domingo, 31 de janeiro de 2021

Velhos deuses (de Alma Welt)

Sonho, às vezes, cultuar os velhos deuses,
Aqueles todos, de que Zeus era o maior
Da turma toda cujos nomes sei de cór,
E os mistérios órficos de Elêusis...

Por quê, Alma, tal afronta... Apostasia?
Logo tu que parecias tão temente
A Deus, embora um tanto inconsequente
Ao questioná-lO para efeito de Poesia...

Mas Deus, que os aturou por tantos séculos
Por conta da beleza que engendravam,
Uns deuses Dele mesmo só espéculos,

Sabe bem que na verdade eu sempre soube
Que era ELE que os gregos veneravam,
Com terrores que a ELE sempre coube...
.
31/01/2021

sábado, 30 de janeiro de 2021

O Sonho da Natureza (de Alma Welt)

Era guria e perguntei onde está Deus
Ao meu pai que ficou sério num instante.
Parecia meditar, meio distante,
Mesmo enquanto olhava fundo os olhos meus.

Então puxou-me pela mão me conduzindo
Para fora para andarmos na coxilha
Descortinando toda aquela maravilha
Enquanto o Sol moroso ia caindo...

E não sei se pela hora ou coincidência,
Ou então pela nobreza do momento
Fez-se um silencio doce e sonolento,

Pois seu dedo no meu lábio fez represa:
"Sssscccchhhhh... Respeite a santa sonolência,
Enquanto sonha com Deus a Natureza..."
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30/01/2021

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Paganini (de Alma Welt)

Todos querem a beleza de algum modo,
Cobiçá-la é diferente de cuidá-la
Mas, se a roseira, cuidadosa podo
É pra participar, e não calá-la.

Mas criar beleza, assim, do nada,
Ainda que isso seja duvidoso,
Só se for por Deus encomendada
Do contrário estás de parte c’o Tinhoso.

Paganini disso mesmo se jactava
(ou deixava que a plateia assim pensasse)
E disso prestar contas não contava...

Pois no seu leito de morte, não ao Demo,
Ao bom Deus só implorou facilitasse
Seu derradeiro arpejo belo e extremo...
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29/01/2021

As Antenas do Poeta ( de Alma Welt)

Dei-me conta das antenas do poeta
Celebradas num poema conhecido
E em mim, porque fácil me tem sido
O soneto, minha forma predileta.

Mas não pensem que o fácil é um inimigo.
De um mestre zen, me lembro, ouvi
Que o arqueiro “pensa aqui” (no seu umbigo)
A flecha parte e a ave cai em si...

Como a flecha certeira de um arqueiro
Conduzida por um gesto corriqueiro,
Assim também o poema alça voo

E revela a alma plena do conjunto:
O poeta, o poema e algo novo
Que se cria sem que se saiba muito...
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29/01/2021

Amor e Arte (de Alma Welt)

Vê: são a mesma coisa Arte e Amor,
E não serão, pois, jamais coisas à parte.
Então ama, estás em arte, és um autor
De uma obra impossível de descarte.

O teu amor pintará o teu desvelo
Independente do modelo à tua frente,
E por isso não descartes concorrente
Que bem pode arrebatar o teu modelo.

Sei que podes sofrer, o artista sofre,
Mas lembra-te: o importante era o amor...
Ou preferias guardá-lo no teu cofre?

Quando a tela é pequenina e muito cara *
Assim o faz um rico e tolo comprador,
Ocultando o que já era coisa rara...
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29/01/2021
Nota
*Quando a tela é pequenina e muito cara -
No final do século XIX e começo do século XX , muitos ricos colecionadores encomendavam telas bem pequenas (em geral pintadas em madeira nobre maciça, como as tampas de caixas de charuto) para os grandes mestres pintores valorizados do momento e de quem esperavam valorização maior como ações da Bolsa. As pequenas dimensões eram para poder guardá-las no cofre (!!!).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Grande Pé de Cachimbo (de Alma Welt)

Domingo longo vivemos, inclemente, *
O touro é forte e já bateu na gente
Que caiu no buraco e este é fundo,
Alguns dizem que já acabou o mundo...*

Só plantar "pé de cachimbo" me restou
Aqui na estância em honra de me pai
Que bem prudente e sábio me avisou,
Dizendo apenas: "Filha, assim não vai."

Mas eu não quis ouvir, deu no que deu,
E todo aquele meu esforço não valeu
Pois ao auto-engano eu dera margem...

Plantara versos no solo do deserto,
Corri para o meu lago, cheguei perto,
Tudo se desvaneceu... era miragem...
.
28/01/2021

Notas
*Domingo longo vivemos, inclemente/
Alguns dizem que já acabou o mundo - 
Alma parece estar se referindo à longa quarentena e à pandemia que está assolando o mundo.

*Pé de Cachimbo -
Os leitores da minha geração certamente lembram dos versinhos de nossa infância:
"Hoje é domingo
pede cachimbo
o cachimbo é de barro
bate no jarro
o jarro é de ouro
bate no touro
o touro é valente
bate na gente
a gente é fraco
cai no buraco
o buraco é fundo
acabou-se o mundo."

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A Beleza, a Verdade (de Alma Welt)

A Verdade é a Beleza e vice-versa,
Disse o poeta inglês John Keats *
Sobre o que o saber humano versa,
E quanto à beleza estamos quites...

Sim, pois dediquei minha vida toda
À beleza da poesia, por paixão,
E com ela celebrei a minha boda
Prometendo ser fiel até o caixão.

Não tive pois que procurar outro critério
Mas flertando com o real a cada verso *
Estou longe de estar em adultério...

Bah! Sei que alguns me julgam alienada
Pois que vivendo num mundo tão perverso,
Saciada de Beleza, não fiz nada...
.
27/01/2021

Notas

*O grande poeta romântico inglês John Keats (1795-1821 ), nos dois últimos versos de sua célebre "Ode a uma Urna Grega" escreveu os celebrados versos: "A Beleza é a Verdade, a Verdade a Beleza / Isto é tudo o que há para saber."
*Pois flertando com o real a cada verso - Alma aqui alude ao famoso axioma de Novalis: "A Poesia é o autêntico real absoluto. Quanto mais poético mais verdadeiro."

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

As mãos da avó Frida (de Alma Welt)

Minha avó Frida cultivava seu jardim
Pois que já tinha a própria vida em ordem.
Mas sabemos que a ordem não é assim
Se os remorsos, não raros, nos remordem.

Mas a velha que vivera guerras, duas,
Tinha o peso e a leveza do momento,
Manuseando as rosas de mãos nuas,
Pois de tudo tirara ensinamento...

E eu olhava suas hábeis mãos calosas
(que a mim pareciam um pouco garras)
A lutar com o humor de suas rosas.

E se algo um destino humano sela,
Essas mãos desataram minhas amarras
Para me soltar no mundo longe dela...
.
26/01/2021

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

O Perfume do Logos (de Alma Welt)

Por uns instantes voltar a ser guria
E regressar ao meu mundo encantado,
O que parece um tanto inusitado
É da alçada simples da Poesia.

Vou e volto quando quero, até o Natal...
E não confundam com "imaginação";
Novalis disse: "o autêntico real
Absoluto é a Poesia"... o resto não.

Meu mundo, que exponho a cada dia,
Só tem realidade e a valia
Por manter a natureza que o gerou

Que é a mesma do Logos Criador,
Que Deus lançou no ar, nos respingou,
E do perfume ainda resta algum vapor...
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25/01/2021

O real (de Alma Welt)

"No mundo real mora a Poesia,
A fantasia não é senão floreios;
Criar mundos irreais e utopias
É querer destruição por outros meios." 

Assim dizia meu pai filosofando
No meio de seus livros no escritório,
Sabendo-me poeta, me alertando
Contra todo inútil palavrório...

E eu que aprendi na sua cartilha,
Devo a ele meu senso do real
Que revela do mundo a maravilha...

E se aqui de um paradoxo lanço mão
Não é só contradição, não leve a mal:
Encantar é realizar o coração...
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25/01/2021

domingo, 24 de janeiro de 2021

A Torre ( de Alma Welt)

Esta minha alta torre do soneto
Em que sempre caberá mais um tijolo,
É uma torre de ouro, que prometo
Que nunca terá sido "ouro de tolo"...

Nenhum poeta jamais se arrependeu
De uma torre que também assim ergueu.
Nem Bocage, que os pecados d'uma vida
Redimiu em nova torre reerguida...

Quanto a mim, a construí de coração
Pela mesma razão da de Babel,
Que no fundo era de culto e devoção...

Mas se a torre é só miragem no deserto,
Senhor, não nos deixastes chegar perto,
E só queríamos chegar ao Vosso céu...

.
24/01/2021

sábado, 23 de janeiro de 2021

Olhai (de Alma Welt)

De correr pelas campinas fui guria
Mas não de pés descalços, farroupilha,
Mas com meu sapatinho que luzia
Muito preto, de verniz, só pr'uma milha.

Do casarão fui a prenda, a patroínha
C'o respeito dos peões ante meus cachos,
Que tiravam seus chapéus de barbicachos,
Fosse eu uma princesa, uma rainha... 

Ora, Alma, isso foi, não tens mais nada!
Sonhos tua mente ainda permeiam,
Esse teu conto é só conto de fada...

Mas olhai! Ainda corro como os rios,
Os campos do Senhor ainda têm lírios,
E as aves do céu não os semeiam...
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23/01/2021

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Mais sobre a poesia (de Alma Welt)

A poesia tem sua cota de nonsense
E até quem veja nisso sua razão.
Rever, julgar, ditar, não lhe pertence,
Não esperem da poesia explicação,

Pelo menos no que é a sua essência
Que a faz independente dos conceitos
Que porventura emita, e tão aceitos
Que iludam quanto à sua permanência.

Mas ah! Ser só canção, se for possível,
E ter o puro tom de ingenuidade
Que atrai a poesia pro seu nível...

E no entanto essa é a mais difícil meta,
Qual viver como se nada for maldade
E só pudermos fazer a coisa certa...
.
22/01/2021

A Hiperbórea (de Alma Welt)

Quanto aperta a solidão da minha poesia,
Eu cubro a cabeça com a coberta,
Um recurso que parece a coisa certa,
Mas o qual, em criança eu não fazia...

Então logo conclamo as minhas forças
Pra cumprir este meu estranho ofício
De escolher as palavras como corças
À beira de um gelado precipício...

Por isso amo o orvalho na coxilha
Com a promessa de gelo que contém
Mesmo quando se desfaz na minha trilha.

Pois ainda que às vezes se rebele,
Hiperbórea minha alma se mantém
E ainda as neves cobrem minha pele...
.
22/01/2021

Ainda sobre a Poesia (de Alma Welt)

Nada pode abalar a minha crença
No sentido puro e pleno da Poesia.
Ela é bem mais que versos, de nascença,
É um timbre, uma cor, uma energia...

Ora, Alma- direis- não vem com essa.
Isso é papo de hippie ou "natureba".
Energia, sim, mas só quando se meça,
E se constate em números numa ameba. 

Assim reagem meus irônicos amigos,
Aumentando a opressiva solidão
Que é o grande legado dos mendigos...

Mas não os ouço, minha língua é diferente,
E a Poesia nunca estende sua mão
A mendigar a caridade de outra mente...
.
22/01/2021

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O Espelho ( de Alma Welt)

Como todas, preciso olhar no espelho,
Só que o faço relendo os meus poemas;
Quanto a isto estou sempre no vermelho,
Mas devendo algo a mim, e apenas...

Pois só me reconstruo verso a verso
Com tijolos de uma íntima Babel,
Que somente no pó não os disperso
Uma vez que os preservara no papel...

E olhando meu perfil assim gravado
Percebo uma imagem tão complexa
Que, por simples, algo foi prejudicado...

Da pele viva, a beleza como tal,
Que, tola, eu tomava como pecha,
Me faz saudosa do espelho de cristal...
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20/01/2021



terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Tremeluzente (de Alma Welt)

Eis-me a pensar o mundo aqui e agora.
Quê mais podeis querer desta donzela?
Às vezes penso só em ir-me embora
Levando acesa, comigo, minha vela...

Ora, Alma- direis- és pretenciosa!
Quanto pode até um candelabro?
Nem mesmo os de Pessoa, aqueles, "glabros", *
Acompanham a fama que ele goza...

Sei que um poeta só não faz verão,
E não pode clarear tempos de trevas.
É necessário enorme batalhão...

Mas faísca ou pavio tremeluzente,
Se contigo a escuridão não levas,
Um passo te permite, e só pra frente...
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19/01/2021

Nota
*Nem mesmo os de Pessoa, aqueles, "glabros"- 
No Poema A Hora Absurda, de Fernando Pessoa tem um curioso verso:
"A doida partiu todos os candelabros glabros"... 
"Glabros" significa "sem pelos", um toque surrealista criado pela tentação da rima rara, e copiado (como menção) pelo nosso grande Jorge de Lima.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Anti-provérbios (de Alma Welt)

Se vale mesmo mais um pássaro na mão,
Mal acompanhado é andar sozinho.
Se criam monstros os tais sonhos da razão, *
Nossa jornada é puro descaminho...

Sempre andei só em pradarias infinitas
Olhando as aves a voar soltas no céu; *
Lírios do campo não têm sequer um véu *
Nem precisam de vestes nem de fitas...

Mas meus sonhos da razão são devaneios
E volto sempre a mim logo em seguida
E por certo busco o bem por outros meios...

Se preciso de conselho vou às rosas, *
Flor tão sábia que se cala se arguida,
Mas seu perfume tem fontes mais honrosas...*
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18/01/2021

Notas
* criam monstros os tais sonhos da razão- Alusão à famosa legenda de uma gravura da série Caprichos de Goya : "El sueño de la razón produces monstruos".
*Olhando as aves a voar soltas no céu;
Lírios do campo não têm sequer um véu - alusão às palavras de Jesus (em Mateus 6:25-34) : Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.
Olhai as aves do céu, elas não semeiam nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.
* Se preciso de conselho vou às rosas,
Flor tão sábia que se cala se arguida,
Mas seu perfume tem fontes mais honrosas... -
alusão aos famosos versos do samba As rosas não falam, do grande sambista Cartola:
"Queixo-me às rosas / mas que bobagem/ as rosas não falam/ simplesmente as rosas exalam/ o perfume que roubam de ti...
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sábado, 16 de janeiro de 2021

Confissões (de Alma Welt)

Àqueles que me cobram amor somente,
Como sendo do soneto a vocação,
Respondo que Amor é a semente
De mais estranha e variada floração.

Amor, reparem, está em quase tudo,
No vitalismo e no culto da amizade,
Tópicos que abordo à saciedade,
Que em prosa é preferível deixar mudo.

"E por quê calar na prosa temas tais?"
Insistem (e da razão tendo uma réstia),
Respondo: a prosa me é pessoal demais... 

O soneto é voz comum, universal,
E se passo por ser tão confessional
É para o efeito reverso da modéstia...
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16/01/2021

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A jornada na neblina (de Alma Welt)

A nossa é uma jornada na floresta,
A visão curta, sem sintonia fina.
Muito mais enxergamos pela fresta
Do que caminhando na neblina...

O futuro é um permanente nascituro,
O tomamos como se fosse presente,
Com os sorrisos de pós-parturiente
Que jamais no pós-parto avista o muro.

"O futuro a Deus pertence", diz o vulgo,
Mas se já foi criado ninguém sabe.
Deus disse: "Eu sei e não divulgo";

"Deixo às cartas da cigana e ao poeta
Especularem o arbítrio que a Mim cabe,
Deixei livre Minha parcela predileta..."
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15/01/2021

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A Revolta do Heterônimo (de Alma Welt)

Quisera ser somente uma gravura,
Ou esboço, um desenho, uma pintura.
E não me desses uma voz, biografia,
E o dom belo e doloroso da poesia.

Mas, hábil, tu, velho pintor, meu criador,
Tinhas por certo que abusar do teu poder
Dando-me vida com felicidade e dor
E ao meu próprio ajuntando o teu saber...

Bem sei que pagarás tanta heresia
Pelo poder de vida que usurpaste
Com o pretexto da heteronomia.

Alienando sutilmente o teu talento,
Vais pagar perante Deus o que causaste
Sem pensar quanto da Arte é sofrimento...
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14/01/2021

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A princesa das marés (de Alma Welt)

Como tantos heróis venero a vida
E a amo também como os covardes.
O crepúsculo me põe entristecida,
Mas tenho o gosto do cair das tardes...

Melancolia, ó mãe do meu fracasso!
Como te amo também, a meu despeito,
Sim, de outras ânsias do meu peito,
De sucesso cujos planos também traço...

Bipolar, eu sei, me tachas, me carimbas
E desejas que eu dance tua salsa
Enquanto sacodes tuas marimbas...

Bah! Permita-me cair com meu poente,
Sou romântica tardia, decadente,
Como às marés a lua é que me alça...
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13/01/2021

A corda e a caçamba (de Alma Welt)

Gosto pouco de sonhar adormecida,
Prefiro a boa cisma e o devaneio
Que pertencem a este plano e esta vida,
Neles posso escolher o tom e o meio.

Se me perguntas por que temo meus sonhos,
Se minha inconsciência anda pesada,
Se são sobras dos meus planos bisonhos,
Se minhas altas metas deram em nada,

Se subi numa boleia confiante
E sem rédeas dei com os burros n'água,
Ou se andei na cristaleira de elefante...

Eu te direi que me conheces pra caramba,
Entretanto afirmarei: não guardo mágoa,
Ainda tenho a corda e a caçamba...
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13/01/2021

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Como a hera (de Alma Welt)

Uma longa vida de experiência,
É tudo que peço ao Bom Senhor.
E que Ele me poupe da demência
Quando o momento da Boa Morte for...

Ora, Alma, por quê logo não dizes
Que tens pavor da Morte, como todos?
Tua fé é como o voo das perdizes,
Mais alto voes para escapar dos lodos...

Mas se à vida me agarro como a hera
Pelas paredes deste velho casarão,
Faria o mesmo se fosse uma tapera. 

Sim, tenho imenso apego a este plano,
Amo demais, Senhor, a vossa Criação,
E por ela peço sempre mais um ano...
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11/01/2021

domingo, 10 de janeiro de 2021

As Matrizes de Pedra (de Alma Welt)

Com a memória o dobro a vida dura.
Paralelas, se espelham ao infinito.
Já não sei qual é pedra e qual é lito
A matriz se confunde com a gravura...

Pergunto ao meu amigo gravador
Como pode a matriz ele apagar
(já que a imagem tem duplo teor)
Sem que se esvaneça em pleno ar?

Mas ele disse só: "Alma és poeta
E bem sabes: no que tange à impressão
Nosso meio se confunde com a meta.

Também em ti a impressão divulgas
De algumas pedras da matriz do coração,
Que viram versos mais densos do que julgas..."
.
10/01/2021

sábado, 9 de janeiro de 2021

A memória tecelã ( de Alma Welt)

Conquanto eu ainda seja jovem
As memórias de infância me povoam,
E certos lances voltam e me comovem
Pois que somente as novas horas voam...

E repasso, revivo as brincadeiras
E algumas aventuras de coragem
Que hoje minha prudência nem dá margem,
Mais medrosa (só palavras verdadeiras)...

A criança que já fui é um outro ser.
Assim somos todos, me parece...
Perdão, não costumo me exceder.

Generalizações... é um mau costume,
Uma rainha deixa seus pontos que tece,
Mas destece se com outros se reúne...
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09/01/2021

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O primeiro casarão (de Alma Welt)

Congelado no tempo, em pleno ar
Assim o vejo e ainda o purgo,
De meu primeiro tempo de sonhar,
O velho casarão de Novo Hamburgo...

Não aquele, depois, dos oito em diante
De mim guria nas estância dos avós
De que já contei, creio, bastante,
Mas do barro de origem, de outros pós.

Ali na casa que ocupava o quarteirão
Vivi o ingênuo amor por meu irmão,
O pequeno aventureiro de quintal,

Mas sem ter a desculpa de mais tarde,
Ao saber outra sua estirpe original...
E que Deus seja louvado e nos aguarde.
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07/01/2021
Nota
A paixão da Alma, a vida inteira por seu irmão Rodo, bela e dramaticamente contada em crônicas, no seu romance a Herança, e nos espantosos sonetos de pocker do blog "Sonetos do Rodo", e que ela mesma pensava de ser de caráter incestuoso (o que a fazia sofrer) foi absolvida de culpa, quando soube que Rodo era filho de ex-namorada com outro homem, mas assumido e criado junto com ela e as irmãs, por seu pai que escondeu esse segredo de sua família. A personalidade aventureira, destemida, de Rodo, que se tornou um jogador profissional de pocker, correndo em carros esporte pelo mundo e assumindo desabridamente grandes riscos, fascinava a poetisa, mais introspectiva e sonhadora...
Do período do casarão de Novo Hamburgo recomendo o belíssimo conto " "Nosso muro proibido", do blog "A Prosa de Alma Welt"
.

Tempos difíceis (de Alma Welt)

Difíceis estão os tempos, todos acham...
Mas quando eles não foram na verdade?
Realidade e Mito não se encaixam,
Talvez por culpa da tal "modernidade".

Não podemos reclamar o Paraíso,
Utopias não passaram de miragens;
Ouvir vozes do além é pura esquizo
E em geral vêm recheadas de bobagens.

Que saudades dos deuses de um Olimpo,
Que se não nos passavam a vida a limpo
Nos deixavam ser como eles, delinquentes...

E o Hades, então? Uns fogos brandos
Comparados aos do Inferno, bem mais quentes
Para fritar pecadilhos e desmandos...
.
06/01/2021

Hors d'oeuvre (de Alma Welt)

Individualidade prezo muito,
E em nome de todos nunca eu falo;
Meus sonhos todos foram pelo ralo,
Sobrou só algum menor, raro, fortuito. 

Entretanto lanço mão do universal
Que existe na linguagem da poesia
Que faz de qualquer um meu comensal
Num "hors d'oeuvre" que sirvo todo dia...

Não molotovs coquetéis de duras lavras,
Meu soneto é um regalo de palavras
Para quem saboreia o idioma..
.
Meu manjar é o que minha alma almeja,
Eu que me retirei da minha redoma,
Pra ser a todos servida de bandeja...
.
06/01/2021

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A passagem (de Alma Welt)

Na passagem de ano havia a festa
Inesquecível, na casa de meu pai,
Que de seu brilho agora pouco resta,
Algo se foi, morreu, e ainda se esvai.

Repeti-las, sem ele em vão tentamos,
Às nossas festas falta o estilo e a fatura.
Não se deve copiar o que amamos,
Quase sempre isso dá caricatura...

E quando ergui meu brinde de champanhe
Na despedida de um trem que ninguém vê,
Saudando o ano e convidando à nova vida,

Meu choro que se espera que o acompanhe,
Foi pelo erro cometido no guichê,
Que eu comprara passagem só de ida...
.
05/01/2021

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Amor Galante (de Alma Welt)

Só por meio de palavras encantadas
Eu poderia então dizer o meu amor.
O coração trabalha por pancadas,
E esta tarefa requer certo pudor...

Se preciso, recorrer a antigos termos
Dos tempos idos do tal "amor galante",
De "senhor" e "senhora" a todo instante,
Dos passeios a passo em prados ermos.

Ora, Alma, és romântica tardia...
Ninguém tem tempo agora para tal.
Passe logo um whatsapp, sua vadia!

Assim são os tempos... bah! que pena!
Acordei num mundo estranho e digital,
Quando ia numa ponte sobre o Sena...
.
04/01/2021

Meus fantasmas (de Alma Welt)

Por meus fantasmas tenho até carinho
Mesmo se me assombram nas caladas,
Como Anita Garibaldi nas baladas,
Noite adentro no meu leito em desalinho.

"És doida, és antiga, és delirante",
Diz uma amiga minha a todo instante,
Mórbida me achando, na verdade,
Tão distante da tal "modernidade"...

"Mas como? Tua Anita é "farroupilha" *,
Não aceitava sequer Pedro Segundo,
Não vês nisso um equívoco profundo?"

Bah! O engodo do "moderno" já saquei,
Amo Anita, mas do eterno enquanto filha,
Sob o "direito divino" de meu rei...
.
03/01/2021

Romanesca (de Alma Welt)

 Jovem embora seja, amo o passado
Que me trouxe até aqui, eu sinto,
Com este ar romanesco renovado
Mas da velha castidade nem o cinto...


Sou libertária, livre, muito nua
Na alma e nos momentos indevidos;
E se amo tanto o sol, venero a lua,
E me dou demais aos meus queridos.


Por isso me expulsaram do meu pampa,
Pois das prendas* não perdoam nem os puns,
E quiseram me fazer descer a rampa...


E se fui à capital, depois ao mundo,
Voltei com este estro mais fecundo,
Abrindo a alma para escândalo de alguns...
.
03/01/2021



Notas
*prendas - assim são chamadas as moças solteiras, no pampa gaúcho.
Para melhor entendimento deste soneto, recomendo aos novos admiradores da Alma Welt, que leiam o incrível capítulo do "Julgamento da Alma" no seu romance autobiográfico A Herança ( vide em e. book da Amazon, ou no blog Romances de Alma Welt )

sábado, 2 de janeiro de 2021

A volta ao Jardim (XXIII) (de Alma Welt)

Quero voltar ao jardim da minha avó,
Este ano é tudo o que mais quero,
Mas neste corpo e não em alma só,
Pra colher rosas do que não mais espero.

Foram-se os sonhos, restam as memórias...
Bah! verso banal... não acredito!
"Queres viver pra sempre?" como o dito
Do pistoleiro de filme em más histórias...

Sim, sim! Desejo só a eternidade,
Nem que seja para só repetição
Do mesmo gesto puro, sem maldade...

Eu com minha avó a colher flores,
Eu feliz (percebo agora que ela não)
Também ela a recordar velhos amores...
.
02/01/2021

A Encomenda renovada (de Alma Welt)

A cada novo ano em mim confio
Para nova empreitada de encomenda,
Mas num mesmo renovado desafio:
Serei feliz mantendo a minha lenda?

A solidão que isso implica já me pesa.
É duro carregar minhas costelas
Com mais uma de herança, como Eva,
Sem Adão, que seria a fonte delas...

A poetisa em mim, é, sim, uma vestal
Oficiando os ritos puros da Poesia,
Conquanto às vezes lúbrica e fatal...

Bah! Tudo isso é mito, Alma, bem o sabes.
Teu dom é descobrir a alegoria
No comum e banal, antes que acabes.
.
02/01/2021

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O Misterioso Mundo (de Alma Welt)

Não fosse o nosso mundo misterioso,
Eu nem viver sequer nele quisera,
Suas névoas são prelúdio do meu gozo
Tanto quanto uma manhã de primavera.

Respostas não são o que me instiga,
Que estas menos sábias me parecem
Que as perguntas das crianças quando crescem
E seu ingênuo teor que nos intriga...

Mas não faço apologia da cegueira:
Antes o olhar do lince e da coruja
Do que o fuçar rasteiro da toupeira.

Mas como é belo o mundo sem desvelo,
Enquanto a fera ruge e o cervo fuja
Por amor ao seu próprio e frágil pelo...
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01/01/2021

Revelações (de Alma Welt)

A que comparo o soneto a que me entrego,
A uma lira ou à flauta de um pastor?
Talvez pastor, mas o cão guia de cego,
O soneto é que me leva aonde eu for.

Meu soneto faz perguntas que não tenho
E dá respostas ao que nunca procurei;
É mais sábio, mais curioso, e franze o cenho
Para aquilo que imagino que já sei...

Também por isso não começo o meu dia
Sem um verso que antes não havia,
Absurdo que pareça num relance...

É que a névoa da manhã se abre aos poucos,
E se o primeiro não for sensato lance,
Faço coro com os raros e os loucos...
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01/01/2021

A Grande Ilusão (de Alma Welt)

O mundo é aparência, ilusão mera,
Ainda estamos nos costados do Dragão?
O mundo será Gaia ou Besta Fera?
Qual a face verdadeira da ilusão?

Deus nos entregou à sua Serpente
Já que fomos estragados, corrompidos,
Ou o Senhor quis passar um fino pente
E somente havia dois, nem escolhidos?

Essas perguntas no inconsciente levas
Mas já foram respostas que nos demos
Quando cegos tateávamos nas trevas...

Mas agora inventamos novas lendas,
Novas sagas a supor de onde viemos,
Quando ainda nem tiramos nossas vendas...
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01/01/2021