sábado, 28 de novembro de 2020

O espírito da vulgaridade (de Alma Welt)

Nele está contido o Mal do mundo
E embora alguns não vejam por descaso,
Risonha displicência de igual fundo,
Disfarçada de humor de curto prazo...

Matraquear de cacatua é o seu riso,
Às vezes risinho de uma hiena
Mas os ditos e arremates em voz plena
É que me fazem ver aonde eu piso...

Malícia é o seu dom perturbador,
Desconcertante já que passa por valor,
Amiúde por risível sutileza...

Só não vemos atuar na tenra idade,
Por imune que esta é à impureza
Do espírito da tal Vulgaridade...
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28/11/2020

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Perguntas que não me querem calar (de Alma Welt)

E se o fruto não era o da Razão
E estávamos perdidos no pomar?
E se o sacrifício foi em vão,
A quem então devemos reclamar?

E se a rota estava errada desde o porto
E fomos dar além da Taprobana
Se devíamos ainda estar no Horto
Vivendo da dieta de banana?

E se ainda não estamos prontos,
Por quê estamos a pagar o mico
Do vexame de sermos só uns tontos?

Se tomamos da História o bonde errado
E não tínhamos culpa nem um tico
Se o endereço certo era ao lado?


25/11/2020

Pequena Fábula (de Alma Welt)

"Fazer algum sentido, isto é tudo
O que a vida necessita normalmente.
Mas que não requeira muito estudo,
Para ser acessível a toda gente..."

Ponderava Deus, assim, com seu Ministro
Que, sabemos, era o arcanjo Gabriel,
Pois ainda não havia Jesus Cristo,
Ou não tinha este aceito esse papel. 

Então um, apelidado "Grande Irmão"
Pelos próximos, Lúcifer chamado,
Intrometeu-se e deu uma sugestão:

"Senhor, faça da Vida uma Xarada
Para que fique o Homem interessado
E me consulte em meio da jornada"...
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19/11/2020

sábado, 14 de novembro de 2020

A Ordem e o Caos (de Alma Welt)

"Manter-te íntegra num mundo em confusão,
Será o que te espera em desafio..."
Disse meu pai, me lembro, num serão,
Num momento em que eu só sentia frio.

Mas, pai (eu disse), que confusão é essa?
Será acaso este minuano frio?
Tenho o pala que me deste. É quente à beça.
Vou buscá-lo e não mais darei um pio. 

Meu pai olhou-me e sugou o chimarrão,
E disse: "Alma, vejo em ti a ordem pura,
Que do caos é a verdadeira salvação... "

"Quem como tu conserva essa candura,
Sem deixar de ser, também, inteligente,
Está salva, e segura, certamente..."
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14/11/2020

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Beleza e Amor (de Alma Welt)

"Alma, és um enigma"- disse alguém.
E eu me fiz um ar dúbio de mistério
Com um vago sorriso meio sério,
Assim, entre o deleite e o desdém...

Mas, é claro, pouco tempo suportei,
O riso transformou-se em gargalhada.
Sou assim: não levo a sério quase nada
Para além da voz poética que herdei.

"Da visão que sem querer, Alma, nos legas,
A Beleza só em parte te pertence
E por certo é um fardo que carregas..."

Olhei então a raiz da minha tristeza:
Se a solidão do belo só Amor vence,
Meu Amor se confundira co'a Beleza...
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13/11/2020

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Alma no balanço (de Alma Welt)

                                  Alma no balanço - o/s/t de Guilherme de Faria, 2018, 100x100cm

Alma no Balanço (de Alma Welt)

Armo com cordas um balanço em meu pomar
Na mesma árvore que viu a minha queda
Quando guria, que inocente quis me dar
Só ao ser que meu senso ainda seda.

E me ponho a balançar quando estou só
O que me faz lembrar e ver mais claro
Que ao desfazer da memória um certo nó
Me sobe na garganta, engulo e paro...

Mas minha árvore do fruto da razão
Não logra me dar conta de um pecado
Que de mim já nasceu com meu perdão

E me vejo cada vez mais inocente,
Retornando ao paraíso de repente
No embalo do meu balanço alado...
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12/11/2020

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Espelho meu (de Alma Welt)

Jurei jamais cobrir meu belo rosto
Sequer pra mero efeito de disfarce,
Pois com máscaras não me sinto a gosto
E nunca trairia a minha face. 

Hoje de manhã me olhei no espelho
E há tempos, acreditem, o não fazia.
Vi que o branco rosto meu sobressaía
Na moldura natural de tom vermelho. 

E perguntei, pois gaiata, não me manco:
"Espelho, espelho meu, seja bem franco,
Não me mintas jamais pra me agradar..."

E o espelho respondeu, pra meu espanto:
"Alma, um dia certamente vou trincar,
Até lá garantirei o meu encanto..."
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11/11/2020

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A Caverna dos Gigantes (de Alma Welt)

Acordando de mim mesma parti cedo,
Levando meu caderno de poesias
Como mapa do tesouro, mas sem medo
Das minhas próprias e intrincadas trilhas.

Logo encontrei a Caverna do Soneto
Coruscante de pepitas e diamantes
Mas vi que era um pátio de gigantes
E com eles, por certo, não me meto. 

Gravado estava o nome de Petrarca
Também o de Shakespeare estava à vista
Onde Dante deixara a sua marca.

Luzindo, o nome de Camões eu deparei, *
O Polifemo que encabeçava a lista
Com Florbela e Pessoa... e acordei.
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09/11/2020

Notas
*Luzindo, o nome de Camões eu deparei -
Trocadilho com a palavra luso (português)...
 
*O Polifemo que encabeçava a lista -
Alma designa Camões, que era caolho (perdeu um olho em batalha em Ceuta) com o nome do gigante (Titã) de um olho só, da Odisseia de Homero, que morava numa caverna que Odisseu e seus homens invadiram.


domingo, 8 de novembro de 2020

O Eterno Retorno (VII) (de Alma Welt)

Uma vida bem vivida é uma epopeia,
Mas me refiro mesmo às bem modestas,
Até aquelas de fogão ou de boleia,
Não dos que se esgueiram pelas frestas.

O desastrado, o perdedor e o canhestro,
Esses ocupam a base de amplo rol
Junto ao pobre sonetista com seu estro,
Que mal desfruta o seu lugar ao sol.

Mas de perto, todos eles, todos nós
Estamos numa nave entre perigos
Para voltar e refazer nossos umbigos.

Chegar à nossa casa, nosso porto
Edificado pelos nossos pais e avós
E fruir a maçã do antigo horto...
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08/11/2020

Aos meus antigos amores (de Alma Welt)

Meus amores, quanta pena tenho
Não de nosso leito o desempenho,
Mas do quanto empenhei de amor e arte,
De vós distante, de nós, em outra parte...

Alguns, desdenháveis do meu verso,
Do meu suposto "vício" da poesia,
Me pondo no minúsculo universo
De cama e mesa, depois louça na pia...

Mas eu vos canto, sim, pra compensar.
Éreis todos belos, ternos, imaturos,
E mesmo hoje gozo só de vos lembrar.

Creio tendes me esquecido porventura
Aqueles dentre vós que eram mais puros,
Porque nos outros, eu sei, não tenho cura...
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08/11/2020

As Origens do Mal (de Alma Welt)

Cedo apreendi o que era o Mal, apenas
Ao ver braços estendidos às centenas
De homens de uniformes, "di profilo",
E perguntei ao pai o que era aquilo...

E o velho desfiou teia de horrores
Que ele viu de perto na Alemanha
De sua juventude a mim estranha,
Eu mestiça de Germânia e de Açores.

E disse que o embrião veio da Itália
Dos romanos de uma era imperial
Que conquistaram a pobre velha Gália...

Mas na mordida da maçã em vez do figo,
Que começou bem ali no meu quintal,
Percebi um Mal, então, bem mais antigo...
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08/11/2020

sábado, 7 de novembro de 2020

Vingança Sutil (de Alma Welt)

Construir meu mundo foi preciso
Depois que fui flagrada no jardim,
Embora original não seja isso,
Que a todos cabe e não somente a mim.

Viver é recompor-se após o trauma
Da expulsão brutal de um paraíso.
Uns ficam aleijados em sua alma,
À espera só do Dia do Juízo...

Então consultei minha rebeldia
E cheguei rapidamente à conclusão
De uma vingança sutil em alegria...

E o consigo a ponto de girar,
Num frenesi de amor feliz e solidão
Com os braços abertos para o ar...
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07/11/2020

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Celebração (de Alma Welt)

Se celebro a cada dia minha vida,
Com um verso, um soneto, uma canção,
Esperando de mim mesma a acolhida,
Não façam ao Narciso uma alusão...

Me mantenho assim jovem e bonita
E não só para sair-me bem na fita
Mas por pura gratidão ao meu destino,
Que também Eco não sou, mas violino.

A beleza me impuseram como pecha
Para não reconhecerem-me outros dons,
Ocultando o arco hábil desta flecha... 

Mas não quero me queixar, fruir apenas,
Essa tão lenta mutação sutil de tons
A alvejar-me o ruivo das melenas...
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06/11/2020

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O livro proibido (de Alma Welt)

Nenhum livro nosso pai nos proibia
Dentre aqueles milhares das estantes
Que os olhos percorriam, hesitantes,
Até que um dedo afinal os escolhia. 

Mas leria eu a todos, eu sabia...
Eram questão de tempo e tão somente,
Pois cada livro deixava uma semente
Que no volume seguinte cresceria..

Mas, meu pai um dia um livro proibiu
Tirando da minha mão que mal o abrira,
Conquanto o único interdito entre mil.

Mas qual foi, lhe prometi não revelar
Pois há árvores que não devo plantar,
Que a roubada Razão nossa nos retira...
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05/11/2020

Infinitos jardins (de Alma Welt)

Sei que posso governar o mundo em mim,
Mas somente dentro em mim, ó meu amigo.
Minha alma é pois, sabeis, o meu jardim,
E os espinhos, os tolero e não persigo...

Mas pulgões e ervas daninhas não suporto,
E há tempos já me pus em pé de guerra;
Por isso, às vezes, este meu olhar entorto:
É que aqui dentro ocorre a luta pela terra. 

Cada um tem seu jardim, ao infinito,
Embora muitos queiram o contrário,
E o livre arbítrio nulo ou interdito...

Mas se Deus nos permitiu a liberdade
E não nos castigou pondo no armário,
Nos perdoou, Suas crianças, na verdade...
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05/11/2020


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Extremo Sul (de Alma Welt)

Eu vi chegar o peão cambaleando
Montado em sua sela meio troncho
Com uma mancha rubra no seu poncho
E foi logo em meus braços desabando.

Fomos ao chão: era pesado o infeliz,
E antes mesmo que a relva nos colhesse
Na pobre testa o sinal da cruz lhe fiz
E era como se já o conhecesse... 

De sua boca aproximei o meu ouvido
E suas palavras derradeiras escutei
Com um espanto que eu nunca tinha tido:

"Morro, Alma, nos teus braços, não no chão,
Pois direto para o Inferno enviei
O maldito que te nomeava em vão..."
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04/11/2020

Far South (by Alma Welt)

I saw the cowboy stagger
Mounted half crooked in his saddle
With a red spot on the poncho
And soon he was collapsing in my arms.
We went to the ground: the unfortunate was heavy,
And before the grass even caught us
On his poor forehead I made the sign of the cross
And it was as if I already knew him ..
I brought my ear close to his mouth
And his final words I heard
With a wonder I never had:
"I die, Alma, in your arms, not on the ground,
Because I sent straight to hell
The bastard who named you in vain ...
_______________________________

Free transliteration with rymes:

Far South (by Alma Welt)

I saw the cowboy stagger maddle
Mounted half crooked in the saddle
With a red spot on his darms
And soon he was collapsing in my arms.
We went to the ground: was heavy, the unfortunate
And before we lay down on the moss
On his poor forehead I made the sign of the cross
And it was as if I already knew him for a long date
I brought my ear close to his mouth
And his final words went to my brain
With a surprise I never had eard about:
"I die, Alma, in your arms, not on the ground,
Because I sent him straight to hell, like a mad hound,
The bastard that called you names in vain

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O Aceno (de Alma Welt)

Eis-me como quase em selva escura
Quando penso meu jardim ter alcançado.
Mal avisto de meu lar a forma pura
Da casa e sua varanda de sobrado...

Mal enxergo no jardim minha avó Frida
A conversar com seus botões perfeitos,
Como também de meus cães a acolhida
De seu amor tão cego aos meus defeitos.

Um silencio de uma paz de quarentena
Paira denso a começar pela varanda
Em que meu próprio vulto ainda acena.

Então ocorre, a mim, que esteja pronta,
E ao imortal coração que me comanda,
De que morri faz tempo e não dei conta...
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02/11/2020