

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27/11/2016

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Viva a Vida (de Alma Welt)

Quando guria assisti a um poente
Tão belo, glorioso e triunfal,
Que eu quis ser levada, de repente,
Pelos anjos, daqui do meu quintal.

E exclamei: "Senhor, já estou pronta!
Levai-me daqui para o teu reino...
O pampa é belo, não tenho nada contra,
Mas sei que é apenas vosso treino."

"As planícies do Reino são douradas
E mais contêm tons róseos e vermelho,
Por certo para eternas cavalgadas..."

E Deus me respondeu: "Pare com isso,
Alma inquieta, e aceite meu conselho,
Viva a vida, que é o nosso compromisso..."

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25/11/2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Palavras ao Senhor (de Alma Welt)

Agradecida ao mundo e ao destino
Por tantos privilégios de nascença,
Percebo um território muito fino
Entre minha fé e a descrença.

Senhor, não me leve tão a sério.
É coisa de poeta entediado
Se minha alma corrompe o teu Império,
Flores do mal colhendo em pleno prado.

Quem sou eu pra questionar a Lei
Se a morte é tua suprema decisão
Para o homem e toda a sua grei?

Ficarei, então, quietinha doravante,
Sem mais fazer marola ou confusão.
Sou aquela da esquerda, ali, adiante...

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23/11/2016

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Calipso (de Alma Welt)

                                         Odisseu (Ulisses) e Calipso - Arnold Böcklin, 1883

Calipso (de Alma Welt)

Admiro quem cultiva o seu jardim
E mantém sempre vivas as suas flores
Como se nada ou ninguém tivesse fim
E tudo em seus lugares e sem dores.

Tais pessoas sem o senso de tragédia,
Têm motivos para crer que a vida é bela
Apenas como flor de enciclopédia
Que num verbete dá tudo o que é dela.

Quanto a mim, tão atenta à decadência
Observo o murchar das coisas belas
E cada ruga nova em sua essência.

E sei que a vida é breve e nos espera
Como Ulisses ansiando alçar as velas
E abandonar uma eterna primavera...

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22/11/2016


Capitão, meu capitão (de Alma Welt)

Nossa nave, já se vê, está furada
Fazendo água que não é de se beber.
O capitão se debruça na amurada
E tem visíveis ânsias de descer.

Capitão, meu capitão, espero ordens!
Quase todos nesta barca têm família,
Antes que comecem as desordens
Uma palavra, capitão, ou uma ilha...

Entretanto não há consolo nesta vida
E ninguém pode descer antes da hora,
Quer dizer: antes da barca submergida.

E me pergunto como foi que me meti
Nesta barca se daqui nem fui embora
E navegando em mim já me perdi...

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22/11/2016

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Em berço de ouro (de Alma Welt)

Ninguém vem ao mundo por acaso
Cada alma é única e imortal,
O milagre é não haver igual
Ou réplica pra produzir atraso.

Dizia o padre na nossa capelinha
Que eu me lembro em minha infância
E nunca me senti depois sozinha
Nesta amplidão aqui da estância

Pois me falava de um grande companheiro,
Um herói daqueles destemidos
Que gostava até de gente com dinheiro.

E se há quem por nós dê sua vida,
Todos fomos por ele escolhidos
Mesmo eu que em berço de ouro fui nascida...
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21/11/2016

O salto (de Alma Welt)

O mundo humano é caos, não ordenado
Malgrado nossa profusão de regras,
Um milhão de leis como um cercado
Tentando coibir sem dó nem tréguas.

Mas não adianta. Em nós a rebeldia
Do anjo maldito é nossa herança.
Procuramos uma brecha, noite e dia
Com nossa teimosia de criança.

Porque sua existência nos humilha
Queria ver um mundo sem presídios,
Mesmo um único que fosse, como ilha.

Sonho ver a humanidade dar um salto,
Com os nossos melhores subsídios,
Um só degrau acima, para o alto...

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21/11/2016

Todo mundo (de Alma Welt)

Todo mal do mundo me alcança
E de algum modo me perpassa
Conquanto me mantenha pura e mansa,
Nunca alheia ao que ao redor se passa.

Não dá pra ser feliz, me digo às vezes,
Neste mundo repleto de injustiça.
Não distingo uma rês entre outras reses
Nem um pecador dentro da missa.

Ou todos nos salvamos ou ninguém,
A grosso modo, assim, lance geral,
A humanidade mesmo sendo desigual.

Pois de perto, como dói o ser humano!
Que temor, que olhar aflito de refém
Vejo em mim, em nós, se não me engano...

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21/11/2016

domingo, 20 de novembro de 2016

Minha Língua (de Alma Welt)

                                                        Bem-te-vi

Minha Língua (de Alma Welt)

A minha pátria a si mesma é tão fiel
Que fala uma língua que é só dela
Em meio aos redutos de Gardel
Que a cercam, vivaz, inculta e bela.

Adoro a minha língua e a acalento,
Muito próxima de suas mesmas fontes,
Não com seu chiado trás-os-montes,
Mas com a fluidez sonora ao vento...

E acordo pronta pro soneto da manhã,
De Camões filha dileta e temporã
Para honrá-lo como um pai que não perdi.

E enquanto o gringo nórdico a invade,
O denuncio como um doce bem-te-vi
E conclamo minhas falanges de saudade...

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20/11/2016

sábado, 19 de novembro de 2016

Viver a Vida (de Alma Welt)

                                      A queda dos anjos rebeldes - Pieter Bruegel, o Velho

Viver a Vida (de Alma Welt)

Viver a vida, simplesmente, já é dor
Para uma alma, assim, inconformada.
O mundo humano, no geral, é um horror,
Nascemos sob a égide da espada...

Somos fruto da rebelião dos anjos
Que foram jogados sobre a terra,
Vencidos pela fúria dos arcanjos
E por isso nossa natureza aberra.

Assim penso eu quando estou triste
E me deixo levar por velhos mitos
Que a alma ancestral lembrar insiste.

Mas se acordo alegre, rodopio
Como os anjos também em velhos ritos
Em torno de meu Deus perfeito... e rio!

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19/11/2016


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Entre o Caos e a Harmonia (de Alma Welt)

A vida não é senão constante luta
Entre a tristeza e a alegria,
O mal e o bem em vã disputa
Entre o escuro caos e a harmonia.

Há os que não percebem esse combate
E flanem pelo mundo como um prado
Todo florido e macio, perolado
Pelas gotas do orvalho em toda parte...

Felizes esses enquanto a ilusão dura
E espero que não caiam das nuvens
E mantenham a alma sempre pura.

Mas eu percebo sua senda muito estreita
Como os trilhos perfeitos desses trens
Sobre trêmulos desertos de maleita...

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18/11/2016

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Alma Galatea (de Alma Welt)

                                          Pygmalião e Galatea - Jean-Léon Gérôme

Alma Galatea (de Alma Welt)

Na vida somos sempre a gente mesma
Malgrado nossa louca fantasia
De uma poetisa ou abantesma
Que criamos para efeito de poesia.

Me refiro a um poeta semilouco
Que me deu vida e explora-me demais.
E a cada dia recorre a mim um pouco
Para se sentir consigo mesmo em paz.

Mas não posso me queixar, que me deu vida,
E qualquer dia diante dele me apresento
Em carne e osso e quero ver como me lida...

Sou bela e diante dele me desnudo,
Galatea esculpida pelo vento
De uma imaginação que pode tudo...

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17/11/2016

Lambe-Lambe (de Alma Welt)

                                                     Lambe-lambe e Leila Diniz

Lambe-Lambe (de Alma Welt)

Morremos um pouco a cada morte
Dos bons que incorporamos porventura
Mas também de alguns de menor porte,
Um vizinho ou uma doce criatura

Que cruzava conosco na calçada
Com um bom dia, boa tarde, como vais,
Fazendo comentários sobre nada,
Em geral o tempo, a chuva, nada mais...

Lembraremos de todos, num segundo,
Dos que passaram por nós gratuitamente
Só por fazerem parte deste mundo.

Sua comum humanidade nos foi grata,
Sob um pano preto em nossa mente,
Lambe-lambe que, a vida só, retrata...

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17/11/2016

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

À procura dos deuses (de Alma Welt)

                                          Zeus e Tétis- de Jean-Baptiste-Dominique Ingres
                                 A crucificação de Cristo - gravura (água-forte) de Rembrandt

À procura dos deuses (de Alma Welt)

Ao próprio Zeus a Vida é um desafio
Já que é o fogo que lhe foi roubado *
E anima nosso corpo fulminado *
E a alma que recolhe o próprio fio

Para voltar depressa, se possível,
Ao seio de um feroz rejeitador
Que temos de ganhar em outro nível
Enquanto o procuramos, quanta dor!

Dizia o meu pai, que amava os gregos
E achava que os deuses estão vivos
E que os bons cristãos é que estão cegos.

Mas na procura dos deuses, bem no meio,
Dei com um que era tão bom que sob crivos
Acolheu-nos, uns e outros, no seu seio...

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16/11/2016

Notas
*Já que é o fogo que lhe foi roubado/
*e anima nosso corpo fulminado - Alma Welt está se referindo ao mito órfico* da criação do homem, que remonta a um episódio épico no Olimpo: Os Titãs, raça de gigantes, se rebelou contra Zeus e houve um batalha imensa (Titanomaquia) entre os deuses e eles. Durante a batalha osTitãs estraçalharam e devoraram Dionisos-criança. Mas, afinal vencidos, os Titãs foram fulminados pelos raios de Zeus e seus corpos lançados à Terra. Mas um dos Titãs rebelados, Prometeu, roubou o fogo dos deuses e o doou ao corpo titânico animando Dionisos (a alma ) nele encerrado como num cárcere. Assim o homem surgido deve encarnar por dez ciclos de mil anos antes da alma se purificar e escapando do corpo pecaminoso titânico voar até "a ambicionada coroa" (o ponto mais alto do Empíreo, a morada dos deuses e das almas purificadas.

*mito órfico - O Orfismo foi um religião iniciática grega (relacionada aos Mistérios de Elêusis) de caráter reencarnacionista, anterior ao século VII A.C, e da qual Pitágoras foi um expoente. Essa religião diferia da Mitologia tradicional e tinha sua própria Teogonia, diferente da de Hesíodo que colocava o Caos e a Noite como princípios teogônicos. Na teogonia órfica de Jeronimo e Helânico, o princípio (archè) era Cronos (o Tempo) que se uniu à Ananke ( a Necessidade) para gerar uma tríplice prole: o Éter úmido, o Caos nebuloso e o Érebo tenebroso. A seguir Cronos inseriu no Éter o "Ovo Primogênito", do qual nasceu Zeus, o princípio ordenador, que geraria os "protágonos" (os outros deuses).

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Fortuna Imperatrix Mundi (de Alma Welt)



Fortuna Imperatrix Mundi (de Alma Welt)

"A fortuna é a imperatriz do mundo",
Assim estava escrito numa carta
De detalhes ilustrados muito farta,
Certamente de sentido bem profundo.

Fortuna é tão somente o nosso fado,
Quer dizer, o destino que nos cabe
E roda nossa vida com enfado
Conquanto enganá-la ninguém sabe.

Grito alto: "Serei livre! (pra que ecoe)
Ninguém vai reger o meu destino
E Vossa Majestade me perdoe..."

"No Pampa o Minuano é meu rei Mino,
Nem mesmo ele sobre mim terá poder,
Nem que eu gele na coxilha até morrer!..."

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15/11/2016

Depois da tempestade ou a Nau dos insensatos (de Alma Welt)

                                   Ship of Fools - Hieronimus Bosch e FatCatArt

Depois da tempestade (ou A Nau dos insensatos)

 (de Alma Welt)

Depois da tempestade a calmaria...
De nós, metade foi varrida para o mar,
A nave está mais leve, mais vazia,
Nós que sobramos não iremos mais rezar.

"Quem morreu, morreu!", grita o piloto
"Tratem de escovar bem o convés!"
"O capitão está lá embaixo, morto,
Atravessado em sua cama, de viés..."

"Nossos planos se apagaram com a bruma.
Agora sou eu que aqui comando
E não iremos mais a parte alguma."

"Já que isto é nave louca e não convento,
Sem perguntar o como o onde e o quando,
Rumemos para o Nada, a barlavento!..."

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15/11/2016

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O Duplo da Alma (de Alma Welt)

                                O duplo da Alma - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014

O Duplo da Alma (de Alma Welt)

Estou sempre adiante uns poucos passos
E me sigo atrás alerta com meu cão;
Meu duplo não está aqui em vão
E mantém comigo estreitos laços...

Báh, ela é a poetisa mesma em mim,
Entidade suspeita e perigosa
Com seu noturno cheiro de jasmim
E de dia exalando a pura rosa.

Eu a sigo fiel, como criada
Sempre esperando por ela ser amada
E que me faça uns versos pelo menos...

Mas ela a si mesma pinta e borda,
Deixando-me na sombra, de somenos,
Que só estou aqui pra lhe dar corda...

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14/11/2016

sábado, 12 de novembro de 2016

O crivo (de Alma Welt)

Meu pai me disse um dia, enternecido:
"Foste tomada, Alma, por Poesia,
E a verás onde antes não havia,
E o mundo ganhará novo sentido..."

Mas minha mãe, consternada, ajuntou:
"Pobre Alma, agora estás perdida!
Não terás paz nesse mundo que mudou
Somente em tua mente enlouquecida."

"Não casarás, não terás filhos, secarás,
De ti os homens bons se apartarão,
E a solidão será a terra que herdarás..."

Assim, entre anátema e incentivo
Contando apenas com meu próprio crivo,
Eu seguiria, como os seres todos vão...

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12/11/2016

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Aos que morrem (de Alma Welt)

Nossos pares no mundo vão morrendo,
Nossas Musas com eles também vão;
Vão-se os dedos com os anéis, doendo,
Vão-se os dentes, os cabelos, e a ilusão.

"Queres viver pra sempre?" Diz o gringo
Apontando a arma para um tolo.
E de repente, nesse instante, claro, bingo!
Somos nós ou sou eu sempre nesse rolo...

Ah! "Jovem para sempre", na canção...
Quanta ilusão em nós plantada!
Nada "vai ficar bem," garanto, nada!

A Terra roda às tontas no universo,
Na minha palma ainda gira o meu pião:
O mundo vive num imenso sonho imerso...

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11/11/2016

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A las cinco de la tarde * (de Alma Welt)

Vivemos na iminência da desgraça,
Eis porque viver é um privilégio
A cada dia o fio mais se esgarça
Desde aqueles belos dias do colégio...

Não sabíamos que o tempo era contado
E pensávamos viver eternamente;
Cada nova experiência era um achado,
E o ponteiro caminhava lentamente

Até mesmo para a hora da saída
"A las cinco de la tarde", auspiciosa,
Quando então recomeçava a vida...

Fluentes mas cheias de "agoras"
Que a memória nossa ainda goza,
Como eram belas, então, as novas horas!...
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10/11/2016

Nota
* A las cinco de la tarde verso famoso do poema "La cogida y la muerte", do livro "Llanto por Ignacio Sanchez Mejias", de Frederico Garcia Lorca. No poema de Lorca essa é a horas sinistra e fatal da morte do toureiro famoso. Aqui no poema da Alma é a auspiciosa hora do fim da jornada de cada dia das aulas do ginásio, quando então, para ela a verdadeira vida começava...

terça-feira, 8 de novembro de 2016

O Armário (de Alma Welt)


"Manter dignidade é necessário
Independente de alegria ou dor;
A coragem pra sair do armário
É a mesma para preservar o amor."

Nossa professora discorria assim
No ginásio, tão cercada de sorrisos
Das gurias, flores tontas de jardim,
Ratinhos sem coragem para os guizos.

Mas eu fui a única a abrir a porta
Em juízo diante de uma promotora
Feroz, que só queria vê-la morta...

Mais de uma caímos em seus braços,
E quão bela era a nossa professora
Antes de reduzirem-na a pedaços!...

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08/11/2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A Terra do Engano (de Alma Welt)

Tão belo quão difícil é estar vivo,
Por certo não é tarefa pra amador,
Passar pelo funil e pelo crivo,
Atravessar a dor e o Não, do Bojador. *

Como os nossos antigos navegantes
(também tenho sangue açoriano), *
Por mares navegados nunca dantes *
Vir parar numa terra só de Engano...

Como é dúbia a Terra dos Prazeres
E do ouro de tolo, tão mesquinho *
Dos que refundam terra que não é deles! *

E o saque continua à revelia
De um povo herói cobrado, pobrezinho, *
Com altos juros ao sol do meio-dia...

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07/11/2016

Notas
* Atravessar a dor e o Não, do Bojador. - Alusão ao verso do poema Mar Português do livro Mensagem de Fernando Pessoa: "Quem quere passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor ". A dor e o Não* - alusão ao Cabo Não, no noroeste da Africa, no Marrocos, limite conhecido dos primeiros navegadores portugueses antes de chegar ao cabo Bojador, para além do qual começava o desconhecido, o Mare Tenebrum, Mar Tenebroso...

*também tenho sangue açoriano - A mãe da Alma Welt, Ana Morgado, era neta de açorianos, emigrados para Santa Catarina.

*Por mares navegados nunca dantes - simples inversão do verso de Camões no Lusíadas: "Por mares nunca dantes navegados.

*... ouro de tolo, tão mesquinho - o minério dourado chamado "pirita", também conhecido como "ouro de tolo", que muitas vezes engana mineradores inexperientes.

*Dos que refundam terra que não é deles - alusão à atitude dos "descobridores", que vinham e "fundavam" terras já povoadas a milênios.

"De um povo herói cobrado, pobrezinho - trocadilho com o verso do Hino Nacional Brasileiro: "de um povo heroico o brado retumbante... "

sábado, 5 de novembro de 2016

Prece da Alma (de Alma Welt)

Senhor Deus, poupai-me de morrer,
Fui gerada pelos versos de sonetos,
E, bem sei, nasci longe dos guetos,
Ruiva e bela sem nem mesmo merecer...

Sendo eu só poesia, não apagai
A minha nítida mas frágil realidade
E deixai-me em ao menos um hai kai
Que me dê alguma vã posteridade!

Sou tênue, diáfana, dependente
Do poeta em que habito docemente
Enquanto ele for puro e fiel...

Mas se me apagares, só o que temo
É que morro não apenas no papel,
Morre o rio em que navego e remo...

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05/11/2016

O Desassossego (de Alma Welt)


Adão e Eva - de Henry Fuselli


O Desassossego (de Alma Welt)

O desassossego move o homem,
Bem mais que a detratada ambição,
Diante da libido as contas somem
E o ouro desempenha outra função.

Dourados sonhos, jóias e cabelos,
Ainda mantêm a antiga cotação
E o homem, há muito, pra obtê-los
Se debate sem escrúpulo e sem noção.

O prazer rege o mundo, antiga face
De Lúcifer, o eterno descontente,
Sem que novos descaminhos ele trace.

Pobre homem escravo do desejo
Desde quando reprimido de repente,
Sem tempo nem pro seu primeiro beijo!

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05/11/2016

A Fera na Selva (de Alma Welt)

A beleza da vida é uma escolha,
Cada um que faça a sua parte,
Ervas más ou as belas rosas colha
Conforme sua inclinação e arte.

Bem sei que a rigor o mundo é mau
Mas pode ser domado em nosso âmbito
Como um leão criado no quintal
Se falsa rima for o mundo que eu habito.

Mas não... Prefiro a fera em sua selva
E não preciso viajar pra ver o bicho,
E pôr meus pobres passos noutra relva.

Interessa é o princípio, a liberdade
Que cada um desfruta no seu nicho,
Feroz é quem o espaço alheio invade...


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05/11/2016

Os aventureiros (de Alma Welt)

Depois que rodei o mundo um pouco,
Voltei pra casa e aqui fiquei a esperar
Que os amigos com seu sonho louco,
Todos também voltassem para o lar.

Vinham ecos (os anos se passaram)
De algumas suas façanhas e fracassos
E poucos, na verdade, retornaram
Para conferirmos nossos passos.

Mas um deles disse: "O mundo é vasto,
Maior que nossos sonhos de grandeza
E o nosso melhor fôlego foi gasto..."

"Alma, te vimos lá do alto do Himalaia,
Nos esperavas aqui sentada à mesa,
E havias 
posto a tua melhor saia..."

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05/11/2016

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O horror do mundo (de Alma Welt)

Quantas vezes vejo o horror do mundo,
E somente o vejo assim e nada mais.
E então não há como ir mais fundo
Menos ainda como, assim, voltar atrás...

E grito para o mundo: És pestilento!
Tua bela natureza mal consola!
És, isto sim, como o tal pão bolorento
Que por fora ainda é bela viola...

E corro, e me debato, ergo o punho,
Me revolto contra o nosso pobre Deus
Que permite a confusão que testemunho.

Então, de repente, há uma virada,
E como os mais dúbios servos Seus,
Digo: "Perdão, meu Deus: Não falei nada!"

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04/11/2016

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A segunda chance (de Alma Welt)

Temos só duas chances nesta vida,
De a limpo nos passarmos com emendas,
E alcançarmos a Terra Prometida,
Pois estão dentro de nós as suas sendas.

Há, então, segunda chance verdadeira
Se carregamos o fracasso da primeira
Com seus estigmas, dores e vergonha
Que compartilhamos só com a fronha...

Com a nossa Tróia a assombrar-nos
Podemos afinal transfigurar-nos
Pela ação redentora da catástrofe,

Os bêbados ou ridículos que fomos,
Os loucos saltimbancos do desastre,
Chegando à terra dos dourados pomos...

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03/11/2016

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Pesadelo (de Alma Welt)

Eu gritei ao sol de Deus e seu poder
E corri como se corre de um perigo;
Não havia onde chegar nem esconder,
Não havia por ali um só amigo...

Tudo eram névoas na coxilha
E o mundo estava ainda mais vazio,
Cercada que eu estava como ilha
E só minha solidão era o navio.

E novo grito dei mas de alegria,
O navio, a ilha, a névoa não havia
Pois acordara eu do pesadelo...

Então, envergonhada e mais afável,
Vi que Deus fez o mundo suportável,
Tanto Lhe atormenta o nosso apelo...


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02/11/2016

O Ódio (de Alma Welt)

Revelou um peão velho aqui da estância,
Num fogo de chão de bomba e cuia,
Que malgrado sua fama de constância
Seu casamento fora há muito pra cucuia.

E afirmava: Dona Alma, tenho ódios!
Bah! O ódio que eu tenho, dona Alma,
Da minha mulher desde os primórdios
Do meu casamento, não se acalma...

"Não se deitam vosmecês no mesmo leito",
-Eu chocada perguntei- " é isso vero?"
E ele disse que não, de nenhum jeito,

Mas que encontrava pronta a janta,
A casa bem cuidada e com esmero
Flores nos vasos, os chinelos e a manta...


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02/11/2016