quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A dama da paisagem (de Alma Welt)

                                         A dama da paisagem- pintura de Guilherme de Faria


A dama da paisagem (de Alma Welt)

Tenho muito a sensação de estar vagando
Em território alheio, e inoportuna
Com a minha estranheza quando ando,
Branca, ruiva, solitária, antiga e una.

Levo sempre por disfarce meu cãozinho
Não só pra me dar ares mais domésticos
Mas pra no âmbito ficar do comezinho
Malgrado esta beleza sem cosméticos...

Sou essa pálida dama da poesia
Celebrada em nostálgicas pinturas
Que refletem minha própria nostalgia,

Já que fora do meu tempo e ambiente
Vivo num limbo com as outras criaturas
Que unir ousaram o coração e a mente...

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31/01/2018

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Uma vez (de Alma Welt)

Uma vez senti por perto a Tentação
Rodeando a minha alma imortal,
Que nem mesmo de
 poder ou ambição
De prata e ouro ou translúcido cristal,

Mas volúpia de voragem, vã vertigem
Da perfeita paz, supostamente,
Num momento infeliz da própria mente
Chamando aquela branca e falsa virgem...

Já pendia a corda em laço no galpão
E a banqueta colocada bem debaixo,
Faltava mesmo era a final disposição.

Então num grito: "Vade retro, tentadora!"
Voltei ao simples nicho em que me encaixo
E enchi de flores minha caixa de Pandora...

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30/01/2018

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A Volta aos Risos (de Alma Welt)

Voltar àqueles risos de alegria,
Tão simples, espontâneos, sem malícia,
De olhinhos brilhantes de delícia
Por coisas singelas que ainda havia...

"Caímos na real. Não é mais possível...
Por que queres, Alma tola, retornar?"
O riso é imaterial, mas perecível
Como os nossos sonhos são ao acordar...

Vê, a tua velha casa inteira estala
E geme e suspira em agonia,
Cheia desse tempo que não cala.

"Põe fogo em tua casa, dentro em ti!
Liberta-te!" diz a voz que não havia
Quando o riso era real, e tanto o ri...

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25/01/2018

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O Eterno Retorno (V) (de Alma Welt)

Tive sempre a sensação de estar voltando
Para um ponto de partida original
Acabado, organizado e já final,
Em que nada é o "se", mas simples "quando".

Conhecer, sempre me foi "reconhecer"
E inteirar-me foi sempre "relembrar";
E me perdoem pretensiosa parecer
Mas Platão já nos fazia isto notar...

Voltar ao lar foi sempre a minha meta,
Sem bússola, perdida pelo mundo,
Mas com uma saudade como seta.

E quando ao longe avistei meu casarão,
Murmurei num suspiro, o mais profundo:
"Posso morrer, voltei de mim ao coração."

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19/01/2018

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O país do limbo eterno (de Alma Welt)

Eu vivo no país do limbo eterno
Onde nada chega a ir ao fundo...
Não me refiro ao nicho onde hiberno,
Um dos mais formosos pagos deste mundo... 


Mas a uma pátria, além, de fancaria,
Onde nada afinal se concretiza
Não estas flores na minha pradaria
Ou a relva que a geada cristaliza,

Nem ao montado peão jogando o laço
Ou à sua boleadeira em extinção
Só pra efeito de performance de feira,


Nem da varanda a olhar (o que mais faço),
O Poente sem igual, que mais não queira,
A promessa de Deus, da perfeição...

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17/01/2018


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Pequenos fogos (de Alma Welt)

Meu mundo é o dos versos ritmados,
Acidentado universo de perigo
Alcançando momentos inspirados
Ou caindo no vórtice do umbigo.

É preciso savoir-faire e vigilância
Para evitar lugar comum e o banal,
E talvez um pouco aquela ânsia
De esconder um bem possível lado mau.

Mas quanta aventura num soneto!
Sequer sabemos o que mais dará no fim,
Dourada chave do último terceto...

Então, tudo se faz luz, parte do Logos
Que a própria Divindade pôs em mim,
Se não a Luz Maior, pequenos fogos...

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15/01/2018

À estrela do mundo (de Alma Welt) (para Clarisse Lispector)

Ó amor, quisera amar como nas lendas
Dos que davam suas vidas pelo amor
E enfrentavam as feras pelas rendas
De uma donzela vezeira de se expôr...


E ser eu a donzela desses versos
Naquela torre cercada de floresta,
A mercê de cavaleiros controversos,
Só um capaz do tal beijo que presta.

Mas que sei eu dos tempos de nobreza
Se nasci num casarão já decadente
De família não fidalga, mas burguesa?

Assim, só me restava reinventar-me,
Ser eu mesma a cigana e a cliente,
E à estrela do mundo também dar-me...

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15/01/2018

domingo, 14 de janeiro de 2018

Deem-me Tempo (de Alma Welt)

Minhas fontes vêm todas da memória:
Do passado vem meu Eu cristalizado,
De onde fruo do presente toda a glória,
E o sentido oculto, ou disfarçado...

"Então não vives o Presente, cara Alma?"
Pergunta um leitor meio apressado...
E eu respondo com a costumeira calma:
"Não, não vivo. Tua pergunta é já Passado."

Deem-me Tempo, ó coisas e fatos,
Pra digerir vossas tramas e delícias
E os coelhos que saíram desses matos...

Pois tudo o que depois de acontecido
Deixou os seus sabores, tons, malícias,
É Poesia e não pão amanhecido...

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14/01/2018

A princesa meio-quilo (de Alma Welt)

Eu, guria, minha avó recomendava:
"Alma minha, seja sempre recatada
E mantenha tua porta com a trava,
Olhos baixos quando passes pela armada." *

"Olha, os homens estão sempre numa guerra,
Cada donzela é como aldeia sitiada...
Então te valorizes como à terra
E não te entregues assim de mão beijada."

E eu ria, ria ouvindo aquilo,
Qual se estivesse nua num castelo
E fosse uma princesa meio-quilo...

E não tendo me levado muito a sério,
Tornei-me, não princesa, ao percebê-lo,
Mas poeta, o que é bem maior mistério...

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14/01/2018


Nota
*Olhos baixos quando passes pela armada - A avó da Alma faz alusão ao famoso poema medieval português de autoria anônima " A Donzela Que Foi à Guerra", que certamente inspirou Guimarães Rosa para o seu personagem Diadorim, do "Grande Sertão: Veredas." ( "Venham armas e cavalo e serei filho varão. /.... Quando passar pela Armada, porei os olhos no chão/ .....Senhor pai, senhora mãe, grande dó de coração/ Os olhos de dom Martinho são de mulher, de homem não./Convidai-o, voz, meu filho.... ")

sábado, 13 de janeiro de 2018

Alma no facebook (de Alma Welt)

De perder falsos amigos sou vezeira,
E me perguntem se sequer me importo...
Se ainda fosse por falar muita besteira!
Na verdade, muitos outros também corto.

"Olha, Alma, assim vais ficar sozinha!"
(ouço dentro de mim uma vozinha)...
"A casa das centenas não avança ,
A cada um que ganhas outro dança."

Então vejo que o mundo virtual
É talvez muito mais cru e verdadeiro
Que as antigas picuinhas de quintal.

E me debruço sobre o grato facebook
Como outrora sobre o meu diário inteiro,
Onde só eu saber de mim era meu truque...

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13/01/2018



Nota


Sem dúvida um momento inusitado da Alma, já que ela foi sempre atemporal em seus sonetos. Mas falar de sua própria atuação no facebook... por essa eu não esperava! rrrrsss (Guilherme de Faria)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

De repente (de Alma Welt)

De repente olhei assim ao meu redor
E me vi no deserto da Esperança
Onde rasteja o Mal e o Desamor
E temos medo da noite, qual criança.

Mas o mundo era o mesmo... O que havia?
Na verdade era uma guerra escondida
No dia a dia até no íntimo da vida,
E rubro sangue nas almas escorria...

Nossas mãos como inimigas degladiam,
Direita e esquerda, num funil,
Enquanto nosso tronco asfixiam...

E vi que o homem do homem é o tormento
Desde que o fumo de um ao céu subiu
E o do outro foi levado pelo vento...

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12/01/2018


Nota
*Desde que o fumo de um ao céu subiu/
E o do outro foi levado pelo vento. - alusão ao episódio do Gênesis, da Bíblia, em que Caim oferece um sacrifício de um fruto da terra a Deus (provavelmente queimando ervas), mas Deus não aceitou a oferenda (o fumo não subiu para o céu) mas aceitou de Abel "as primícias de seu rebanho e a gordura deste". Então, Caim enciumado matou seu irmão Abel. Quando Deus perguntou a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim respondeu: "Acaso sou o guardião do meu irmão? " E Deus o amaldiçoou... Eis aí a origem de toda a discórdia entre os homens.

Ó meus amigos (de Alma Welt)

Ó meus amigos, mais um ano com vocês...
Eu que até pensava em ir embora,
Para a vizinha Vila Nova das Mercês
Ou para a mais distante Bora Bora...

E fico, fico sempre até o final...
Sou aquela que fica na estação
A acenar pro trem em comoção
Na plataforma eternizada do real...

Estou cansada, amigos, de ver claro
A ponto de enxergar o trem fantasma
Que me irá levar sem cobrar caro,

Quando meu peito cheio de ar fecundo
Não quererá fechar, se não de asma,
Pelo apego que tenho a este mundo...

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12/01/2018

sábado, 6 de janeiro de 2018

Propósitos para o novo ano ( de Alma Welt)

Como todo novo ano que começa
Reúno meus melhores pensamentos,
Conquanto intenções boas não meça,
Sei que delas é o Vale dos Tormentos...

Neste ano não darei sequer conselho
Aos amigos que perderem o juízo,
Evitando, pois, meter o meu bedelho
Ou no gato sugerir botar um guizo...

Mas palavras de consolo, isto não nego,
Que embora seja grande pessimista
Meu coração mole logo entrego...

Dos sonhos despojados ou de intrigas
Consciente de estar na mesma lista,
Hei de unir minhas cigarras e formigas...

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06/01/2018


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Os Conselhos de Meu Pai (de Alma Welt)

"Seja honesta, justa e verdadeira,
Mas não se esqueça de ser boa.
Eis só o que é preciso, mais não queira,
Não vieste ao universo bela à toa."

"Se tiveres ambição, vai com calma,
Esta pode te levar a correr muito.
Alguns deixam para traz a própria alma
Numa curva perigosa do circuito..."

Assim dizia meu pai, se bem me lembro,
Comigo sentadinha em seus joelhos,
E se não me engano era Dezembro...

Mas do que disse, e me ficou do conselheiro
Não foram na verdade os bons conselhos,
Mas meu toque em sua barba, o tom e o cheiro...

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01/01/2018

Réveillon (de Alma Welt)

Chegamos afinal no fim do ano,
Nada levava a crer (cá entre nós);
Estivemos navegando a meio pano
Num oceano só de dúvidas, atroz.


Mas, marinheiros, fizemos nossa parte
Acorrentados e remando qual galés
Em calmarias ou abalroo de combate,
E estamos já com água pelos pés...

Mas pensando bem, esta é a vida.
Não foi diferente pra minha avó,
Sorridente e disposta à acolhida...

E ao chegar ao minuto da passagem
Que seja mais pra cima e não ao pó
E sejamos pleno rio e não a margem...
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31/12/2017