quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Alegoria (de Alma Welt)


Alegoria Alma Welt- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014, 100x150cm
 

Alegoria (de Alma Welt)
(sobre um quadro do Guilherme de Faria)

Estava lá meu anjo e me seguia,
Enquanto eu me levava pela mão,

A mim mesma quando só era guria,
Meu presente e meu passado em comunhão.

E eu apontava o fumo de um navio
Que ao longe se perdia no horizonte
Como queimasse o destino meu pavio
Enquanto jaz a minha barca sobre o monte

Que era só um barranco frente à casa
E derradeira morada de meu barco
Que coberto pelas ervas já não vaza...

Atrás meu cão corria e dava salto
Enquanto um corvo descia feito um arco
Malgrado o gesto do meu anjo para o alto...

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Resumo da ópera (de Alma Welt)


Quem sou eu pra questionar o absurdo
Desta vida em que fomos atirados
Com alguma raiva e um baque surdo
Após gritos lancinantes e irados?

Começamos meio mal, sim, convenhamos:
Báh! Expulsos do casulo mas sem asas,
Como as pequenas larvas nos portamos
No efêmero aconchego destas casas...

Depois, risos nervosos, soluçantes,
A febre dos segredos e conflitos
Atrás de portas por onde vazam gritos.

De repente, quer esposas ou amantes
Revivemos velhas sagas e os mitos,
E a vida faz sentido por instantes...

domingo, 17 de agosto de 2014

O Grande Circo (de Alma Welt)



                                                              O circo - Portinari

 O Grande Circo (de Alma Welt)

O grandioso Circo a que pertenço
E planejado por mim quando guria,
Tem da humanidade o rosto imenso,
Quase todas as formas da Poesia.

E não ficará de fora quem não paga:
Passa por baixo, o pobre, desta lona,
E o palhaço, o medo não mais traga
Ao menino mais sensível e à chorona.

Animais permaneçam em suas selvas
E não ouviremos rugidos na cidade,
Deserto de cimento e poucas relvas...

Todos nós equilibristas, saltimbancos,
Trapezistas da fatal eternidade,
Um picadeiro sem redes, nossos campos...

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Alma e o Anjo (de Alma Welt)

 

    Alma e o Anjo - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014, 100x100cm

 Alma e o Anjo (de Alma Welt)

Um anjo apareceu na minha árvore
Com tocha flamejante, desabando
E pondo-me branca como o mármore,
Com o dedo em riste me apontando.

Pasma então desconfiei de sua fé
Pois não o acompanhava um querubim
Mas um duende que estava ali ao pé *
Enquanto o anjo se dirigia a mim:

- “A ti mesma, Alma gentil, não punirei
Por teres devorado o sábio fruto
Que é fatal prerrogativa de meu rei”;

“Não foste a cruel Lilith, nem Eva...
Anima, não alma em estado bruto,
És de toda solidão a mais primeva!” *

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Notas:
* Pois não o acompanhava um querubim
Mas um duende que estava ali ao pé " - O fato do anjo não estar acompanhado de um querubim, mas de um duende, e portar uma tocha, não uma espada, nos remete à idéia do anjo rebelde, Lucifer (que significa portador da Luz), tanto mais que ele se refere ao seu "rei", não a Deus

* "És de toda solidão a mais primeva” - Era de se esperar que o anjo dissesse: "És de toda Criação, a mais primeva!" Mas dizendo "solidão", o anjo (ou a Alma) levanta uma curiosa questão poético-metafísica...
 

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Acalantos (de Alma Welt)

                                               Nau catarineta - lito de Guilherme de Faria

Acalantos (de Alma Welt)

Há poetas que são grandes falastrões...
Digo isso por mim e outros tantos.

É fato que a alguns, mais canastrões,
Faltou-lhes em criança os acalantos

Que sem dúvida são canto essencial,
Diretamente da alma ao coração,
Com um mínimo de apuro formal
Evitando somente a rima em “ão”.

Vêde como tudo está contido
No pavão e no boi da cara preta
Que de cima do telhado foi ouvido

No berço aconchegante a balançar,
Que é a nossa nau catarineta
Que afinal em Portugal vai aportar...



quarta-feira, 23 de julho de 2014

“Forever Young” (de Alma Welt)

Pintura de Georges de La Tour

“Forever Young” (de Alma Welt)

Estamos todos em tela a nos pintar,
Sim, nosso autorretrato convincente,
Querendo ou não nosso rosto fixar
De modo afinal mais consistente...

Não há, pois, meios de falsificarmo-nos,
Que, se inepta, a pintura nos revela
Tão bem ou mal quanto as daqueles monos
A quem damos pincel, tintas e uma tela.

Mas vede como a carne se derrete
Como vela de cera num serão
Que é a vida que tanto só promete

E faz crer que amanhã é novo dia
Na vã vigília do insone coração
Que pintava enquanto a cera derretia...




segunda-feira, 21 de julho de 2014

Filosofia de ateliê (de Alma Welt)


Pro Destino o desejo pouco conta,
A mais louca ambição só o diverte.
Só nossa grande arte lhe é afronta
E nos cobrará logo e solerte:

Uma bala no peito, um avecê
Um enfarte ou envenenamento;
Um avião que cai, não com você 

Mas com toda sua obra, num momento...

Que tola conclusão me coube agora!
É somente a condição humana:
Se viemos também temos de ir embora...

Mas nos resta o prazer da pincelada,
Ou de tudo o que na vida nos irmana,
O resto é silêncio... não é nada...


______________________
Notas
* ...ou envenenamento - Alma parece aludir à morte do nosso grande pintor Portinari, que morreu envenenado pelas tintas...

*Um avião que cai, não com você / Mas com toda sua obra... - Alma parece estar se referindo ao episódio acontecido com parte da obra do grande pintor Manabu Mabe, que voltava de uma retrospectiva e se perdeu num desastre aéreo, em que o pintor pessoalmente não se encontrava a bordo...



 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Não mais miro poentes (de Alma Welt)


Não mais miro os poentes reclinada
Na cadeira de balanço da varanda,
Nem passeio a esmo pela estrada
Onde a memória viva ainda anda;

Não mais na coxilha escrevo versos
A saltar pequenas poças de manhã
Onde nascem os sonetos controversos,
Testemunhos finais de meu afã;

Não mais tenho estes meus cabelos louros
Longos, ruivos ou dourados, nunca soube,
Despertando olhares vivos entre os mouros;

E eis-me triste e velha dama espectral
De vasta e branca cabeleira que me coube
Quando as flores desertaram meu quintal...

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A Fronteira (de Alma Welt)


 No amargo fim chegar sem dissolver-se,
Sem sequer desintegrar-se ou derreter,
Eis pra nós o mais difícil de obter-se,
Já que o fim nosso é só morrer

Que é o ponto final comum a todos,
Que nos chama, nivela e absolve
Pois havemos de voltar aos mesmos lodos,
Que desde sempre a terra nos envolve...

Mas à beira do abismo do universo
Chegar naquele ponto fronteiriço
Onde os astros experimentam seu reverso

E dizer: “Eis-me, estou pronto: bem vivi!
Cansei até... já posso dar sumiço,
Fui sempre o herói de mim e não fugi!”

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Anjo no Balanço (de Alma Welt)

                         Anjo no Balanço - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014, 100x100cm

Anjo no Balanço (de Alma Welt)

Naquela árvore rubra do meu horto
De que eu nunca ousei comer o fruto
Mas deixo meu balanço em ponto morto
Para os puros devaneios que desfruto,

Vislumbrei numa tarde o anjo branco,
Jovem ruiva ocupada em balançar
Enquanto entoava um acalanto
Como quem a si mesma quer ninar.

“O sonhado só remete ao sonhador”,
Diz do “código dos sonhos” o axioma
Que desmente em nós o expectador...

Então soube: era eu mesma que eu via,
Que dos meus caminhos todos era Roma
Mas que balançava e não escolhia...
 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Calafate (de Alma Welt)


                           Barco na Tempestade - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2001, 20x20cm
 
A Calafate (de Alma Welt)

Guria eu tinha tudo pra dar certo:
Beleza, inteligência e coração;
Tinha caráter e um olhar esperto,
“Tenía angel” e poesia por condão.

Quem diria eu dar com os burros n’água!
Embora ouvisse minha avó Frida dizer
Que “poesia boa é a que tem mágoa”,
Eu não tinha bons motivos pra sofrer...

Báh! A vida sempre dói, é nossa sina,
E o fracasso vigia os nossos passos
Como agourenta ave de rapina...

Mas agora que a maré sobe e inunda,
Sou a calafate que enche espaços,
Enquanto o meu pobre barco afunda...

terça-feira, 3 de junho de 2014

Alma (de Alma Welt)

 
 
                               La Liseuse-  Jean-Jaques Henner - (1829 – 1905) 

Alma (de Alma Welt)

Houve tempo em que eu prezava ir à missa
Com um lenço na cabeça e um breviário.

Na verdade era guria, em Rosário,
E devia ser ingênua, por premissa.

Eis então que o padre interpelou-me
Para, curioso, investigar a minha fé
Por um gritinho fino que escapou-me
Durante um sermão em que fui ré.

Mas logo o bom padre percebeu,
Pousando minha mão em sua palma,
Que o centro era sempre e mesmo eu.

E disse: “Filha, não és nada devota,
Ou estás a venerar tua própria alma,
E isso, por princípio, me derrota”...
 


segunda-feira, 2 de junho de 2014

A Vida e a Morte (de Alma Welt)

                                       Morte e Vida - pintura de Gustav Klint

A Vida e a Morte (de Alma Welt)

Temos tudo que a Vida necessita
Para que a desfrutemos plenamente,
Com cinco ou seis sentidos (como a fita)
E um mistério imensurável pela frente.

As perdas e fracassos fazem parte
Para que as vitórias celebremos;
Nossa morte, da vida a contraparte,
É pra mais valorizar o que vivemos...

Mas quê estou dizendo? Uma maçada!
(para usar um termo antigo e brando)
A Morte é horrenda e desgraçada!

E pior: não faz sentido, ninguém quer
Nem se cogita o como e o quando,
E vivemos qual se Morte não houver...


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Ícaro (de Alma Welt)


                                      A queda de Ícaro - Pieter Bruegel 1558

Ícaro (de Alma Welt)

Grandes ratos roem a vida se o deixamos:
O medo, ciúme, ódio... tão mesquinhos.
São pestes por princípio e acalentamos
No seio qual serpentes nos seus ninhos...

Descartemos a baixeza que nos puxa
Para baixo qual pseudo gravidade
Atua sobre a forma mais gorducha.
Não basta o peso físico da idade?

Mas saltar, voar, abrindo nossas asas,
Prerrogativa final do nosso instinto
Que um dia construiu mais do que casas

Com penas de corujas, cera ou breu,
E falhando despencasse ao mar Egeu,
Quis chegar ao sol, de um labirinto…

terça-feira, 13 de maio de 2014

Nau de mim (de Alma Welt)


                                          Nau - litografia de Guilherme de Faria

 Nau de mim (de Alma Welt)

Vivi como princesa e nem quis sê-lo,
Venerada por ser bela, quê vergonha!...

Num mundo desigual e em desmantelo
Eu tinha meu diário e minha fronha...

Dos meus tempos, cá não foram nada feios,
Não terei jamais direito de queixar-me...
Ri, cantei, dancei, amei, dei os meus seios
Para os lábios daquele a quem quis dar-me.

Quê importa ser tão branca, rubros lábios!
Como vermelhos são estes meus cabelos
Não desmentidos sequer pelos meus pelos!

Aplicada meditei, li e escrevi;
Meus versos me guiaram, astrolábios
De uma nau de mim em que me vi...

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O Eterno Jogo (de Alma Welt)


                                       O castiçal e o jogo de cartas - Georges Braque, 1910


O Eterno Jogo (de Alma Welt)

Hei de saber o sentido disso tudo,
Por quê tantos poemas e delírios,
Por quê tudo é cambiante e eu não mudo
Mas fico em mim fluindo como os rios?

Hei de saber o porquê de ser poeta
Quando em volta nada corrobora
E todos têm em mente outra meta,
A jogar como se nada fosse embora.

Vão-se as horas, minutos e os segundos
E eu só penso em torná-los tão floridos
Como aqueles terrenos mais fecundos...

Mas finalmente cercada de beleza
Que transformei dos lances mais doídos,
Porei as minhas cartas sobre a mesa...

terça-feira, 15 de abril de 2014

A Razão do Soneto (de Alma Welt)

                          O Pampa de Alma Welt - de Guilherme de Faria, 2002

 
A Razão do Soneto (de Alma Welt)

Fiz o que pude embora fosse pouco
Pra deixar algo de belo e também bom
Neste mundo, convenhamos, meio louco,
Sem precisar mudar o timbre e o tom.

Fluidos versos, catorze, e mais a rima,
Doze sílabas por puro e vão capricho;
Uma canção, uma festa, uma vindima,
Onde encontrei meu verdadeiro nicho.

Mas por quê ?- me perguntas- quê diabo
Te fez querer esse esdrúxulo formato
Como se fora a baba do quiabo?

Manter minha rédea curta, isto sim,
Não pra evitar a disparada pelo mato,
Mas porque a terra é plana e não tem fim...

domingo, 13 de abril de 2014

Propósito (de Alma Welt)


                         John Keats ouvindo o rouxinol- de Joseph Severn  1845

Propósito (de Alma Welt)

Que Deus me guarde de toda fealdade,
Sobretudo da que possa haver em mim.
Mas se é da alma a responsabilidade,
Toda maldade, por grotesca, terá fim.

A Verdade e a Beleza andam quites,
De guardá-las trata enquanto podes.
A Beleza é a Verdade disse Keats
Na mais pura e bela de suas odes.*

Cantemos e dancemos entre as flores
Mas não deixemos de o solo nu pisar
Onde brotam as mágoas e as dores.

Se ao carente for capaz de dar beleza
Pelo pão que não me sobra para dar,
Possa ao menos enfeitar nossa pobreza...

______________________________

Nota
* A Beleza é a Verdade disse Keats
Na mais pura e bela de suas odes.* - Alma alude à "Ode a uma Urna Grega", um dos mais famosos poemas de John Keats.
Os dois últimos versos são assim:

 "Beauty is truth, truth beauty,"
that is all Ye know on earth, and all ye need to know.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O espelho e o eco (de Alma Welt)



                                                       Imagem de Parablev

 
O espelho e o eco (de Alma Welt)

O espelho é um amigo lisonjeiro
Mas não devemos nele tanto confiar.
Narciso não o tem só no banheiro
Pois gosta de em si mesmo se banhar.

Como podes confiar nesse chalaça
Que te mostra como flor enfeitiçada
Se tornando amiúde tua cachaça,
E deixar tua ninfa abandonada?

Báh! Quebrei os meus espelhos, não confio,
Tenho medo demais do seu fascínio,
Abismo onde ando sobre um fio...

Antes ouvir meu Eco que me adora
Mas tornou-se pedra e não escrínio
Que ao abrir liberta minha pandora...

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Forçando a rima (de Alma Welt)


Não vim para brigar, não sou de briga,
Sou mulher demais, no bom sentido,
Desaforo me magoa, faço figa,
Resistirá o meu coração partido.

Minha luta é com a palavra no meu verso
Somente pra expressar o que mais sinto
Até quando em mim algo perverso

Insiste em acordar o velho instinto.

Mas se alguém me fizer a vã pergunta:
Para quê então a rima ao versejar?

Digo: é graxa que o eixo velho unta...

E se a alguns posso mesmo melindrar
E rubores levantar ao rubicundo,
Falei de tudo o que é humano neste mundo...

O peixe ensaboado (de Alma Welt)

Aquarela de Guilherme de Faria
 

O peixe ensaboado (de Alma Welt)

Se não cri também não blasfemei
E mantive o meu decoro ante o sagrado
Dom da Vida, que esta tanto amei
Quanto a Morte me tem horrorizado.

Até aqui fui comum, nada de novo;
Certamente não fui muito original
Nesse medo que mal inibe o povo
Mas que atormenta tanto o Ser mental.

Jamais estarei pronta para ir-me,
Mas deixa que eu aqui me desabafe,
E como peixe ensaboado fique firme.


Não renego um só passo do percurso,
"Rien de rien" como cantou Piaf,
Que à vida me agarro como um urso...

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Chorar (de Alma Welt)

O Pranto de Alma Welt - óleo s/ tela de Guilherme de Faria
 
 
Chorar (de Alma Welt)

Se vierem a ti em busca de consolo,
Báh! Não te eximas conquanto seja vão!
Aproveita que te ouvem, embora seja tolo
Dar conselhos em vez de uma canção.

Então canta, dança, começa a palhaçada
Pois mais vale um riso, ao menos um esgar,
Que melhor foras ridículo que nada!
O ser humano é infantil e quer brincar...

Mas, conselhos? Evita o quanto podes,
Pois certamente hão de voltar-se contra ti
No momento que produzam novos “bodes”.

Pensando bem, faça tu o que quiseres
Somente a vida e cada um sabe de si.
Mas chorar? Antiga arma das mulheres...

segunda-feira, 10 de março de 2014

O Embalo das Horas (de Alma Welt)


Foi-se a manhã da juventude, docemente,
Como o próprio dia, bem mais tarde
Dá seu lugar ao nostálgico poente
Que vem adormecer como quem arde...

Assim foi minha vida, nesse embalo,
De precário equilíbrio na balança,
E com as horas escoando pelo ralo
Das promessas vazias da esperança.

Sonhei, foi o que fiz e o quanto pude,
E agora mesmo só existo no papel
Ou tenho no soneto a completude.

Mas se há algo nisso de fracasso,
Também tem um pouco deste céu
Que insistiu em dar-me o seu compasso...

domingo, 9 de março de 2014

Os risos (de Alma Welt)


                                               Pintura de William Hogarth

Os risos (de Alma Welt)


Ainda ouço os risos dos amigos
Que alegravam este velho casarão,

Soando agora quais ecos antigos
Que se perdem em meio à escuridão.

Revérberos de horas tão distantes,
Esmaecidos o seu brilho e nitidez,
Ficaram para sempre no que é antes
Qual se fora uma eterna gravidez.

Nada se cumpriu, nem a metade,
Como todos nos frustramos mais ou menos,
E os risos são a única verdade...

Neles é que estávamos presentes
E tudo era irrisório ou de somenos,
Mas como eram bonitos nossos dentes!...
 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Meu Mito (de Alma Welt)


 De mim mesma ousei fazer meu avatar...
“Que dizes?”- se espantam os mais céticos,
A tal modéstia sempre prontos a cobrar
Com seu ares e pundonores éticos...

“Não vês que passarás por cabotina,
Cantando a ti própria e no deserto,
Ou bancando tua própria cafetina
Sem sequer cliente algum que chegue perto?”

A tão banais vulgaridades eu diria:
“A modéstia da mentira é o apanágio
E das almas a suprema hipocrisia...”

Erigi em mim meu Mito verso a verso,
E tive que evitar meu próprio plágio
De tanto que amei meu universo...
 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O Balanço (de Alma Welt)

Estou pensando seriamente em ir embora,
Na verdade nada mais tenho a dizer.
Minha passagem termina aqui e agora
Tanto no conviver como escrever...

Bah! A vida consiste em teimosia
E é tudo o que tem a ensinar:
Resistir, lutar, é a sua poesia...
Deverei a cuia e a bomba repassar?

Mas, ai! b
alanço entre os extremos,
De uma aceitação meio passiva
E uma rebeldia, assim, dos demos...

Tanto faz que me reserve ou que me doe
Oscilando, racional e instintiva...
Assim tenho eu vivido, Deus perdoe!

 

domingo, 26 de janeiro de 2014

O Naufrágio da Esperança (de Alma Welt)



                                 O Naufrágio da Esperança -Caspar David Friedrich 1824

O Naufrágio da Esperança (de Alma Welt)

Estamos, pois, navegando em alto mar,
Ou pensas que isto aqui é brincadeira?
Acaso avistas cais para atracar?
Atrás de nós somente nossa esteira...

O rumo é incerto, não há bússolas
Alguns de nós se guiam por estrelas,
Outros já a pele se abre em pústulas,
Estrelas ou feridas, vamos vê-las.

Quem na terra pense ter plantado os pés,
Ingênuo e semi-louco é certamente,
Ou vem fazendo uma leitura de viés...

Quando afinal nos apanha a tempestade
E a Esperança naufraga e nos desmente,
O portal atravessamos, na verdade...
 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Necessidade, mãe da Poesia (de Alma Welt)

 As Parcas e o fuso de Ananke
 
Necessidade, mãe da Poesia (de Alma Welt)
 
Do necessário nasce o meu poema
E nunca de uma simples veleidade.

O soneto é bom quando não teima
Em se impor por tédio ou por vaidade.

Ananke é minha deusa universal
Que sobreviveu aos velhos deuses
E veio justo parar no meu quintal
Atravessando o Tempo desde Elêusis.

Necessidade é o que me põe ativa
E por isso me sinto tão carente
Do puro verso que me mantenha viva.

Sim, à deusa entrego meu destino
Cujo fio ela cortará co’o dente
Após tanto fiá-lo, assim tão fino...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O Turbilhão (de Alma Welt)


William Blake- O Turbilhão dos Amantes (Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, no Segundo Círculo, do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri)

O Turbilhão (de Alma Welt)

Temos pouco tempo pra estar juntos
Qual espectros de passage
m pela Terra
Como trêfegos projetos de defuntos,
Alguns cantando enquanto a turba berra.

Vêde: a multidão se acotovela
Nas ruas e nas praças, nos estádios,
Ou cada um empunhando sua vela
Desde as catacumbas sob os gládios.

Pobres nós, humanidade tão festiva!
No enganoso lazer após a estiva,
Quê nos resta senão rir, nos esbaldar?

Nos debatemos nas águas e nos ventos,
Abraçados abrandamos mil tormentos
No turbilhão da vida, sem pousar...

sábado, 18 de janeiro de 2014

Palavras à Poesia (de Alma Welt)


Esboço da tela O salgueiro florido da Alma - de Guilherme de Faria
 
Palavras à Poesia (de Alma Welt)

Poesia, és tênue, rara, rarefeita...
Quantas vezes não consigo te alcançar,
Ponha-me ou não em vestes de colheita 
Ou pise uvas qual se fosse no lagar...

Caminhando minhas trilhas na coxilha
Que tanto, tanto, já me viram versejar,
Temo, às vezes, me negues como filha,
E, ai Portugal, sinto perdido o meu lugar!

Sintonia busco, fina, tão difícil,
E rimas ricas que não sejam forçadas
Mas que caiam precisas como um míssil

Mas inútil se revelam, não alivia,
Pois preferes as primeiras pinceladas
Na tela do pintor quando vazia...

sábado, 11 de janeiro de 2014

A Usura (de Alma Welt)


 
 
A Usura (de Alma Welt) 

O quê podemos nós contra a Usura
Que nos cerca como sítio a um castelo,
E Pound disse ser Contra Natura
E de onde nada sai que seja belo?


Ao dinheiro todos fazem reverência
Mas refiro-me à essência e não à prática
Que pode vir cercada de excelência
Quando não se reduz à matemática...

Juros cobrados é o que nos escraviza
E faz de um homem simples, miserável,
E um solo estéril onde ele pisa.

O banqueiro é o guardião do meu Dinheiro
E se amiúde tem a face amável,
A raposa é quem guarda o galinheiro...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Quê podemos ? (de Alma Welt)




                             O País da Cocanha - Pieter Bruegel, o Velho 1567

Quê podemos ? (de Alma Welt)

Quê podemos nós fazer que o Tempo pare
Sem fugir pra paraísos perigosos

E alienantes fumaças rastafari
Ou sonhos de Utopia preguiçosos?

Só Arte, muita arte é a resposta,
Há muito tempo a solução sabemos.
Os náufragos já foram dar à costa
Embora haja quem procure os remos...

Deus, não o demônio, Arte nos deu
E queres mais, ó ser insaciável?
Tal maravilha por acaso não valeu?

Eu sei, és homem, ingênuo ser mesquinho,
Queres voltar ao Paraíso inolvidável,
Pra isso imitas Deus só um pouquinho...

O Tempo Suspenso (de Alma Welt)




                                 Sleeping Beauty - Victor Gabriel Gilbert 1847 - 1933

O Tempo Suspenso (de Alma Welt)


Quisera suspender do Tempo o curso
Tal como implorava Lamartine

No seu lago feliz, mas sem discurso,
Que tempo não há que não termine.

Mas enquanto ele corre, que agonia!
Passa o tempo e nele a juventude
E com ela o próprio sonho que me guia
E que acalentei enquanto pude.

Mas se velha eu ficar, do que duvido,
Possa alguém, um poeta, dedicar
A esta Alma um poema nunca lido

Mas feito para mim em minha velhice
Como o soneto famoso de Ronsard
Às rosas e ao Tempo, e que este ouvisse...


_______________________________
 

Eis o soneto famoso de Pierre Ronsard (1524-1585) :

Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle,
Assise aupres du feu, devidant et filant,
Direz, chantant mes vers, en vous esmerveillant :
Ronsard me celebroit du temps que j'estois belle.

Lors, vous n'aurez servante oyant telle nouvelle,
Desja sous le labeur à demy sommeillant,
Qui au bruit de mon nom ne s'aille resveillant,
Benissant vostre nom de louange immortelle.

Je seray sous la terre et fantaume sans os :
Par les ombres myrteux je prendray mon repos :
Vous serez au fouyer une vieille accroupie,

Regrettant mon amour et vostre fier desdain.
Vivez, si m'en croyez, n'attendez à demain :
Cueillez dés aujourd'huy les roses de la vie.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Cigarra (de Alma Welt)


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 A Cigarra e a Formiga (gravura)
ilustração de Gustave Doré para a fábula de La Fontaine.

A Cigarra (de Alma Welt)

Fui tão feliz comigo, na verdade,
Que até me dá certa vergonha.

Ao redor, miséria e iniqüidade
Me indispõe um pouco com a fronha.

Cá neste belo pampa e casarão
O tempo se passou como num sonho.
Se plantei meus poemas no verão,
Inverno de sonetos já proponho.

Não me venha a formiga descompor
E desqualificar o meu talento
Pra rimar, metrificar, e pra compor.

A vergonha? Bem posso suportá-la.
Se outros prouveram meu sustento,
Vamos todos do vento para a vala...

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O Encontro em Samarra (de Alma Welt)




                               O encontro - foto de Geoffroy Demarquet

O Encontro em Samarra * (de Alma Welt)

Construamos nossa vida dia a dia...
Se o digo é porque há quem não o faça
E vá de roldão e à revelia,
Aos trambolhões ou em fumaça.

Viver é uma tarefa complicada
Que exige preparo e muita arte,
Do contrário tua vida é uma maçada
E é melhor tu ires a outra parte...

Na verdade não temos tal escolha
Pois temos que viver quase na marra
Antes que o Ceifador a todos colha.

Mas se pensas faltar à sua colheita
Mudando-te depressa pra Samarra,
Tens encontro, não farás essa desfeita...




*O Encontro em Samarra ( conto tradicional árabe)

"Havia um comerciante em Bagdade que mandou o seu servo comprar provisões ao mercado, e daí a pouco o servo voltou, pálido e trémulo, e disse: «Senhor, agora mesmo, quando estava no mercado, fui empurrado por uma mulher, no meio da multidão, e quando me voltei vi que fora a Morte quem me empurrara. Ela olhou-me e fez um gesto ameaçador; por isso, empreste-me o seu cavalo, e sairei desta cidade, para escapar ao meu destino. Irei para Samarra, e aí a Morte não me encontrará». O comerciante emprestou-lhe o seu cavalo, o servo montou nele, enterrou-lhe as esporas nos flancos e partiu tão velozmente quanto o cavalo podia galopar. Então o comerciante foi ao mercado e viu-me, de pé, entre a multidão; aproximou-se de mim e disse: «Por que fizeste um gesto ameaçador ao meu servo quando o viste esta manhã?». «Não foi um gesto ameaçador», respondi, «foi apenas um sobressalto de surpresa. Fiquei espantada por vê-lo aqui, em Bagdade, pois eu tinha um encontro marcado com ele esta noite, em Samarra».


Nós, Pandoras (de Alma Welt)


                                                  Pandora - Jules Joseph Lefebvre 1862

Nós, Pandoras (de Alma Welt)

Se ao fundo do Hades já descemos
E por divina graça retornamos,
Já não mais tememos deuses, demos,
E só com o Grande Chefe nós lidamos.

Fomos longe na tal bisbilhotice
Mas aconteceria, cedo ou tarde...
Povoamos esta terra de maldade
Por um pobre pecadilho, idiotice...

Mas, vêde, era só curiosidade!
A mesma da parelha original,
Tão pura e inocente, na verdade...

O mistério maior é a punição,
Que é cruel e desproporcional.
Façamos ao Supremo uma moção.
 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

As duas datas (de Alma Welt)


 
 
As duas datas (de Alma Welt)

Quem saberá de mim, depois de tudo,
Quando meu tempo se encerrar
E não for mais que um leito mudo
Com sua cabeceira lapidar?


Duas datas debaixo do meu nome,
Sugestivas para alguns poucos talvez,
Que lembrem da obra e do renome
Da poetisa que teve sua vez...

Báh! Quanta risível veleidade
Sonhar assim ingenuamente
Com outra vida, sim, posteridade!

Mas sonhar foi toda a minha vocação,
Desde os devaneios vãos da mente
Aos delírios mais profundos da razão...

domingo, 5 de janeiro de 2014

A vida (de Alma Welt)


 

Que coisa magnífica é a vida
Se podemos quase tudo experimentar...

Por dentro, que a alma é atrevida
Mesmo que, fracos, não saiamos do lugar!

Quê vôos, que mergulhos no indizível!
Quê aventuras de coragem e emoção!
Quanta loucura por nós mesmos risível
Quando plantado se mantém o pé no chão!

Toda a vida é interior, o resto é casca,
Aparência, por mais bela que demonstra
Sua feição que o tempo-vento masca.

Mas a sombra da maldade evitemos,
Que dentro em nós também ela se encontra,
E se adentrada não deixa que voltemos...

 

Alma exausta (de Alma Welt)














Alma exausta (de Alma Welt)



O quê mais quereis de mim? Me dei inteira
E já nem posso, a rigor, me recriar
Sem me sentir na banca de uma feira
Apregoando-me às dúzias, pra fechar...


Estou exausta, na alma fui promíscua
E dei-me em pérolas a torto e a direito
Quando mais deveria ser conspícua
E conservar-me sozinha no meu leito.

Báh! Bem que dizia a minha Matilde
Para eu restar em casa sossegada
E rezar para que ficasse mais humilde.

Dos cínicos não tenho a caradura,
A cada confissão fico arrasada:
Distribuí de graça a minha loucura...

sábado, 4 de janeiro de 2014

Palavras a uma donzela (de Alma Welt)





                                       Luar- Caspar David Friedrich (modificado)


Palavras a uma donzela (de Alma Welt)

Uma donzela quis bem mais saber de mim
Tendo lido o meu último poema,

Enquanto eu, cheia de escrúpulos por fim
Me senti enternecida mas com pena.

Ah! Jovem, se soubesses minha tristeza
Por minha escolha da vida em solidão,
Embora não trocasse essa clareza
Por uma forma diferente de visão...

Optei, sim, pela suprema lucidez,
Aquela mesma do limite da loucura
Que a outros mais parece estupidez.

E se agora te atrais por minha teia,
Cuidado, donzelinha que és tão pura:
Queimam-se asas na luz da lua cheia...

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A Senhora do Tempo (de Alma Welt)





                                                  foto: o Pampa devastado

A Senhora do Tempo (de Alma Welt)

Meus amores finalmente hão de voltar
Mesmo a terra estando pobre, devastada,

Se eu não tiver senão minha morada:
Esta casa, o jardim e o meu pomar...

Sou a senhora do tempo que foi meu
Pois que o dominei com minhas palavras
Em noites claras e outras como breu,
Em versos, minhas verdadeiras lavras.

O vinhedo? Esse foi-se com os ventos
Após tantas vindimas de alegria
Deixando agora gestos bem mais lentos...

Mas não lamento nada, que amei tanto
E plantei minha semente de poesia
No lugar das uvas secas e do pranto...

Contra a Peste (de Alma Welt)

O Doutor Peste - Máscara alemã da Idade Média

Contra a Peste (de Alma Welt)

Estar no mundo, entregue, desarmada
Só não de beleza e mente alerta
É a prerrogativa, minha, desejada
Por mim, desde que minh' alma foi desperta

Pela poesia que é dom de mergulhar
E ir mais fundo no coração das gentes
Ou mesmo o nosso então compartilhar
Com outros parecidos e exigentes...

Mas, por quê?- perguntas- O que ganhas?
Isso acaso aumentará o teu poder
Sobre o teu destino e suas manhas?

Sim, é isso mesmo, tu o disseste:
A poesia, se não aumenta o teu saber
É o único remédio contra a peste.