quarta-feira, 31 de outubro de 2007


Capa do folheto "Sonetos Mitológicos da Alma", de Alma Welt, publicados pelas Edições do Pavão Misterioso (Ver na Livraria da Vila, da Alameda Lorena)

SONETOS MITOLÓGICOS DA ALMA ( de Alma Welt)

SONETOS MITOLÓGICOS DA ALMA



Índice

1. Prólogo (Teogonia )
2. Ariadne em Creta
3. Ariadne em Náxos ( Dionisos )
4. Narciso
5. Perséfone
6. Perséfone II ( Deméter )
7. Penélope
8. Penélope II (A Teia)
9. Helena de Tróia *
10. Psiqué
11. Psiqué II ( o Rato)
12. Psique III ( No Hades)
13. Epílogo ( O Triunfo de Psiqué )

* (este soneto foi recentemente descoberto, inédito, na Arca da Alma)

Alma Welt

Sonetos Mitológicos da Alma



Prólogo (Teogonia)

1
No princípio era Crono, como um fole,
Acasalou-se com Ananke, pois faminto,
Mas não a Adrastéia, que não minto,
Mas aquela que lhe deu tríplice prole:

O Éter, o Caos e o Érebo profundo,
E deles gerou o imenso mundo
Onde num ovo colocou o grande Zeus
Como o filho que escapou aos dentes seus.

Mas Ananke, a cruel Necessidade,
Tem, um dia, um ataque de saudade
Recordando sua pureza, e então se acalma

Ao resolver criar a bela Alma
Que nasceria mortal, nesse roldão,
E chamou-a Psiqué... em solidão.




Ariadne em Creta

2
Ariadne outrora fui, perdida
De amores por Teseu, em labirinto.
O fio do meu destino era a partida,
E o Minotauro, meu irmão (eu tanto sinto),

Era a chegada, não um torpe obstáculo
Colocado por meu pai, o feroz Minos
( que ele próprio tinha chifres como báculo),
Para truncar de sua filha os desatinos.

E eu, que de mim só tinha um fio
Como Aracne, sem a trama dedálica,
Tudo esperei do herói de fama fálica

Que despejou no meu ventre um doce rio
Numa Náxos, de passagem, na partida
Esquecendo-me depois, adormecida.


Ariadne em Naxos- John William Waterhouse


Ariadne em Náxos

( Dionisos )

3
Nesta Náxos, perdida, abandonada
Fui por Teseu logo esquecida,
Ou então foi a vela, assim, quadrada,
Que não pode interromper sua partida.

Por isso, ou razões da deusa Ananke
Fiquei a Zeus dará, meio perdida,
Com o fluir do meu destino assim estanque,
A ver crescer meu ventre, embevecida.

Até que o deus alegre, brincalhão,
Aportou nesta Náxos sem nexo
Trazendo um grande falo, como sexo

De madeira, polido, ornamentado,
Com correias preso, pendurado,
E pediu-me que o servisse... esse bufão!




Narciso

4
De Narciso fui a doce ninfa,
Rejeitada, triste, obstinada,
A quem foi negada seiva ou linfa
De uma árvore sequer: petrificada!

Olho-me em ti, compreendo-te, Narciso,
Teu triste rosto contempla eternamente
A tua beleza, e nem ao menos um sorriso
Se vê no teu olhar deliqüescente.

Como é triste a beleza extraordinária
Que traz aos olhos a fonte onde se espelha
Para sempre incompreendida, solitária,

Que não cabe à pobre Eco partilhar
De tão fundo cismar, sem ficar velha,
E poder em flor se transformar!





Perséfone

5
Nos prados de minha mãe, então floridos,
Andava eu, colhendo de braçada
Sempre-vivas e outras, e os zumbidos
Distraíram-me, e não vi a debandada

Dos pequenos animais, que alertaria
Mais atenta criatura, ou temerosa.
E eu que na inocência só vivia,
Vi-me colhida por mão tão cobiçosa,

Arrastada ao solo assim fendido
E levada em grito lancinante
Ao fundo da terra fumegante

Onde senti afoito o grande falo
Invadir-me, rasgar-me, em meio ao halo
Que abriu-se em torno ao meu marido.




Perséfone II

(Deméter)
6
Minha mãe chorou por meio ano
E bateu à porta dos poderes
Enquanto eu, perdida em novo engano,
Esquecida do mundo e afazeres,

Tornei-me fogo, rainha tenebrosa,
Mas doce para o meu escuro rei,
A quem nem sob o sol esquecerei
Quando buscar-me a mãe tão extremosa.

Disputada, afinal, fui dividida
Entre mãe e esposo, meio a meio,
E a colheita enfim foi conseguida.

Sol e terra, a amplidão florida
E depois a noite tão comprida
De obscuro prazer e... tanto enleio.





Penélope

7
Na doce Ítaca, rochedo em mar de anil
Fui esposa zelosa de Odisseu
No início relutante, que partiu
Por poucos meses, conforme prometeu,

Mas que as Parcas retiveram ao bel prazer,
Girando os pesos do seu fuso incompreensível
De modo a fazê-lo se perder
Em aventuras e o amor do impossível.

E eu, cercada de um povo sedentário,
Cobiçoso do seu trono e nosso leito
(aquele que ele mesmo havia feito)

Cujo segredo eu haveria de cobrar
Do mesmo estrangeiro sanguinário
Que os pretendentes acabara de matar.





Penélope II

( A Teia )

8
Penélope fui, da Teia inacabada,
Que em tecer e destecer eu me esmerava,
Para ganhar tempo, desolada,
Mas numa estranha fé que me amparava.

Por dez anos, de príncipes cercada,
Que em orgias devoravam meu rebanho,
E cujo vinho me fazia cobiçada,
Pondo-me em perigo até no banho.

Telêmaco meu filho ameaçado
Quis partir, mas retive-o implorando
Para mais aguardar o nosso amado,

Que camuflado de mendigo, já tornara
E estava entre nós espionando...
Ai de mim, se a fé me abandonara!


Helena de Tróia (de Alma Welt)
9

Fui Helena de Tróia, com certeza,
Sua nudez esplêndida em mim sinto,
A tal guerra também, por minha beleza,
E sobre minha culpa já não minto:

Com o príncipe fugindo, como todas,
Para sempre felizes... ai de nós!
A começar sem as festas e as bodas
Que prenunciariam dor atroz...

E no final caí nas mãos primeiras
De meu marido, o maior daqueles brutos
Que conclamavam guerra pelas feiras,

O meu mesquinho e traído Menelau
Que me levou consigo em sua nau
De volta para o leito dos estupros...


Psiqué

10
Minha alma é toda Psiqué
E tenho sua memória em mim plasmada,
Os Zéfiros levando-me até
Eu lembro, ao palácio enfim levada,

E como por sombras fui servida
E à doce alcova encaminhada
Para a grande cama escurecida
Que me engolfava em prazeres, desvairada.

E como, depois envenenada
Pelas irmãs, somente pelo ouvido,
Encaminhei-me com a foice iluminada

Por lanterna de azeite, até o leito
Onde acabei queimando meu marido
Ao cair de borco no seu peito.




Psiqué II

( O Rato )

11
Quanto peregrinei em penitência
Até atingir a colunata
Do templo do “Amor plenipotência”,
Representado pela minha sogra chata!

Que agarrando-me os cabelos me arrastou
Por entre as colunas, e açoitada
Deixou-me quando quase me matou,
Para voltar depois com a empreitada

De eu tecer com palha suas esteiras
Pra que, em ouro, as deixasse amarelas,
Pra que eu “não fizesse mais besteiras”,

Enquanto, eu dormindo, vinha a sogra
Como um rato, roendo minhas telas...
Assim é que o Amor a Alma logra!





Psiqué III

( O Hades )

12
Foi-me dado enfim pesado encargo
Por Vênus (que devia ser do Amor)
Descer ao Hades, sem embargo,
Para pedir à sua comadre um favor:

De Perséfone eu devia receber
Uma pomada, um perfume, que sei eu?
Que sã e salva voltar me prometeu,
Se lhe trouxesse o embrulho sem saber

O conteúdo, que enfim não resisti,
Abri, e fui por ele envolvida
Em nuvem infernal, e sucumbi.

Prostrada fiquei até o momento
Em que levada fui, e absolvida
Diante de Zeus, cessando meu tormento.



Epílogo

( O Triunfo de Psiqué )

13
Eis que narrei tua saga, ó Psiqué,
Em três sonetos, o que é coisa de maga,
E que somente é explicado, fácil até,
Pelo fato de ser minha própria saga.

Venho de longe, de um tempo inconcebível
E Alma, poeta sou, eternizada
Pelo brinde de Zeus, inesquecível,
Convidando-me a viver em sua morada:

“ Vinde a nós, Psiqué, que tanto amaste,
Abrace teu marido, o deus alado,
E pertença-lhe pra sempre, que o roubaste

À sua mãe, Vênus do amor (ó vingativa!)
Bebe conosco o néctar sagrado,
Sê imortal, e ama, nova diva!”


FIM

23/04/2005

Notas
*Teogonia- neste prólogo Alma reproduz o inicio da Teogonia de Helânico, autor órfico do século VI AC, que diversamente à famosa Teogonia de Hesíodo (que coloca a Noite e o Caos como princípios teogônicos), tem Crono (o Tempo) se acasalando com Ananke (a Nescessidade) para gerar uma tríplice prole: o Éter úmido, o Caos infinito, e o Érebo nebuloso. A seguir Crono insere no Éter o Ôvo Primogênito, que daria nascimento a Zeus, o "princípio ordenador" e aos protágonos (primeiros deuses).
O detalhe de Ananke ter criado Psiqué (a alma, a princípio mortal) por saudades de sua pureza perdida, é uma contribuição genial da própria Alma Welt ao mito, pois isso não consta de nenhuma teogonia conhecida.


Ariadne em Naxos- Este episódio, muito celebrado por pintores, se refere ao abandono de Ariadne na ilha de Náxos por Teseu após este ter penetrado no labirinto de Creta com a ajuda dela, princesa, filha do rei Minos, para matar o Minotauro, seu monstruoso meio-irmão. Como todos sabem, Ariadne empregou um ardil muito simples: amarrou a ponta de um longo novelo de lã à cintura de Teseu para que este pudesse voltar sem se perder depois do duelo com o monstro no centro do labirinto. A seguir o casal foge para ilha de Náxos onde Teseu engravida Ariadne na primeira noite ali, e parte na manhã do dia seguinte, bem cedo, deixando Ariadne adormecida. Já em alto mar se lembra que que deixou (por esquecimento !!) a sua amante para trás, mas não pode voltar pois as velas quadradas do seu barco só funcionavam com o vento a favor, isto é, por trás (os gregos ainda não tinham inventado a vela tringular para singrar em ângulo contra o vento). Ariadne abandonada, é encontrada pelo deus Dioniso, que apreciava essa ilha, e tinha acabado de inventar o "dildo" (consolo) pois estava apaixonado por um homem. Antes de se relacionar com Ariadne de quem por sua vez terá filhos, obrigou-a a servi-lo com aquele instrumento recém inventado (!!!).
Alma tomou conhecimento desse espantoso detalhe do mito num texto Junguiano de curiosa interpretação e, ao que parece, de fontes gregas fidedignas (risos). Como os leitores percebem, Alma lança mão do humor em diversos momentos deste seu ciclo de sonetos mitológicos.

Demeter*- A deusa das colheitas (Ceres, entre os romanos), mãe de Perséfone (Core), depois de muito chorar pela filha raptada pelo deus Hades que surgiu do fundo da terra quando a donzela colhia flores no campo, conseguiu que Zeus permitisse que a filha saisse temporariamente do Hades, deixando o marido, e vivesse seis meses com ela, sua mãe, a cada ano. Estes ciclos correspondiam ao plantio e a colheita.

* O triunfo de Psiqué- É curioso ver como Alma se identifica e celebra a si própria neste soneto, por profunda identificação com o mito, até porque seu nome, Alma Welt, significa "Alma do Mundo" (Anima Mundi). Aliás, a identificação plena da poetisa com as diferentes personagens femininas dos mitos que ela aborda, constitui a graça maior e originalidade de seus sonetos.
((Guilherme de Faria)

domingo, 21 de outubro de 2007

A volta (de Alma Welt)

Preciso voltar para o meu Pampa
Onde fui infanta e então princesa.
Aqui nestes Jardins à beira-rampa
Da Augusta, talvez ninguém me veja,

A não ser como um modelo no desfile
Desta Oscar Freire abominada
Onde vim parar e em que me exile
Talvez porque me sinta tão culpada.

Morto o meu Vati, que era o rei,
Como então restar no casarão?
E pensando assim me desterrei...

Mas o sangue, as veias qual raízes
Chorando clamam e buscam por meu chão,
E a promessa de dias mais felizes.


11/12/2005

Sonetos da Pintora IV ( de Alma Welt)

Índice

1. Prólogo
Ergue-se em mim...
2.
Solidão, mar desta barca...
3. Como posso prosseguir...
4.O quadro que pintei...
5.Vem, minha amiga...
6.Amigas, amigos...
7.Hoje bateu-me...
8.Volto a abrir...
9.Amores, amor, música...
10. Epílogo
Raia o dia, ó glória...


Prólogo

1
Ergue-se em mim a manhã do meu amor
Em primavera urbana de esperança.
Renovo o meu olhar e o meu ardor
Em ser como pintora... uma criança.

E assim, abro as janelas do ateliê,
Que dão pra esta Oscar Freire saturada,
Passarela do Fútil que se vê,
E que consiste em ter tudo e em ser nada.

A mim cabe pintar um universo
Cujas raízes estão longe daqui,
No Pampa, onde está o meu anverso.

E recriando o mundo em verso e prosa,
Deixar a minha marca aqui e ali
Num retângulo de tela preciosa.


2
Solidão, mar desta barca criadora,
Estou em mim, inspira-me, eu me entrego!
Quero cantar, dizer a fala da pintora,
Fazer fluir o verso a que me apego.

Cobrir minhas paredes de mim mesma,
Projetar-me em cor, poesia e canto;
A dança de uma alegre abantesma
Que a si mesma reconhece o seu espanto.

Pois numa era triste de marasmo,
Em que as mentes voltam pra si mesmas
Perdido todavia o entusiasmo,

Eu continuo, heróica, acreditando,
Polindo versos e juntando resmas,
Na branca fibra a alma projetando.


3
Como posso prosseguir acreditando,
Manter aceso o olhar, a meta e o desejo,
Se o coração carente traz o ensejo
De perder-se no outro, assim amando?

Refiro-me à pulsão que cria, à Arte,
Da qual não posso certamente prescindir.
Mulher-artista, como prosseguir
Se o doido coração quer liqüidar-te?

Ser só mulher, entregue , possuída,
Fêmea total, à raias da Odalisca,
Da puta gloriosa e assumida,

Assim quer o branco corpo, o alvo seio,
Os lábios cheios de paixão arisca,
As amplas curvas com a fenda ao meio!


4
O quadro que pintei hoje, me guia,
Amanhã serei outra, em plenitude.
A obra que não fiz neste meu dia,
Nunca verá sua completude.

Assim dizia um velho amigo meio sábio
Enquanto eu me achava "meio grávida".
Quero dizer com isso o quanto hábil
Era o meu amigo e... eu, tão ávida!

A sede de viver me confundia,
E na louca juventude dispersiva,
Por delicadeza me perdia... *

E assim, entre ânsias e desejos,
Quanta hora perdida, quão lasciva
Era esta bela Alma, e... quantos beijos!

*Paráfrase do célebre verso de Rimbaud:
"Par délicatesse jái perdu ma vie
".


5
Vem, minha amiga, vem comigo
Para o quarto, já que queres premiar-me.
Pintei o teu retrato, e não consigo
Deixar de a ti, agora querer dar-me.

Terás de possuir-me de algum modo.
Quero que entre em mim o que tiveres:
Lábios, língua, dedo, enquanto rodo
Como frango no espeto. Não me queres?

Adoro sentir-me aniquilada
Depois de ser assim tão obediente:
Não sou mais a pintora, não sou nada!

Conquanto eu não te veja preparada,
Quero, enquanto ainda esteja quente,
Com este relho de meu pai ser fustigada.


6
Amigas, amigos e meus livros;
Telas, desenhos, música e poemas,
Eis o universo: estamos vivos,
Nada a haver com o tal "vale de penas"

Aqui um traço, puro encantamento,
Um verso com a rima sedutora;
Outro ali, livre, um pensamento,
Um bater de asas e.. já se fora.

E como então não ajoelhar-se,
Colocar a grata fronte neste chão
Do ateliê bendito, prosternar-se

Perante o deus da Arte, o ser sortudo
Que reconheço neste rico coração,
Nesta Alma capaz de quase tudo?


7
Hoje bateu-me, eu presumo, um "mal estar
Civil", como dizia um velho mestre.
Um não-sei-quê, a dor de não me dar,
Não pertencer, como um pássaro pedestre.

Nunca fui, certamente "boba alegre",
Pois minha alegria vem do fundo
Mesmo de onde nasce esta febre
De sofrer por quase toda dor do mundo.

Rasgo poemas, choro só de os ler;
Olho meus quadros e viro-os contra o muro,
Dirão vocês que é "coisa de mulher".*

Mas não desqualifiquem, é muito duro!
Sou Alma, não sou uma qualquer,
E tenho orgulho até mesmo de sofrer...

* Alma se refere à chamada tpm (tensão pré-menstrual)


8
Volto a abrir a persiana
Que não existe e que estava tão cerrada.
Minha sala escura há uma semana
Voltou a sorrir, iluminada.

Coloco a tela, o fundo preparado
Branco como um lírio de verbete
No cavalete sujo, tão usado,
Como deve ser um cavalete.

E então boto um Wagner triunfal
No pequeno aparelho de CD
E ataco qual se fora Parsifal.

E vendo nascer um novo mundo
De cores fluidas qual poesia que se vê,
Meu canto de alegria vem do fundo!


9
Amores, amor, música e sexo,
Eis a receita de uma vida em plenitude;
Também escrever versos sem nexo,
Coisa que, no entanto, nunca pude.

Percebo como sou tão racional
E como meu poema vem da mente,
Conquanto o coração fique contente
Com seu próprio poder residual.

E embora eu me debata com freqüência
Com este seu teor conceitual,
Vem do coração essa carência.

E como nos Mistérios de Elêusis
Busca libertar-se, imortal,
Qual Dioniso, do cárcere dos deuses.


EPÍLOGO

Raia o dia, ó glória, raia o dia!
Eis-me defronte à tela iluminada
Por um raio de luz que inicia
Meu trabalho com a primeira pincelada.

Diante destas cores milagrosas
Eu me dispo, branca como a telas,
Ou antes das primeiras aquarelas
O papel com suas fibras generosas.

E como numa espécie de corrida,
Maratona em busca da beleza
Que parece ser o dom da minha vida,

Eu volto a sentir a minha lida
Como um cântico perpétuo à Natureza
Que me doou esta Alma dividida.

FIM

11/11/2005

Perfil "leonardesco" de Alma Welt feito em litografia por Guilherme de Faria em 2001, quando a conheceu no seu ateliê, em São Paulo.

Sonetos da Pintora III (de Alma Welt)

Índice

Prólogo
1 Longos prados de ouro...
2 No reino da pintura...
3 Para poder pintar...
4 Aline, meu amor...
5 Hoje me vejo...
6 Voltei a harmonizar...
7 Ontem, eu corria...
8 Aline, hoje não pinto...
9 Vou desenhar-te, Aline...
10 Prólogo
Abro as janelas amplas...


Prólogo
1
Longos prados de ouro no poente
Eu diviso aqui deste ateliê
Sobre um vasto pampa imanente
Que somente em mim a alma vê

Cercada dos caixotes de cimento
Que queria saber apreciar
Abrindo a janela ao nascimento
De uma nova fase em meu pintar.

Talvez o segredo da metrópole
Se abra para mim nestes Jardins
Expulsando por fim aquela Acrópole*

Talvez eu harmonize Yin e Yang
Propondo outros meios, outros fins
Para persistir... “forever young!”



2
No reino da pintura, eterna luta
Com o caos, para ordenar, em harmonia
Mesma, o conflito e a permuta
Entre o Self e o Ego, e sua mania.

Como religar a mediação
Entre os dois pólos subjacentes
Que lutam sob a carne, em ação
Gestual, debatendo-se, emergentes?

Questão que não devo aprofundar
Pois sei que a cor mesma e a pincelada
Nascem do impulso como se do Nada,

E a pintura, como a fome num asceta,
No próprio nascedouro vou matar
Se ponho-me a pensar como poeta.


3
Para poder pintar ainda teimo
Em me manter acesa, erotizada,
Não resisto aos apelos desse reino
Do sexo e da carne insaciada.

Procuro, no entanto associar
Essa pulsão, em mim tão poderosa,
Da libido que insiste em reinar
Sobre tudo em minha vida generosa,

Ao impulso da alma, ascendente
Que busca elevar-se no poente
E descer as trevas na aurora,

Nessa depressão após vigília
De exaltação, pintura agora,
Mar de cores a cercar-me como ilha.


4
Aline, meu amor, com seu desvelo
Está diante de mim em sua nudez,
E eu, que não preciso de modelo,
A ela só, retrato em nitidez,

Como minha musa, minha maja*
Para encantá-la e retê-la
Na minha tela, como amarra
No porto do ateliê, pra não perde-la.*

Pois jovem como eu, ainda me quis
Com essa alma antiga que herdei
E que me faz conhecer esses ardis;

E como um Goya que só Alba retrata
Deitada nua e branca eu a pintei,
Eu, que sou pintora... abstrata.

5
Hoje me vejo especialmente inquieta
Não cabendo em minha pele desvairada
Tentando versos, já que sou poeta
Levantando, pra mais uma pincelada.

E então percebo que preciso é ser amada
Agarrada à força, penetrada
Por algo ou alguém dominador
Que me fizesse sentir alguma dor.

Eu sei que o leitor diagnostica
Histeria ou tpm, tudo indica,
Não me ofendo, mas discordo (antes fora)

O que quero é ser mulher, mais do que musa,
Não ser sequer poeta ou pintora
E ter esta alma assim difusa.


6
Voltei a harmonizar meu interior
Que se reflete em novo quadro e sua cor
Com a presença de um fundo dominante
De um azul mediterrâneo, apaziguante.

E então, minimalista, de repente
Uma mancha, um reflexo, o que for,
Sobre a água plácida que mente
Sua profundeza e sua dor.

Assim, pressinto a erupção em minha mente
De um semi-deus marinho emergente,
Leviatã, Cila e Caribde, até Netuno

E preparo-me pro tumulto dessas águas
Que foram produzidas pelas mágoas
Que surgem como um monstro inoportuno.

7
Ontem, eu corria, livre em mim
Em torno à minha casa avarandada
Soprando as sementes do capim,
Mais que observando: integrada

Às lindas coisas da relvas e do ar,
Pequenas flores, insetos a voar,
Aves, nuvens, o vento nas coxilhas
Nesse desfilar de maravilhas.

Então ouvindo o piano, o som do rei,
Eu corria para vê-lo no escritório
(já que era ali seu território)

E de bruços me punho estendida
Num tapetinho debaixo do Steinway,
Que era a prova do quanto era querida...


8
Aline, hoje não pinto, vou dançar
Contigo o nosso belo pas-de-deux.
Faz tempo que deixamos de lembrar
A nossa parceria no ballet

Que fizemos, ao nos conhecemos,
Quando a emoção nossa transcendeu
Ao dançarmos assim sem percebermos
O tema que então nos comoveu:

Um duo final do Quebra-Nozes
Entre um príncipe e uma fada muito séria
Cujo amor encontra apoteoses

De carne e espírito em fusão perfeita
Produzindo a leveza da matéria
Cuja imensa dor resta insuspeita.

9
Vou desenhar-la, Aline, a puro traço
Para fixar o seu perfil
E a sua silhueta no espaço
Do plano do papel que você viu

De uma pura trama como linho
Vindo de longe, talvez Jerusalém
Ou colhido na beira do caminho
Da estrada que leva até Belém,

E delirando assim sobre o papel
Coloco sobre a mesa o material
Depois de organizar esta Babel

E oficiando, enfim, como vestal,
Invoco os velhos deuses meus do traço:
Leonardo, Hokusai, e até Picasso.



10
Abro as janelas amplas do ateliê:
Entrem o sol, a poeira, e o ar também,
Entre o vento dos Jardins, que aqui me vê
Entre as calmarias e o desdém...

Já que o meu Pampa é tão distante
E aqui me asilei, perdido o Vati,
Aqui encontrei meu amor fati *
Vivendo a glória do meu coração amante.

E cercada de mil telas multicores
Compus o meu cenário sem rancores
Apesar desta “Augusta per angusta”*

Que busquei como a tal saída justa
Para criar, dar ao mundo o puro verso
E amando tanto, recriar meu universo .


FIM
19/07/2006

Nota
*..."amor fati"- Expressão exclusiva da Renascença italiana(século XVI ) do sentido de amor predestinado e por vezes fatal, preconizado pelos poetas daquele período.

Sonetos da Angústia (de Alma Welt


O Ex-libris de Alma Welt, feito em litografia por Guilherme de Faria, quando se conheceram em 2001. O mote latino AD AUGUSTA PER ANGUSTA, descoberto pelo pintor, significa CHEGAR A RESULTADOS MAGNÍFICOS POR VIAS ESTREITAS, o que é bem o caso da Alma. O curioso é que ao pé da letra o mote permite, com certa legitimidade, a seguinte tradução: À AUGUSTA PELA ANGÚSTIA, sugerindo o estado de espírito da poetisa auto-exilada em São Paulo numa tranversal bem próxima da rua Augusta, quando da morte de seu pai (O Vati). Esse mote é a senha dos rebelados da peça Hernani de Victor Hugo.

Alma Welt
Sonetos da Angústia

Índice

1.Prólogo
Noite escura, declive...
2. Quantos planos, amores...
3. Amor meu, tesão...
4. Na manhã do auge...
5. Quando afinal chegou...
6.E assim começou...
7.Aline, reconheço...
8. Aline, eu me lembro...
9. Ali fui encontra-los...
10. Vou perder-te, Aline...
11.Noite, noite atroz...
12. Volto ao meu jardim...


Alma Welt

Sonetos da Angústia


Prólogo
1
Noite escura, declive, estreita via
Nos quais me vejo, nestes dias, novamente,
Sabendo que este ciclo já havia
Aparecido outrora em minha mente,

Mas que eu julgava ter exorcizado
Como tristes demônios da incerteza,
Afastando fantasmas do Passado,
Da dor de um destino sem clareza.

Agora aqui me vejo em novas garras
Do monstro interior que a alma teme
Debatendo-me entre pesos e amarras

Neste barco da vida já sem leme
Mas que ainda almeja o mar e o mundo
Ainda que no cais se vá ao fundo...


2.
Quantos planos, amores, ilusão!
Quanto ideal que na alma mal perdura,
Perdida a esperança e a pulsão
Que me atirava esmo e com candura

Na torrente obstinada e atrevida
De um rio feroz e obstinado
Correndo para o imenso mar da vida,
Mas sendo o próprio leito o fim e o fado!

Então, percebo enfim a ironia,
E enxergo no fluxo deste rio
A própria resposta que eu pedia

E veio até mim, ramo florido,
Num gesto de aparente desfastio,
Num remanso à margem recolhido.



3.
Amor meu, tesão, alma e ternura,
Eu tive do amor a plenitude
Dos meus trinta anos a loucura,
Para amargar agora a finitude.

Aline, meu modelo deslumbrante,
Imagem de beleza e de candura
Cuja falta n’alma mesma inda perdura
Mas com ligeira nota redundante,

Pois se bela sou, o quê procuro?
Porquê o vazio e tão triste carência,
Por quê, Amor, revela-te tão duro?

E arrasto-me em mim, na solidão
De uma dor que revela insuficiência,
Mistérios do meu rico coração...


4
Na manhã do auge deste mal
Ligado à solidão e à carência
Procurei nas amarelas o ramal
Do cadastro de modelos de uma agência,

Cuja secretária Lusinete
Me deu a ficha do setor “modelo nu”
Que eu podia ver pela Internet
E então escolher como um menu.

E foi assim que vi Aline, de primeira,
Um rosto acachapante de beleza
E com ligeiro laivo de tristeza

Que me conquistou como uma rima
E pareceu-me a imagem derradeira
Que faltava ao verso de auto-estima.


5
Quando afinal chegou o meu modelo
E o interfone anunciou como ao “Amor”,
Coloquei-me bem de frente ao elevador
E abri os braços com num apelo,

Saudação ou abraço festejante
Como quem espera filha pródiga,
Mas que então desfiz no mesmo instante
Recuando pra a soleira, bem mais módica.

E a porta abrindo, me vi diante da beleza
Mais pura e perfeita jamais vista
Que avançou com perfeita realeza

Também com o seu abraço aberto,
Disse, girando em minha sala mista:
“Que belo tudo aqui... Tá tudo certo!”


6
E assim começou o nosso caso
De amor e de loucura, minha Aline,
Por quem me ergueria em meu ocaso
Em pleno verão, sem que eu atine.

Pois minha alma velha em corpo jovem
Precisa de injeção de juventude
Para que afinal se erga e mude
Em ágil, como os dias que se movem

Neste ateliê febril de amor e arte
De onde saem telas e poemas,
Desenhos e sonetos, como gemas

De um garimpo feliz e sem descarte
De poluidor mercúrio, e n’outros temas
Refazer-me, Aline... por amar-te!

7
Aline, reconheço, eu te seduzo
No ateliê, como se fosses aprendiz.
Eu te envolvi como um novelo no meu fuso,
A ti, que eras noiva, e até feliz.

Até que te atirasses nos meus braços
E faminta como eu te revelaste,
No amor e na ternura dos abraços
E carícias que também me prodigaste.

E que tardes! Tanto gozo exaltado,
Experimentamos no leito, teta a teta
E até sobre o assoalho pintalgado,

Onde desnudadas confundimos
Modelo e pintora, sem paleta,
Corpos e funções, que assim fundimos.


8
Aline, eu me lembro, começaste
A revelar teu jogo ao namorado
E como a um e outro revelaste
A natureza do prazer fruído e dado.

De repente estava assim acontecendo
O ménage-a-trois inesperado
Mas previsível, na verdade, neste quadro
Tão ambíguo, que estávamos vivendo

E foi assim, no auge da volúpia
Que teu Pedro mudou então o jogo
Por cobiça ou mesmo por astúcia

E Ulisses desastrado e demagogo
Pretextando um ménage sem tramóia
Propôs encontro no novo “Café Tróia”.

9
Ali fui encontrá-los, vou lembrando
Como pra isso me flagrei me enfeitando!
Entrei no café novo, a armadilha
Que teu Pedro armou à maravilha

E ali no ambiente barulhento
E fútil, me vi quase devorada
Por olhares cobiçosos da moçada
E depois pelo de um deles mais atento

Que era o teu Pedro, falso Ulisses
Que me viu até antes que me visses,
E tremeu, eu senti, ele tremeu

Sentindo que teu corpo era meu
E como tu tremias ao me ver
Do medo que me tinhas de perder!


10
Vou perder-te, Aline, é quase certo
Depois do nosso encontro desastroso
A três, naquele bar (Pedro é esperto
E percebeu quanto o ménage é enganoso).

Pois ele me queria como pasto
Junto a ti, somente algo noturno,
E então, vendo-me assim, logo me afasto
E a ti reivindico, por meu turno.

Outrora, eras dele; eu: como “puta”,
Julgava não ter maior direito
E amava num espaço assim estreito.

E eis que se instala a disputa
E és tu que estás no meio, minha amada,
E já não posso te ceder, assim sem luta.


11
Noite, noite atroz e tão sombria
Em que me vejo na descida de minh’alma
Perdida a minha Aline (eu bem sabia
Que não podia perder a minha calma!)

E pus tudo a perder por puro medo
No beco sem saída de uma escolha
Que faria de Aline um brinquedo,
Que sempre me pedia: “Não me tolha!”

E por puro orgulho de mulher
Acabou ficando c’o mais forte:
Aquele que sabia mais tolher...

E eu, fraca mulher (só sei amar
E dar-me, e servir... e mais me dar),
Perdido o meu amor, estou... na morte!


12
Volto ao meu jardim, e ao meu pomar...
Após longa jornada, o casarão!
Percorro o vinhedo e o lagar
Mas não toco vinho ou chimarrão;

Prefiro percorrer estas lombadas
Das obras outrora tão amadas,
Livros do meu pai, tão doloridos
Em solidão, como eu, e tão feridos!

E então retiro um tomo, meio a esmo,
E o abro (meu espanto!): é o Barão
De Münchausen, o mentiroso, aquele mesmo!

E me vejo flutuando em seu cavalo,
Meu cabelo repuxado em sua mão,
Subindo, arrancada deste valo.


13.
Volto ao Jardim de arranha-céu
Onde montei meu ateliê
E onde em telas ou painel
Plantei pequeno mundo, que se vê.

Como Aline, no dia em que chegou
Eu giro e olho em torno meu cenário
E percebo como o mundo meu é vário,
E como me bastar sendo o que sou.

Assim, comigo vou reconciliar
A mim mesma, fazendo minha parte
Com Deus, que me deu beleza e arte.

E entrego meu destino, apaziguada,
Sabendo que estarei mais elevada
Quando de novo o interfone ressoar...

FIM

03/11/05

Sonetos da Pintora II (de Alma Welt)

Prólogo

1
Amanhecendo, neste prólogo, acordei
Para enfrentar a tela nua, temporã,
Com pincéis dos meus cabelos, que cortei
Na penumbra de uma flácida manhã.

E pus-me a pincelar o rarefeito
Espaço boicotado pelo tempo,
Onde quase tudo já foi feito
Pela mente audaz, em contratempo.

E assim perdida a inocência do pintar
Era debalde a tentativa sem pulsão
E a criação perdera-se no ar.

Atiro, pois, o meu pincel sujo no chão
E vendo a mancha esplêndida, borrada,
Pintora sou, refeita... retomada.



2
Quero pintar, ao mesmo tempo ser amada
Com a sofreguidão da pobre Frida*,
Pois, se criar é transgredir, ser odiada,
Meu dilema estabeleço de saída.

E assim debato-me entre o verso e o cavalete
Buscando uma palavra inconcebida
Como no Larrousse um só verbete
Que pudesse esclarecer a própria vida.

Mas quando toca a sineta e abro a porta
De imediato o impasse se desfaz
Pois trazes o único que importa:

O teu dom de zerar-me prazerosa
Como quem deleta a dúvida e refaz
O verso em rima fácil, como rosa.



3
Pinto uma montanha e o seu vale
Mas com formas chave, pensamentos,
Abstraídas pinceladas, movimentos
Que calem a palavra e a alma fale.

E tendo já soado o diapasão
De minha audaz procura e sua sanha,
Não há retorno, temor do coração,
E escalo de verdade esta montanha

Pra logo mergulhar como uma vela
Na sombra do sopé, na depressão
Noturna, como alguém que tece a teia

Para o ser amado, nua e bela,
No repouso que reina sobre a aldeia
Sob a sombra majestosa do vulcão.



4
Hoje pintarei só mentalmente
Já que tenho as mãos tão atacadas
Pelas tintas, tão belas e rachadas
E a testa parecendo meio quente.

Na certa morrerei da profissão
Depois dessa vida de safári,
Matando todo dia um leão
Para morrer depois qual Portinari*.

E estendo-me no solo do ateliê
Olhando minhas telas como espelho
De Narciso que a si mesmo ama e vê

Até perder-me nas cores, deslumbrada
Pelo ritmo, textura, pincelada
De um orgasmo tingido de vermelho.


5
Estou enlouquecida em minha procura
De uma rima de cor, de uma palavra
Fluida como tinta em sua textura
Pintura e poesia desta lavra,

Pois não vejo real dicotomia
Entre palavra e gesto, dorso e palma,
Que são da mesma bela anatomia
Fundidas assim, em minha alma,

Da mão, o dom de Deus, o vero signo
Com que fomos dotados quando feitos
Antes da expulsão, qual ser indigno,

Para vagarmos na terra agora hostil
Escrevendo, polindo o verso vil
Para ser novamente, um dia, aceitos.



6
Amor meu, alma e poesia
Pintura em minha veia, cantoria
E a dança dos meus gestos quando pinto
Diante da tela branca em que me sinto.

Assim também, no leito me coloco
Passiva agora diante do teu foco
Que a pintora és tu, neste momento
Para fazer tua prova, teu evento.

E se souberes combinar as minhas tintas
Colhendo-as onde fluem generosas
Terás na mesma tela em que pintas

O duplo retrato, arte e vida,
Que vejo em mim e ti, enquanto gozas
Sobre a minha boca agradecida.



7
Venham elfos, fadas, venham cores,
Venha todo o tropel dos pensamentos
Quero pintar, sentir sem mais pudores
A féerie de ser bela e ter talentos.

Quero celebrar meus privilégios
Nascida para o belo e para o amor
Vivendo a vida em meio a sortilégios
De um destino raro, “de pintor”;

Na verdade, de “pintora-poetisa”,
O que produz uma guinada no destino,
De viés, como a tal torre de Pisa

Que se sustém por milagre, tão sem prumo
Já que o Arquiteto teve o tino
De ir moldando para cima, no seu rumo.


8
Lancei um quadro exuberante como festa
Que transforma o ateliê numa floresta
Em que passeio nua como as ninfas
Urinando seivas, nobres linfas.

E refaço o meu espaço em tons de verde
Ludibriando este cimento dos Jardins
Que a cada ano uma árvore perde
Por velhice, roída por cupins.

E assim, repintando o fundo antigo
De ilusões, longe do Pampa, em meu exílio
Aqui onde atingi ponto mais baixo,

*Ad Augusta per angusta, é o “estribilho”
Do Ex-libris desenhado pelo amigo
Como uma canção em que me encaixo.




9
Amores meus, artistas, almas nuas,
Nijinsky, o supremo bailarino;
Pintor e cineasta em suas gruas:
Fellini, roteirista do divino.

Caruso, e outros mestres da canção
E aqueles pianistas revelados
Que sabiam dedilhar os seus teclados
Não deixando ouvir a percussão.

E pairando sobre mim, qual bailarina
A soprano com a sua voz mais fina,
Callas que era mezzo, a meu ver.

Van Gogh, Gauguin, heróis da Arte
Mais Picasso, Breton anti-Descartes*
A todos quero dar até morrer.





Epílogo

10
Quero pintar, perder-me, poetar,
Amar, ser amada e possuída
Pois que tudo quero desejar
E desejada ser a própria vida.

Confundindo-me com aquilo que desejo
Entregar-me assim nua e sem pejo,
Ser atingida pelo amor em pleno cerne
Através do sexo e da epiderme

Ser a musa doida de um poeta
(que jamais me entregaria a um burguês)
E ser então cantada em prosa e verso,

Depois, quando o Tempo, falso esteta
Atingir-me como a todos sempre fez
Ainda feliz poder mostrar o meu anverso.

FIM


Notas
* Frida- Alma se refere à pintora mexicana Frida Kahlo.
*"...qual Portinari- Alusão à morte do grande pintor por envenenamento pelas tintas.
*"Ad augusta per angusta"- este mote latino significa "chegar a resultados magníficos por vias estreitas", e é a senha dos rebelados na peça Hernani, de Victor Hugo. Ao ser escolhido para o seu Ex-libris desenhado pelo amigo Guilherme, Alma descobriu nele uma possível tradução ao pé da letra: "à Augusta pela angústia", expressando o sentimento que a levou do seu pampa ao auto-exílio nos Jardins, de São Paulo, (às margens da rua Augusta.)
*Breton anti-Descartes.- A autora se refere ao líder dos surrealistas, que detestavam o racionalismo francês representado pelo pensamento "cartesiano"(de René Descartes, filósofo francês do século XVII), primado da razão e do consciente, que os surrealistas pretendiam destruir.( Descartes , em francês pronuncia-se "Decarte", que rima com Arte).

sexta-feira, 12 de outubro de 2007


Alma Welt - desenho de capa de Guilherme de Faria do folheto Sonetos da Pintora publicado pelas "Edições do Pavão Misterioso".

Sonetos da Pintora ( I ) (de Alma Welt)


Tempestade no mar- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 90x100cm, coleção particular, São Paulo, SP, Brasil
"Porquê me vejo assim, como barcaça
Em perigo de chocar-se, no seu curso,
Contra rochedos, ali, como ameaça,
Em silhueta agressiva , como um urso?"





Prólogo

1
Amanhece, o ser me abro e as janelas
Em seguida caminho no ateliê
Pelas sendas que sei entre as minha telas,
Trilhas que o olhar ainda não vê.

Ligo o rádio, captando uma sonata
De Beethoven, que me soa auspiciosa:
Aurora sobre a mente logo grata
Lembrando-me que estou quase famosa.

Nestes tempos difíceis, escasso o pão,
Não preciso caminhar senão a pé,
Já que não tenho nem pra condução...

E reflito o privilégio em “minhas vidas”,
Do caminhar tranqüilo, doce até,
De minhas belas pernas tão queridas.



Soneto de Aceitação


2
Eis que a pobreza me cai bem:
Olhando a silhueta em meus espelhos
A curva do meu ventre me entretém
Pela perfeição, louros pentelhos.

Não voltarei tão cedo àquela estância,
Tão desolada, desde que partiste, Vati!
Não mais transporei essa distância
Por teu beijo, teu afago ou o teu mate.

Daqui mesmo ainda vejo o meu pomar
As iniciais na macieira e o coração
Gravados para nunca se apagar.

E se me entrego talvez à nostalgia
É por sentir dentro de mim a tua mão
Puxando-me pra diante, como guia.



Soneto da Dor

3
Esta dor insidiosa, dor no imo
Que a mim mesma denuncia a derrocada
Do meu fundo ser, perdido o mimo
De meu destino de princesa tão mimada

Vem de um feminino abantesma
Que insiste em cobrar o seu direito
De rainha ou de musa de mim mesma,
Da louca artista que carrego no meu peito.

Esta dor, devo aceitá-la, dela emana
Minha arte, a pintura e minha poesia
Que se pretende alegre e não reclama

Pois nela reside a fantasia
Que reconstrói minha alma a cada instante
Como ao corpo a carícia de um amante.



Soneto de Marinha


4
Pinto uma tormenta, surpreendente,
Com um barco vermelho a soçobrar.
Metáfora, certamente, não do mar
Mas da vida, do meu coração e mente.

Do humano destino alegoria
Tão contrária ao chamado vanguardismo...
Que me importa a moda e sua mania,
Que procura evitar tal simbolismo!

Romântica sou, assim me assumo
Nesta época de caos e decadência
Ou de aridez estéril, em resumo.

Percebo, então, que o tema defasado
Encontra em minha alma referência
Do meu barco e de seu rumo ignorado.




Soneto de Marinha II

5
Porquê me vejo assim, como barcaça
Em perigo de chocar-se, no seu curso,
Contra rochedos, ali, como ameaça,
Em silhueta agressiva , como um urso?

Será a minha morte aproximada
Ou mais um acidente de percurso,
De minha existência atribuladas
De pura vida interna, sem recurso?

Subjetivista empedernida
Que me sei, mas com certo desgosto,
Meu próprio mundo reflete-se na vida

Ou será justamente o oposto?
A vida atravessando o meu cristal
Da alma, e decompondo o bem e o mal...



Um Soneto de Outono

6
Voltou o Outono e sua quietude
Estação de mortal melancolia
Em minh’alma, malgrado a juventude
Que afinal ainda me anima, serve e guia.

Lanço quadros, em ouro matizado
De vermelho, mas em telas abstratas,
Abstraídas folhas, cataratas
De cores, tons, e frio antecipado.

É o nórdico Outono dentro em mim,
Pois que aqui a cidade se acinzenta
E dói como um cristal dentro de um rim

Que urina sobre a tela em ouro e sangue
Produzindo esta matéria densa e lenta
Onde a alma chafurda como em mangue...




Soneto da Conciliação


7
Nesta cidade e seu caos amanhecido,
Sem um galo ao longe, sem um sino
Sem um mugido, relincho ou latido,
Perdida estou, talvez, do meu destino?

Perscruto-me, como quem se deita carta
Se devo ou não voltar pra minha estância
Abandonando a veleidade que descarta
Meu ser de sua pompa e circunstância.

Mas logo lanço um quadro e me apaziguo
Ao ver fluir os tons com seu recado
Tão amplo, neste espaço tão exíguo

Pois gaúcha e pintora, eis o meu Pampa:
Um retângulo de tela, tão sagrado
Como caixa de Pandora, sem a tampa.



Soneto da Infidelidade

8
Tem dias que me deito enlanguecida,
Largada, nua, em meu divã
Diante de uma tela enlouquecida
Lançada a esmo, sensual, pela manhã.

Pois que estando projetada, me despojo
A ponto de querer-me assim nua,
Entregue num sofá onde me espojo
Pensando como faço pra ser tua.

E percebo então que minha nudez
Se reflete nessa tela, ou o contrário:
Alimentando meu desejo em sua avidez.

E se imagino-me tomada nos teus braços
A pintora dentro em mim, com seus espaços,
Sai de cena, ocultando–se no armário.



Soneto da Fênix


9
Toca minha sineta nada alto,
Que comprei na Liberdade, japonesa
Assim deixo o pincel, sem sobressalto
E vou abrir a porta, mas... surpresa!

Eis que visão de um rosto amado
Me nubla o olhar extasiado
Ao ver entrar Aline, meu modelo,
A quem eu dediquei tanto desvelo.

E toda a paixão, com sua dor
Explode, dentro em mim, em um segundo
E quase desfaleço sem pudor.

É ela! A camiseta, o jeans e o tênis,
Seus seios despontando como o mundo,
Dessa paixão de cinzas, como Fênix.




Epílogo

10
Explode a minha paleta, qual pletora
De danças, cantos, riso e alegria,
E volto a celebrar a fantasia
Que rege o meu destino de pintora.

Como é belo assim viver em plena arte
O amor e a pintura conjugados
E fazer da minha sina, em contraparte,
O segundo e o minuto eternizados.

E abraço a doce Aline, em euforia
Como fazem as amigas reatadas
Em dupla que em gritinhos rodopia.

E sem pedir licença a ti, leitor,
Rumo ao quarto (na espiral, sutis guinadas)
Pra fruir, a sós, o meu amor!


FIM

Sonetos Tristes da Alma (de Alma Welt)


O langor da Alma- desenho de Guilherme de Faria, a pincel, naquin e aquarela, sobre papel Shöeller montado, de 51x73cm. Coleção particular, São Paulo.


Prólogo
1
Ó vento minuano, em ti me deito
E deixo-me levar e ao meu pranto
Que existe tão somente neste peito
Que insiste na alegria, nesse canto

Ao mundo, com o qual troca figuras
Nos versos e contos e pinturas.
Alma alegre, sim, coração triste,
Uma dupla, eu sei, que não desiste

De amar, cada qual com seu teor:
O triste coração, com a voz funda,
Enquanto a alma, prussiana, na verdade

Entoa um “lied” agudo, qual tenor
Que busca a “alegria mais profunda
Que a dor”, enquanto “quer eternidade!”




2
Sob este silêncio tão pesado
Cai a noite em minh’alma.
O coração arrio como um fardo
E o abro nestas folhas como a palma

Das minhas mãos, entregues, estendidas
Para a leitura, talvez à palmatória,
Que embora se façam entendidas
Penas e culpas procuram sua história

E encontram nestes versos a razão,
Origem, ou pelo menos o sentido
Para que traga o peito tão sofrido.

E volto à casa, ao meu porão perfeito
Onde escondia o jovem coração
Que já não confiava no meu peito.



3
Aqui, no velho casarão da nossa estância
Nasceu, ou veio, esta alma escancarada
Nascida pra alegria, em sua infância
Mas tendo uma raiz apaixonada,

Logo de saída, como um fado,
Encontrando em meu irmão a alma gêmea
Que poria o meu peito atribulado
Tão cedo me forjando como fêmea,

Pequena fêmea, doce e sensual
Que envolvia numa teia de candura,
De pequenas armadilhas, não a mal,

Mas perigosas para os jovens corações
Tão cedo enredados na loucura
De um amor assim, sem condições...



4
Verde pampa do sul, extremo engano
Onde corre o minuano com seus fados,
Tabuleiro onde o vaqueiro pampiano
Joga o laço como em seu jogo de dados!

Naquela macieira primordial,
Frondosa, no pomar da nossa estância
Gravei o coração com a inicial,
Primeira comunhão da nossa infância,

Esta sim, sagrada para nós,
Eu e Rôdo, comungados na pureza
De um amor tão perseguido logo após,

Quando o mundo abriu como uma tampa
E olhou dentro a cor e a natureza
Da paixão que já corria nesse pampa.



5
Percorro com o olhar estas lombadas
Seus títulos solenes, sugestivos
Lembrando os seus temas, seus motivos,
No universo de fronteiras alargadas,

Maior, talvez, que o nosso pampa
E o número de ondas de coxilha
Que me punha o olhar como uma guampa
Nesta terra de que sou eterna filha.

Mas na biblioteca do escritório
Nascia de novo a cada hora
Ali passada no silêncio e na demora

Do retorno do irmão, e o falatório
Que interrompia a leitura escolhida,
Duplo universo, já então, em minha vida.




6
Estrelas deste Sul, com seu Cruzeiro
Que guiava o Negrinho em pastoreio;
Miríades de astros, seu luzeiro
Que ouvia o coração em seu ponteio

De sanfona louca, fole ou gaita
Que foleia no peito, comandando
O taconeio em torno de uma baita
Lança, e a vida assim bailando

Como chinoca no galpão entre peões
Enquanto a água ferve e o mate espera
Na cuia até a borda e as beiradas

Rôdo e eu, no vento, em outra era
Assim nos vejo, como sombras exiladas
Onde outrora havia esses galpões...
7

Noite clara, e lua domingueira:
Nos vejo no pomar e à macieira
Onde fiz de um coração e a cicatriz
E perco a virgindade por um triz.

Ali deitamos, Rodo e eu, apaixonados,
Tão crianças, crescendo lado a lado.
Nos vejo comovidos e deitados
Olhando o céu, junto ao fogo e o mateado,

Ouvindo o coração em seu fandango
De pequenos dançarinos, na festança
De um amor inocente, de criança,

Mas que em sua intensidade assim crescente
Perdeu-nos de paixão quase demente,
E fez-se ouvir e ver, pequeno tango...




8
Deitados sob a árvore, interrompidos,
Tocaiados fomos e... flagrados.
Ainda sinto nossos dedos doloridos
Que foram brutalmente separados.

Estava nua, é certo, e soluçante,
Pois éramos apenas uns guris
Num flagrante assim tão degradante
Tratados como criaturas vis.

Ai, Rôdo, ai meu amor, sou tua irmãzinha!
Que pena, que dor, se assim me lembro
Pois mal tinha tocado o teu membro

Que era uma coisinha tão pequena
Que eu queria agasalhar na minha conchinha
Guardando-o, protegida desta cena!...


9
Canto de amor, ponteio ou realejo,
Vejo o meu amor descortinar
A minha vida, assim, a desfilar
Perante os olhos meus como um cortejo

De grandes e pequenas emoções,
Naquelas pradarias sob o céu
Onde o amor corria já sem véu
Colhendo flores, insetos e canções.

Ai, pequeno amor, ai meu irmão!
Aqui somente, abro o coração
Pois que leitores são como essas sombras

Do passado, que silentes, não promulgam
Suas sentenças, se acaso elas nos julgam,
Sem rosto, deslizando nas alfombras.



10
Guardei-me tanto tempo, até demais,
Pra quem tanto amou desde pequena,
Para então ser invadida, em tantos ais,
Nos nós de uma serpente que envenena

Mas cuja peçonha atenuei
No amor, e a duras penas conservei
O sonho, enquanto o corpo devassado,
Ai! tive-o assim experimentado.

Vocês que lêem os meus contos
E poemas, já sabem de que falo
Eu falo tanto assim, marcando pontos,

Pois quando me quero compensar,
Entrego o coração e o pelo ralo
Da guria que fui, no meu pomar...

Sonetos da Alma (de Alma Welt)


Rótulo do CD Sonetos da Alma, pintura de Guilherme de Faria de 100x100cm , óleo s/ tela, na coleção Galeria Cassiano Araújo, São Paulo.
A pintura ilustra o soneto n°12 dos "Sonetos da Alma"


Esta foi a primeira série de sonetos produzidos por Alma durante a sua experiência paulistana, quando conheceu Aline e viveu a sua grande paixão aqui descrita)

Prólogo
1

Amores, sonhos, e talvez vagos temores
Me cercam neste meu apartamento
Memórias e saudades, não rancores
Que não guardo nenhum ressentimento.

Porque vivo “o princípio do prazer”,
Seleciono o meu acervo de lembranças
Como “expert” garimpando o meu lazer
Colecionando meus tesouros de esperança.

E se algo me perturba na memória
Prefiro esmaecê-lo ou esquecer
Ou mesmo rejeitá-lo como escória

Pois comigo levarei chegando a hora
Um perfeito resumo desta estória
Como acalanto pra fazer-me adormecer.



2

Ouço a música que vem do coração
E procuro dançá-la em minha vida
Pois me vejo, desde sempre, resolvida
A viver a beleza e a perfeição.

Há quem diga que isso é impraticável
Pois que estamos no vale lacrimoso
Mas sei que o segredo mais notável
Desta vida é o lado montanhoso

E a senda na montanha, sua trilha,
Que nos leva ao cume portentoso
Onde é raro o ar que se respira

Pois que subir, subir é necessário
Pra não voltar ao lago perigoso
Que como espelho reflete o seu contrário.



3

Lanço um quadro novo e sua aventura
E me proponho ao choro e à risada
Pois que alguns percalços, porventura,
Encontrarei no meio da jornada

Duelos a poder de pincelada,
Derrotas transitórias que esvaziam
E no final, triunfo, emocionada,
Pois que a pintura é isso, não sabiam?

Vocês que, no final, verão a tela
Coberta dos rastros de uma vida
Nas cores que o coração revela

Não podem jamais imaginar
Que extremos, que altos, que descida
Ao fundo da alma, que é pintar!


4

Espero, assim deitada, o meu amor
Fingindo-me um pouco adormecida
Estou nua, estou bela, e comovida
E o prazer da espera ainda é maior

Pois que os segundos, minutos, talvez hora
Que levará pra sua descoberta
Aumenta o meu prazer com sua demora
E põe a minha pele mais desperta

Sinto correr o mel sobre a coberta
Da cama, pois me encontro sobre ela
Nesta suave angústia que me aperta

De ficar assim, me imaginando
Surpreendida nua em pose bela,
Voyeuse, a mim mesma me ofertando.



5

Quanta tristeza, às vezes, me reporta
Os amores guardados neste armário
O bem que fiz, e o mal involuntário
Em fotos como natureza morta

Assim perenes, congelados na memória
Jovens pra sempre, enquanto o tempo corre
Os amo ainda, que o que amamos já não morre
Senão em sua carne, falsa história.

Dentro de nós, vivendo eternamente,
Uns nos outros, como a saga da semente,
Está a vida, estilhaçada em sua imagem

Refletida em dois espelhos, frente a frente,
Que se espelham como um eco, na voragem
De um abismo de almas, comovente.



6

Escolho uma modelo de atelier
Sob o critério de que possa vir a amar
Bela e fresca como um fruto no pomar
Que a mão colhe, pois não pode se conter.

E agora eu me pego a esperar
Sua chegada, já um tanto ansiosa
Caí na armadilha cor de rosa
Que armei, para mim, sem atinar.

Vem, Aline, e toca minha sineta
Entra, tira o jeans e a camiseta,
Depois o teu sutiã e a calcinha

E nua, com teu porte de rainha,
Te põe diante de mim com minha paleta
Enquanto o coração pra ti caminha.



7

Vem pros meus braços, amor, não tenho ciúme
Necessito o teu calor e o teu cheiro
Não te banhes, não mudes teu perfume
Quero-te suja, possuída por inteiro.

Está bem que ames teu homem e dele sejas
Mas meu desejo é um tanto diferente
Não poderás deixar-me, de repente,
Pois que já te fisguei, e me desejas.

Quanta riqueza de luxúria neste ninho,
Perdida em teu caminho e tu no meu
Com todo um universo de carinho

Com que passei a amar-te loucamente,
Para além desse desejo, que era teu,
De olhar-te como musa, simplesmente.



8

Estou exausta, amor, de amar-te tanto
A noite toda mordisquei os teus pelinhos
Lambi-te como gata aos filhotinhos
Estás molhada de saliva, e não de pranto.

Tenho teu cheiro impregnado nas narinas
Me sinto viciada em endorfinas
Se me deixares, meu amor, com tua ausência
A síndrome terei, de abstinência.

Mas mesmo assim, amor, quero ir além
Entrar dentro de ti, e ficar bem
Sob tua pele, ouvindo a alma

No seu lento respirar, que então me acalma,
Fazendo o coração bater também
Com a cadência que do seu, assim, me vem.




9

Cerquei o meu amor dos meus prazeres
Como forma de encantá-la e seduzi-la
E ela, então, me deixa conduzi-la
Pelas sendas que tracei, entre os temores.

Mas sendo jovem, bela, com candura
Parece ignorar uma parcela
Dos perigos e armadilhas, para ela,
Que tornam esta jornada uma aventura.

E sendo este um encanto que a enfeita,
(Não fosse assim, não a teria amado tanto)
Pois que candura é uma virtude rarefeita

Me ama, com engano, no entanto,
Ao crer que a alegria, em mim eleita
Fará de nossa vida eterno canto.



10

Olho o mar, daqui, em sua grandeza,
Do canto em que me encontro, nesta praia
Meditando da minha vida a vã riqueza
Comparada ao universo que se espraia

Mas vejo que qualquer comparação
Na verdade, o real, em mim falseia
Pois o mundo desta Alma se baseia
Num cosmos infinito de amplidão

Onde estrelas são amores e memórias
No espaço e no tempo consteladas
Num universo próprio, em suas histórias

De alegrias e tristezas atiradas
Nas órbitas perenes que percorrem
Num concerto de astros que não morrem.



11

Tenho a consciência da grandeza
De um pequeno gesto captado
Pela mão da Arte, com destreza
Para sempre fixado além da carne.

Olhe este conto, esta pintura, este poema
E diga que não pude eternizar-me
Às vezes no universo de um tema
Às vezes muito além de onde encontrar-me.

Assim a humanidade se constela
Pois sua vocação é a eternidade
Projetados desde o barro e a costela

Fomos feitos pela criatividade
De um Pintor que fixou-nos numa tela
A passear num paraíso sem idade.




12

Olha, Aline, o quanto te desejo:
Enquanto dormias bela e nua
Pintei-nos num retrato, qual nos vejo,
Para provar-te que, pintora, ainda sou tua.

Vieste, por modelo, contratada
Um dia adentrando o meu estúdio
Deixastes ser por mim manipulada
Sem apresentar qualquer repúdio.

Agora aqui nos vemos, assim, nuas
Diante uma da outra. Qual a autora?
Que já não nos sabemos como duas.

Sou eu que pinto aqui, ou sou modelo?
Quem somos nós? Qual a pintora
Que fixou na tela as criaturas?



13

Ouvi o que teu sonho murmurava,
Meu nome, Aline, então pronunciaste
E vi que ali também eu já estava
No fundo do teu reino me encontraste

Ali, na região inominada
Onde em pleno ar brotam as flores
Pintadas pela alma como fada
Com uma paleta aérea de mil cores,

Vi na doçura da tua voz, primeiro,
Que era doce o sonho que pintava,
E eu te olhava, assim, enternecida.

Admirando a tua beleza adormecida,
Sem o castelo, sem a roca e o espinheiro,
Teu sono de cem anos eu ninava.



14

Hoje abro espaço nesta sala
De telas, cavaletes, sempre cheia
Para bailar cantar, como no Scala
Mas sem palco, sem coxia e sem platéia

Aline, serás minha parceira
Faremos “pas de deux” em nossa dança
Depois riremos aplaudindo a brincadeira
Estou feliz demais, como criança

Como é belo assim nos namorarmos
Como é mais belo ainda estar amando
A ponto de nos ver assim dançando

Sem do ridículo ao menos cogitarmos
E depois coradas e suando
Sugarmos nossos lábios, ofegando.



15

Ontem fizeste, Aline, uma proeza
No meu corpo, a ponto de eu corar:
Enfiaste-me teu punho com firmeza
Como se quisesses me estuprar.

Me retorci em volta do teu braço
Como uma chama em meio a ventanias.
Quando quiseste retirá-lo não podias,
Eu te retinha como agora às vezes faço.

Senti a tua mão dentro de mim
Como um parto às avessas, devassando,
Tateando-me por dentro, assim, assim,

Sentindo-lhe os dedos que se movem
Depois quando a retiras deslizando
Os rumores de água me comovem.



16

Era uma vez esta Alma aqui sem asa
Que vivia sozinha num estúdio
Situado nos Jardins, longe de casa
Lutando contra a moda e o repúdio.

Sendo difícil e fácil ao mesmo tempo,
A liberdade e os dons de alguns talentos
Que lhe doam alegrias e tormentos
E a solidão que resulta em contratempo

Pois me deixa vulnerável e sofrida
Por ti, Aline, que agora me atormentas
Com o suspense insuportável da partida

E se todavia, amada, tu fomentas
Neste verão o inverno de deixar-me
Não arderei de dor, vou congelar-me.



17

Ai, quero morrer da dor que me consome
Abandonada, estou, abandonada.
Mulher antiga, frágil, desvairada,
Nem me envergonho mais, não tenho nome.

Esta Alma aqui, pintora e poeta
Ou poetisa ( que coisa mais pateta )
Perdida de paixão e consumida
Pela perda mortal da minha amiga.

Abandonada, sim, quero morrer,
Quero voltar ao sul, quero encolher
E colocar-me pequenina no meu leito

No quarto antigo da mansão paterna
Enquanto a minha alma hiberna
Ao minuano que sopra no meu peito.



18

Vento frio, minuano, inverno desta alma.
Andando pelas sendas do jardim paterno
Da cidade natal, da terra que me acalma
E deixa a dor mais triste que o inverno,

Buscando a macieira, caminho no pomar.
Tão velha e sábia, testemunha cega
Do meu lento crescer, do meu desabrochar
Com os rubros pomos que a razão me nega,

Aqui sob esta árvore assim primordial
Procuro a minha paz dentro do peito
Enregelado, mudo, lento e invernal.

Sopra o minuano ainda no meu leito
Onde o meu amor transido neva
Sobre a alma, que o vento quase leva.



19

Volto ao estúdio querido, nos Jardins
Sentindo esta alma velha renascer.
Quero pintar, quem sabe escrever
Sonetos mais felizes, poemas infantis.

Quando me sentir recuperada,
Vou me vingar de mim, como Aretino
Escrevendo luxúria de enxurrada,
Porno-sonetos como aquele bom cretino.

Hei de estar curtida pelas dores
Causadas pela entrega aos meus amores
Pois foram tantos assim acumulados,

Perdidos, recalcados, na certa se somaram
A dor desta paixão tão cheia de cuidados
Por uma jovem que os ventos me levaram.



20

Termina este verão, para mim é primavera
Que o inverno foi no peito, não quero nem lembrar
Lancei meu novo quadro, depois de longa espera
E a grande tela branca começo a pincelar.

Rompo os bloqueios, ponho música em CD
A começar com “Freude”, a Ode à Alegria
Beethoven em minha veia, logo já se vê,
Então lied de Schubert, depois Ave Maria

Repasso agora a ópera, querida, rejeitada
Lakmé das campainhas, daquela jovem pária
Que então me comovia de forma inusitada

Ouvindo assim de novo aquela linda ária
Começo a renascer, viver, desabrochar
Em menos de um mês na certa vou amar.



Epílogo
21

Vida, Amor, amores, Arte e alegrias
Graças demais pr’um simples ser mortal
Humor, humores, gozo, enlevo sensual
Eros, Psiquê e suas maravilhas!...

E há quem erga a sua voz blasfema
Contra a Vida e seu amor, e quer conter-ma!
Há quem faça dela uma vigília enferma
Aos dons da própria Vida, e a ela tema.

Mas não penso neles, não agora:
Eu vi o Hades, renasci faz uma hora,
Não renego da minha vida um só minuto.

Amei, tudo apostei, perdi, pus-me de luto
(que em mim morri), voltei, torno a postar
Nesta roleta russa que é amar!