sábado, 30 de junho de 2018

Frios de Julho (de Alma Welt)

Frios antigos, de Julho, tão amados
Malgrado o meu severo minuano,
Que desde o território castelhano
Sempre vinha por aqui dar os costados...

Eu amava caminhar pelo vinhedo
Envolta no meu pala, e com luvas,
Quando eu acordava muito cedo,
Meu vaporoso hálito entre as uvas...

E emanando de uma densa cerração,
Silêncio plano, pleno, inigualável,
Com um dedo a fazer ssshhh ao coração.

Mas de repente um grito de rapina
Muito agudo, rascante e implacável,
Abrindo no meu sonho uma ravina...

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30/06/2018

sexta-feira, 29 de junho de 2018

A verdadeira vida (de Alma Welt)

Belas manhãs de inverno em nossa estância
Quando todos levantávamos cedinho
Para olhar a geada no caminho
Da escola rural da nossa infância...

Foi tantas vezes esta rota percorrida
Que, como era sempre a mesma,
Eu então me perguntava se minha vida
Deixaria só o rastro de uma lesma...

Sim, o Tempo era lento e arrastado
Pois numa esteira rolante eu me sentia
Tendo atrás cenário belo, mas pintado.

Mas ah! quando um livro eu abria
O mundo era bem mais movimentado
E a verdadeira vida aparecia...

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29/06/2018

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cantos de amor (de Alma Welt)

"Como posso o meu amor cantar
Se tantos já o cantaram bem melhor?
Se os mais sublimes saberei de cór
Ou de imediato deles vou me apropriar?

Assim dizia por candura a minha amiga
Que pensava ao Amor algo dever
Enquanto eu a afagava sem intriga,
Pois ela já o cantava sem saber...

O coração se abre, não apreende.
Seu erro é inocente o mais das vezes,
E um tanto de beleza sempre rende.

Que mudo seja não conheço amor:
Seu canto ainda dura muitos meses
Depois que as cinzas perderem seu calor...

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28/06/208




Love Songs (by Alma Welt)
(transliteration by Lucia Welt)

"How can I my love sing smart
If so many have sung it much better?
If the most sublime I will know by heart
Or will I immediately read the letter... "

So said by candor my friend
Considering she was in debt to the love
While I stroked him without lend
Because she already sang it like a dove.

The heart opens, does not apprehend.
His mistake is innocent most of the time,
And some beauty always stand...

I do not know a love that can not sing
His singing still lasts in ryme
After the ashes lose their heating ...

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06/28/208

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Os risos perdidos (de Alma Welt)

"Os poetas são tristonhos, Deus me livre!"
Assim se expressou a minha irmã
Quando eu era pequena, uma manhã,
E foi como um choque que então tive...

Não! Meus dias seriam muito alegres,
Escreveria uma Ode à Alegria
E gatos pretos não daria, mas só lebres,
"Não serei uma chorona", eu disse... e ria.

O tempo passou, vieram os mortos
Então voei, viajei para outros portos
E levei comigo sua lembrança...

Então voltei e me olhei no espelho,
Meu cabelo ainda era vermelho,
Mas meu riso não era o da criança...

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27/06/2018

A eterna rebelião (de Alma Welt)

Vão-se as horas e os dias como folhas
Levadas por imponderável vento,
Tornando inúteis e falsas as escolhas
Ou reduzidas a inerte pensamento.

"Tudo é inútil"... me diz a consciência,
Mas meu coração é posto em brios
Pela vaidade resistente, em calafrios
Sacudindo-me na minha desistência.

Tão desqualificado orgulho humano!
Como se erguem os fracos e vencidos
Para um novo levante ou novo engano...

Senhor, se não queríeis rebelião
Por que nos poupastes, presumidos
E tão vaidosos da Arte e da Razão?

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27/06/2018

Anti-poesia (de Alma Welt)

Minha prudente ex babá, a Matilde
Temia que eu ficasse pra titia
Com a minha mania nada humilde
De dedicar corpo e alma à Poesia....

Já contei isso mil vezes, na verdade,
Mas o faço agora pra mim mesma
Não só devido a esta saudade
Que está a tornar-me uma abantesma,

Mas porque minha saudade é o meu melhor
Já que não carreguei ressentimento,
O que por certo seria bem pior.

Me perdoem, estou a ser conceitual
Isto aqui não é poesia, é pensamento.
Quero voltar a ser poeta, meu normal...

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27/06/2018

A parábola convexa (de Alma Welt)

Sim, cada um de nós possui uma quota
De alegrias e tristezas alternadas
Para fruídas serem ou suportadas,
Exceto o homem fútil e o janota:

Estes vivem qual se fácil fosse a vida,
Risonhos cegos na beira do abismo
Ou bêbados pra quem álcool é a comida,
Ou idiotas que ainda creem no comunismo.

Assim falava meu pai, a mim, perplexa,
Que era só uma guria inocente
Querendo mais ser feliz eternamente...

E então, numa parábola convexa
Morreu meu pai e sua morte confirmou
O abismo cego, que só ele me alertou...

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27/06/2018

terça-feira, 26 de junho de 2018

As rosas no pó (de Alma Welt)

"O mistério da Razão, eis o mistério
Que desafia a própria razão nossa,
Pois ela é Deus em forma de critério
Ou o Diabo de nós fazendo troça"...

Assim dizia Frida Welt, minha avó,
Que ao podar rosas, retirando larvas
E ervas más que compartilham nosso pó,
Não eram necessárias nem palavras...

Minha avó era em si alegoria,
E eu sabia que se ela fosse muda
Suas ações teriam igual sabedoria.

Morreu Frida e eu voltei ao seu jardim
E só encontrei pó, terra desnuda;
Plantar rosas só cabia agora a mim...

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26/06/2018

sábado, 23 de junho de 2018

Em louvor de Alma Deutsher (de Alma Welt)

https://youtu.be/Nz0OAcYknyw

Em louvor de Alma Deutsher,
(prodígio musical infantil)(de Alma Welt)

Muitos de nós voamos muito raso, 
Muito já nos arrastamos sobre os pós,
Há quem não creia, pois, nos anjos entre nós
E no entanto há alguns deles ao acaso.

Alma Deutsher, eu a ti reverencio
Pois percebi tuas pequeninas asas
Invisíveis que são pro olhar vazio
Da maioria de nós em nossas casas...

Mas ao ver-te e ouvir-te ao piano
Eu caí de joelhos de imediato,
Admirada de estares neste plano.

Anjo puro de beleza e de talento
Tua origem celeste é, pois, um fato,
Tua música é Deus por um momento...

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24/06/2018

Palavras de minha avó (VIII) (de Alma Welt)

Se mantiveres o coração bondoso
Estás salva, não te corrompeste.
A bondade é ainda o maior teste
E da integridade o mais honroso.

Repara, todo desonesto é mesmo mau
Pois sabe bem que está prejudicando
E age torto como se fosse o normal,
E na ponta não estar alguém matando.

Então, minha Alma, eu bem te compreendi,
Quando tu te recusaste, eu percebi,
A brincar daquela "dança das cadeiras".

É bem possível viver sem disputar
Como também sem passar rasteiras,
Quanto mais pisar cabeças pra galgar...

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23/06/2018

Palavras de minha avó (VII) ( de Alma Welt)

Quando afinal, Alma, ao mundo fores,
E então perdida na grande multidão
Te lembrarás de mim entre estas flores,
Este jardim, a varanda, o casarão...
.
E lembrarás que eras feliz e mal sabias
Com esta tua inquietude de saber
Tudo aquilo que com olhos teus não vias
E só sabias de ouvir falar ou ler...

E por fim perceberás que não havia
Nada aqui que não fosse essencial,
Que não tivesse do mundo uma fatia.

O todo está inteiro em cada parte
Por isso é cada minuto tão fatal,
Por isso a verdadeira vida é Arte...

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23/06/2018

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Um simples resfriado (de Alma Welt)

Um simples resfriado ou dor de dente
Põem abaixo o ânimo do herói
E revela a imagem decadente
Que, inútil, nosso esforço, só, constrói.

Tal é a patética humana condição,
Que o astuto Ulisses aceitava
Em conversa com Circe meio brava
Por ele recusar sua ascensão.

Mas esse homem, frágil entre procelas,
É capaz de novamente alçar as velas
E enfrentar os deuses irritados...

O sonho de voltar, eis o segredo
De toda humana força no degredo
Deste mundo, mero campo de exilados.

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20/06/2018

terça-feira, 19 de junho de 2018

Fundamentos do absurdo (de Alma Welt)

Absurdos são a vida e o mundo
Diante da Razão que nós herdamos
Quando num impulso de um segundo
Fruímos do tal fruto que furtamos...

Nada mais fez sentido, fez-se o caos.
Muito antes da torre de Babel
Já estávamos confusos, tolos, maus;
Caim, coitado, já fizera seu papel.

Tardou-nos perceber que o Paraíso
Continuava a ser nosso cenário,
Pois formamos antagônico juízo.

À beleza que nos oprime agora
Contrapomos o nosso imaginário
Em que a inveja de Caim ainda mora...

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19/06/2018

Teoria e Técnica da invisibilidade (de Alma Welt)

Aplicada, minha mãe quis me ensinar
As estratégias pra invisível me manter,
Começando por deixar de escrever
Asas cortando-me para eu jamais voar.

Ela dizia: "Minha filha, fique quieta
E se possível muda como um peixe.
Entretanto caminhe sempre ereta
E não de lenha carregando um feixe."

"Jamais fale de si mesma ou da família.
O sofrimento esconda por indigno;
Misture-se depressa com a mobília .

"Amaldiçoa em ti tua poesia
Renunciando afinal a esse teu signo
Rebelde, que me olha com ironia..."

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19/06/2018

domingo, 17 de junho de 2018

O poder secreto da Poesia (de Alma Welt)

Às vezes penso que brincar com a Poesia,
Como lidar com a integridade de uma célula,
É confundir borboleta com libélula
E esquecer do átomo a energia.

Porque que sinto que a poesia é poderosa
Pois traz em si, secreto, algo latente
Muito além do que pode a simples prosa
Que muda um conteúdo ou continente,

Não que possa causar uma explosão
Ou o simples poder mágico de um gozo
De transfigurar a vida e o mundo,

Mas um poder de coração pra coração,
Como o boca a boca milagroso
Para quem, de si mesmo, viu o fundo...

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17/06/2018

A fonte secreta da Poesia (de Alma Welt)

Em que estás a pensar?- arguía meu pai
Como o facebook agora o faz...
E eu pensava cá comigo: Agora vai,
Vou abrir-me e talvez consiga a paz.

Mas não: meu coração tem um segredo
Que não consigo claramente exprimir,
Não por pudor, incompetência ou medo
Mas porque é denso demais pra dividir;

Ele é fonte da poesia como um surto
E que carrego qual pecado original
Ou trago comigo como herdeira,

Como a pulsão de Adão e Eva para o furto,
Anterior ao simples ato criminal
A que seguem as desgraças como esteira...

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17/06/2018

sábado, 16 de junho de 2018

O Medo (de Alma Welt)

Tenho medo da solidão da Morte,
Como o Corisco no meio da caatinga, *
Medo do frio que sobrevém ao corte,
E do silêncio que finalmente vinga.

Tenho medo do aniquilamento
Do ego longamente acalentado
Para nada, ou vislumbre de momento,
Para logo se apagar não anotado,

Duas datas somente, o tal resumo
Da ópera que foi a nossa vida,
Talvez um epitáfio como sumo.

Por isso arte, Arte, luta contra o Nada
Uma ilusão talvez, ingênua lida
Da alma eternamente inconformada...

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16/06/2018

Nota
*Tenho medo da solidão da Morte,
Como o Corisco no meio da caatinga - Alma está certamente aludindo ao belo monólogo do cangaceiro Corisco de São Jorge, o Diabo de Lampião, no filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", vivido  maravilhosamente pelo grande ator Othon Bastos,  na obra-prima de Glauber Rocha: "Tenho medo da Morte, Silvino. Tenho medo do frio e da solidão da Morte... " No filme segue-se uma maravilhosa oração de fechamento do corpo do personagem Corisco, sempre em forma de monólogo poético.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A Divina Justiça (de Alma Welt)

Clamei: Senhor, vejo justiças desiguais:
Pois conosco foram expulsos os animais
Que sem terem provado Vosso fruto
Vagam eles na terra em estado bruto,

Lutando, sofrendo, trabalhando
Como se deles também fosse o pecado,
Somente a dura terra não lavrando,
No mais, igual pesado e duro fado...

Francamente, não entendo essa "Justiça"
Que junto com seu dono pune o cão
Assim como a gazela e o leão.

E Deus me disse: "Ó Alma insubmissa,
Espera que tua batata está assando!
Está boa, Eu Mesmo andei provando"...

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15/06/2018

Sem conselhos (de Alma Welt)

Na vida sempre evitei aconselhar,
Nunca me verão dar um conselho,
Mas meus pecados me veem até rolar
Como bola de estrume o escaravelho.

Ousar ditar regras não é comigo,
Talvez seja centrada em meu umbigo
E assim sou exemplo de não ser;
Disponham, não precisam agradecer.

Me disseram porém que causo inveja
E fiquei perplexa com a notícia:
Comemorei com rima falsa de cerveja.

Enxergo a nudez nossa sem malícia,
Não como à roupa daquele pobre rei,
Que às vezes me dou conta de que a herdei...
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15/06/2018

Minha bela Moira (de Alma Welt)

De tempos em tempos dou com ela,
A Moira, que parece me gostar
E me aborda com um olhar que mela
E um sorriso lindo, de encantar.

Mas, Alma, não é assim que a Moira é vista!
A julgar pelo que lemos nos compêndios
A aparência dela é mais sinistra,
Mais como mendiga em seus remendos...

Com um chapéu de plumas demodé
A convidar-nos para a acompanhar no "thé",
Outros mesmo a veem como Madame.

Mas minha Moira é jovem e sedutora:
Me dá vontade de com ela ir embora
Desta minha bela ópera de arame...
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15/06/2018

O Trato (de Alma Welt)

A vida exige certo afastamento
Para ser plenamente aproveitada.
Demasiado envolvidos no momento
Não enxergamos do todo quase nada.

"Mas, Alma, não propões o "aqui e agora"?
Não consiste nisso a tua doutrina?"
Ora, amigos, isso apenas foi outrora,
Joguei tal filosofia na latrina...

Para fruir da vida o puro extrato
Fiz com o meu anjo um simples trato:
Que me deixasse preservar minha criança.

E assim vivo agora duas vezes:
Emendando meus sonetos de revezes
Com as minhas memórias de abundância...

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15/06/2018

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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Francamente ... ou Os Pelicanos (de Alma Welt)

Vivo às custas de pintura e de poesia,
Ballet, cinema, ópera e até drama,
Somente isso o fardo me alivia
Sem o que nem sairia da minha cama.

Sem Arte a vida é idiota, francamente,
Me perdoe dizer isso, meu Senhor...
É verdade que contamos com o Amor,
Também Arte, ele, pura e simplesmente.

Reparem que sem esse recurso
O que vemos é um simples debater-se,
Ou da insensata nau diário curso.

Talvez mero ir e vir do mercadinho,
Com sacolas cheias a romper-se,
Pelicanos voltando para o ninho...

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14/06/2018

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O Camaleão (de Alma Welt)

Ver o mundo pelo prisma da poesia
Não é de modo algum dourar a pílula.
O poeta, sim, delira ou se extasia,
Sem do mundo mudar nem uma vírgula.

Também não é pura aceitação,
Não, de puro conformismo não se trata
Descobrir a beleza ao rés do chão
Quando, de quatro, seus próprios cacos cata.

Fidelidade não se julga, puro fato,
Nasce como as cores de uma flor
E determina não destino, mas pendor.

O poeta é multicor camaleão:
Me é difícil apontar predileção
Ao tornar-me tudo aquilo com que trato.

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13/06/2018

terça-feira, 12 de junho de 2018

Não me cobrem (de Alma Welt)

Vim ao mundo para dar minha poesia,
Não me cobrem senão o gênio ou quase,
Não queiram que eu trabalhe ou case,
Só um pouco de beleza a cada dia.

"Saí de casa, só com massa e pita".
Lembram do pequeno Malazarte?
Sou a última talvez que ainda o cita,
Exemplo de matreiro engenho e arte.

Minha beleza ajuda, é verdade...
Não falo isso, bem sabem, por vaidade
Quanto a isso não posso fazer nada.

Este meu fardo, bem sei, parece leve:
A solidão é uma tara não notada
Ao pesar-se na balança o que se deve...

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12/06/2018

As rosas de minha avó (V) (de Alma Welt)

"De lágrimas este mundo é mesmo o Vale,
Todavia embelezá-lo nós podemos,
Ou pelo menos deixá-lo "meno male",
Dificultando as coisas para os demos."

Minha avó alsaciana assim dizia,
Já por conta cultivando suas rosas
Que eram suas dádivas honrosas
Nesse processo simples de poesia

Que era não somente em si a flor,
(que esta vem na conta do Senhor)
Mas na sua relação tão paciente.

E eu ficava observando a velha dama
Que mudava o mundo em sua mente,
Sortilégio de quem quase tudo ama...

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12/06/2018

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Tributo (de Alma Welt)

Disse o bom padre: "A vida é para dar, *
Não para receber". Foi o que disse
Ajuntando, ao que Valjean ia roubar,
Um castiçal pra que partisse....

Nunca me esqueço do episódio
Fundamental daquele grande livro
Que li quando meu pai era ainda vivo
E que me eliminou da vida o ódio.

Fui viver a minha vida em plenitude
Norteada, pois, por tal sabedoria,
Entregando de mim tudo o que pude.

Se não esperas receber, então és livre
Entre aqueles a quem falta a Poesia,
A miséria é só pedir,  mal sobrevive...

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11/06/2018

Nota
*"A vida é para dar, não para receber."Frase fundamental, que muda a trajetória e o destino do personagem Jean Valjean no monumental romance Les Misérables, de Victor Hugo.

domingo, 10 de junho de 2018

O artista e sua lenda (de Alma Welt)

Indo ao mundo, saindo de minha cama,
Não demorei a perceber certo desprezo
Que mundo revelava, frio e teso,
Pelo artista genial antes da fama.

E meditando sobre isso, percebi
Que do soneto mesmo vale a emenda,
E o mundo aprecia mais a lenda
Que a própria criação, a obra em si.

Pensei até cortar-me uma orelha:
(não era mais, felizmente, original)
E ainda aprecio demais meu visual...

A sofrer muito, também, embebedar-me
Sem necessitar tal fogo, na centelha,
Preferi a alma nua: o desvelar-me.

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10/06/2018

Últimos conselhos de meu pai (de Alma Welt)

"Já não és, Alma, guria como antes
E estás prestes a voar, a ir ao mundo...
Eis um conselho útil: sim, vá fundo,
Mas cuidado com os "insinuantes"!

"Quem são eles? São aqueles prestativos
Demasiado sorridentes e gentis,
Charmosos demais, demais ativos
Naquelas vênias e obséquios servis".

Sombras saídas das literaturas
Eu ouvia meu pai atentamente
Tentando imaginar essas figuras...

Já não crendo no mundo, no seu gozo,
O desencanto emanava de sua mente
E eu olhei meu belo pai: estava idoso...

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10/06/2018

sábado, 9 de junho de 2018

O Primado da Inocência (de Alma Welt)

Quisera ser alegre, ó meus amigos,
Rir à toa como em tempo de criança,
Correr por correr em meio aos trigos,
Nos cabelos uma flor ou uma trança;

Olhar todas as pessoas com olhos bons
Exceto quando torvas suas feições,
Porque quem vê da cara os meios tons
Vê por certo, com acerto, os corações.

Acreditar que a vida é uma aventura
Excitante, sempre rica de vivência,
Por dela enxergar a essência pura;

Reconquistar, não qualquer sabedoria,
Mas aquela do primado da Inocência,
Que por pouco a gente não perdia...

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09/06/2018

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Spengleriana * (de Alma Welt)

Tudo está perdido e então vivemos
Nossas "possibilidades extensivas";
A descida é longa, então rememos
Contracorrente como sombras vivas.

De quê falas, Alma? Sê mais clara,
Estás a falar como as esfinges...
Essa prosa enigmática mascara
Uma desesperança que mal tinges?

Então concordas que o barroco
Foi auge da cultura do ocidente?
Crês que o Van Gogh foi um louco?

A decadência é longa e agonizante,
Nosso Poente mergulha lentamente
Em miséria cultural apavorante...

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08/06/2018

Nota
*Spengleriana - relativo à Oswald Spengler (1880 –1936) historiador e filósofo alemão que escreveu "A Decadência do Ocidente" em dois tomos, que parece, a julgar por este soneto, ter impressionado a Alma Welt. Segundo Spengler, o período barroco foi o auge da Civilização Ocidental, na pintura mural, por exemplo, culminando com a arte de Tiepolo (!!). Por sua teoria, do século XIX em diante, grande obras de arte que porventura surgiram e ainda surjam, são apenas "possibilidades extensivas" (expressão criada por ele), já que a decadência de uma civilização sempre se arrasta por séculos. Seu livro causou grandes controvérsias. Nota: Spengler não foi nazista e se opôs à teoria da superioridade racial e por isso foi expulso da Alemanha.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Profecia de cigana (de Alma Welt)

É difícil sabermos onde estamos
Nessa nossa estranha trajetória,
Pois com a sorte mesmo não contamos
Nesse mapa que é, às vezes, palmatória.

Sempre tive um certo fraco por cigana,
Quanto mais brega, cafona, charlatã.
Um tanto sinistra, quase insana,
Uma delas descreveu meu amanhã:

"Alma",- disse- "serás lida pelo mundo,
Não só por teus cabelos vão amar-te,
Mas já estarás num sono bem profundo.

E eu saí daquela tenda aliviada:
Póstuma sempre é a verdadeira arte,
Nada de novo que eu não soubesse... nada.

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06/06/2018

segunda-feira, 4 de junho de 2018

O Segredo do Soneto (de Alma Welt)

O grande segredo do soneto
Consiste nele se escrever sozinho
Bastando um mote ou moteto,
Um teclado, uma tela e um ratinho.

Mas sem a inspiração, o que nos resta?
Pergunta quem acha isso um mistério...
Eu respondo: na verdade é o critério
Que não deixa passar o que não presta.

Ora, Alma, isso é puro Descartes,
Sem o anjo que sopra somos nada,
E o poema mero fruto de descartes...


Bem... concordo, meu anjo paira e zela
Pela última sílaba lançada
Para só então soprar a minha vela.

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04/06/2018

O primeiro contato (de Alma Welt)

Tenho saudades, o tempo todo quase,
De mim, de minha pureza e inocência
Perdidas pelo fruto da ciência
Que busquei a partir de certa fase.

Eu quis saber do mundo pelos livros,
Depois in loco, aí, pelas estradas,
Mas fatos e pessoas eram mais vivos
Nas páginas escritas e ilustradas.

Meio abúlica pareceu-me a humanidade
Que pensei em despertar meio tossindo,
Tal era a minha, sim, curiosidade...

Só me lembro de gente indo e vindo
E de alguém que me olhou e ficou rindo.
Qual se eu é que não fosse de verdade...

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04/06/2018

domingo, 3 de junho de 2018

Ideal (de Alma Welt)

Para elevar o mundo a um ideal
Não temos base para a comparação;
O que vem de nosso âmbito mental
A marca leva, já, da imperfeição.

Do ideal, portanto, eu tenho medo
Pois é dele que deriva a derrocada,
Depois da opressão (parte do enredo),
O naufrágio, o fracasso da empreitada.

Alma poeta, não és idealista?
Como pode não sê-lo, uma artista...
Bem melhor o mundo quem não quer?

Estava escrito: "Ideal" (mote do orgulho),
Estandarte na mão do próprio Lucifer,
Antes da guerra, da queda, do mergulho...

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03/06/2018

sábado, 2 de junho de 2018

O Medo (de Alma Welt)

Deus não falou no "medo", em seu furor,
Limitando-se a citar suor e pão
E também ao terrível parto em dor,
Estes anátemas cruéis da expulsão.

Mas o medo... báh! o medo os supera
Como perfeita maldição a qualquer um,
Pois se a morte incontornável nos espera
Bem podia ser banal, sem dor, comum...

Mas não! Esse fantasma nos assombra
Pois de um minuto vivido, salvo e são,
Era do minuto a própria sombra.

Medo: lado mais mesquinho do castigo,
Nos retira o sabor do próprio pão
E duplica a dor que o parto traz consigo.

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02/06/2018

sexta-feira, 1 de junho de 2018

O poeta sorri (de Alma Welt)

Muita gente tateia como cega
Num mundo de teor indefinível.
O poeta, rebelde, não se entrega
Ao nível mais rasteiro do visível.

Visionário? Talvez... mas do real
Em sua forma mais perfeita
A que alguns chamam de Ideal
E pensam que se trata de receita...

O olhar desvelador é privilégio; 
Para alguns talvez cause receio
Para outros, supremo poder régio.

O poeta tateia em outro nível,
Como cego em meio ao tiroteio
Sorri, pois como corpo, é invisível.

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01/06/2018

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Contra a falta de sentido deste mundo (de Alma Welt)

Contra a falta de sentido deste mundo
Propor a Arte, um gosto, um ideal
É o que faz o homem mais fecundo
Apesar da sujeira em seu quintal.

Vamos pintar como Hokusai a Onda,
Como Van Gogh a noite só de estrelas,
Ou como o Da Vinci a Gioconda,
Se na vida não pudermos mesmo tê-las.

Quê me importa a falta de sentido
Se num momento, um lapso, um latido
Refaz o cão que nem pude mesmo ver?

É sempre algo que tenho ao bel prazer
Pois, na verdade, para ver basta-nos crer
E o mundo é meu para só ser construído...

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31/05/208

quarta-feira, 30 de maio de 2018

A saga da Alma (de Alma Welt)

Para ti mesma, quanto, Alma, prometeste
Desde muito cedo em tua vida!
Cumpriste as tuas juras, escreveste,
Foste tu a tua Terra Prometida?

Fiaste a bela teia de sonetos
Que era o teu sonho de guria;
Sempre duas quadras, dois tercetos,
A cercear só a quem os desafia.

Desfiando o que em ti já era belo,
Aguardavas sob este mesmo teto
Uma transfiguração de teu castelo.

Conquanto nunca a paz isso te traga,
Eternizaste a verdadeira saga
Desse teu coração puro e inquieto...

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30/05/2018

domingo, 27 de maio de 2018

A Princesa (de Alma Welt)

                                              Alma no balanço - o/s/t de Guilherme de Faria, 2018, 100x100cm

A Princesa (de Alma Welt)

"Gente é pra brilhar" disse um poeta, *
E dizem outros que viemos pra sofrer.
Entre a hedonista e a asceta
Eu procurei uma maneira de viver...

"Minha guria, voar tanto é o teu mal"
Diz Matilde, fiel dama (minha ex bá)
Numa corte meio implícita e geral
Que sempre rodeou esta de cá...

Que posso eu fazer? Não tenho culpa
De ter nascido em meio a privilégios:
A borboleta não fica só na pupa.

Inebriada mas sóbria (nem cerveja),
Submissa aos (de Deus) poderes régios
Eu aceitei com modéstia ser princesa...

.
27/05/2018

Nota
* "Gente é pra brilhar" - verso famoso de um longo poema de Wladimir Maiakóvski:

A Extraordinária Aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no Verão na Datcha

A tarde ardia em cem sóis
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava,
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato
E de manhã
outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
¿Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!

E grito ao sol:
¿Parasita!
Você aí, a flanar pelos ares,
e eu aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!

E grito ao sol:
¿Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?

Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostra medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com a voz de baixo:
¿Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!

Lágrimas na ponta dos olhos
- o calor me fazia desvairar, eu lhe mostro
o samovar:
¿Pois bem,
sente-se, astro!

Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta²,
etc.
E o sol:
¿Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!¿
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
¿Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.

¿O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá prá o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

Vladimir Maiakóvski

sábado, 26 de maio de 2018

Alma e o Lobo (III) (de Alma Welt)

                        Alma e o lobo - o/s/t de Guilherme de Faria, 2012, 150x150cm

Alma e o Lobo (III) (de Alma Welt)

Uma vez eu estava na coxilha
À procura daquele meu guará
E encontrara suas pegadas numa trilha
Quando chegou Matilde, minha bá.

Ela zombou:"Com esse teu cabelo ruivo,
Estás a Chapeuzinho, tal e qual,
A perseguir o Lobo com teu uivo
Porque és avessa a todo o natural."

"Vem para casa, ó guria, deixa em paz
O teu lobo, que está dentro de ti
Solitário, arredio e contumaz..."

Eu a acompanhei no seu retorno
E no vetusto casarão logo me vi
Com Frida minha avó, e um banho morno...

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26/05/2018

Sossega, minha alma ou A Penélope de Deus (de Alma Welt)

Sossega, minha alma, o tempo rende,
E a medida nos foi dada com critério.
O soneto não é preciso que se emende,
Mas a métrica de Deus é um mistério.

Sim, há vidas que aparentam pé quebrado,
Falta-lhes uma ou duas silabas no verso
E o seu ritmo parece sincopado,
Logo ao vento seu balbuciar disperso.

Mas se és poeta verdadeiro
O Senhor preservará tua harmonia
Como repõe a tinta em teu tinteiro.

E em teu pequeno reino permaneces
Se o versejar de tua poesia
É só a teia que esperançosa teces...

.
26/05/2018

quinta-feira, 24 de maio de 2018

O idiota universal (de Alma Welt)

"Precavei-vos, minha Alma", diz meu pai
Nesse tão deliberado tom solene
"Contra o orgulhoso que não cai
Ou o simples idiota que é perene."

E eu ria que ria achando graça,
Ou simplesmente "de nervoso"
Já que só lhe notava o tom verboso
Pois o mundo estava atrás de uma vidraça.

Foi preciso crescer e ver o mundo
Com meu próprios olhos pra entender
Que a idiotice é um mal profundo.

O idiota é o mau inconsciente
Que causa tanto dano a toda gente,
E é quase sempre o último a saber...

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24/05/2018

terça-feira, 22 de maio de 2018

Puro cantar (de Alma Welt)

"Como depois de mil sonetos pode alguém
Ter ainda alguma coisa pra dizer?
Pergunta feita mais por mal do que por bem,
Que no entanto me foi fácil responder:

A poesia é uma espécie de cantar,
E como canta o mavioso rouxinol
Mas somente após cair o sol,
A cotovia canta o nosso despertar, *

Assim também o poeta verdadeiro
Abre o bico e canta pura e simplesmente,
Não só canto de cisne, derradeiro... *

Veja, a inspiração não nos pertence,
Está no ar, vem de cima, é um presente
Para quem com seu ego luta e vence.


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23/05/2018


Notas
*E como canta o mavioso rouxinol
Mas somente após cair o sol,
A cotovia canta o nosso despertar - Alma alude sutilmente à famosa cena do despertar da noite de núpcias de Romeu e Julieta, de Shakespeare.

*Não só canto de cisne, derradeiro... * - alusão à lenda de que o cisne, um animal mudo por toda a vida, lança um longo e doloroso canto quando sente que vai morrer. Tal fato (ou lenda) gerou a expressão popular "o canto do cisne (de fulano)" para a última manifestação ou despedida de um artista. A origem dessa lenda, está contida no episódio da escolha após a morte (metempsicose) do Poeta e cantor Orfeu de uma nova vida no corpo de um cisne, animal (o derradeiro canto de um cisne seria a manifestação paroxística da alma de Orfeu reencarnado), Esta estranha escolha do grande poeta morto pelas mulheres da Lídia, decorreu do fato do poeta traumatizado não querer mais "renascer do ventre de mulher", descrito no chamado "Mito de Er, o Panfílio (armênio)", nas últimas páginas do diálogo "A República", de Platão (em que está a maravilhosa descrição minuciosa e esotérica do Fuso de Ananke, de complexo sentido iniciático (vide Mistérios de Elêusis).
(Guilherme de Faria)

domingo, 20 de maio de 2018

O Mal está feito (de Alma Welt)

Que sabemos nós de Deus e desta Vida,
Seus insondáveis inúmeros mistérios?
Uma pedra imensa e esculpida
Já nos põe boquiabertos e aéreos...

Nossa memória é curta, não vai longe,
Na Terra de Caim já havia o Mal
E se o Dilúvio não vem e não esponje,
Tudo estaria como hoje, tal e qual.

Também Jesus morreu pra nos salvar
Mas ninguém infelizmente se salvou
E estamos todos no mesmíssimo lugar...

Não tem jeito, o homem veio com defeito
Reclamar pra Quem? Quem nos criou?
Não há devolução, o Mal está feito...

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20/05/2018

Correr Mundo ( de Alma Welt)

"Não penses, Alma, que o mundo é teu amigo:
Mal nascemos já estamos em perigo."
Assim dizia a minha bá Matilde
Que era tão prudente quanto humilde.

"Fica em casa a coser, ler, e a bordar.
De onde vem essa tua inquietação?
Os livros de teu pai deviam bastar,
Ali tem livro para encher uma estação..."

Eu ria e afagava o rosto dela,
A minha pobre ama-seca tão fiel
E que só não me queria aí, ao léu.

Foi preciso correr o mundo inteiro
Somente pra voltar pra esta janela
Onde o mundo vem na brisa como cheiro...


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20/05/2018

sábado, 19 de maio de 2018

Sonetos de Amor (de Alma Welt)

Por que quase não escreves sobre amor
Já que o soneto para isso foi criado?
Me perguntou, meio despreocupado,
Mas, a propósito, um certo bom leitor.

Como?- repliquei- "Tudo o que escrevo
Do amor está sempre sob o signo,
Por isso, de ser lido, mesmo, é digno...
Não me cobres jamais o que não devo."

Ocuparmo-nos das coisas deste mundo
Só é possível se pudermos transcender
A ironia, e o desprezo que há no fundo...

Quanto de amor é necessário adcionar
A tudo e a quase todos pra escrever!
Mas o açúcar?... convenhamos evitar.
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19/05/208

A Andarilha (de Alma Welt)

Fiel àquele mundo imaginário
Bem próprio de minha infância bela,
Mas agora com um pé no ordinário
Me vi pronta para desfraldar a vela.

"Sou poeta", eu disse, "não me pegam,
A mim, assim, não farão bem comportada;
A pele da alma não me esfregam,
Nem deixarão limpinha minha fachada..."

"Nem serei a poetisa sazonal
De um poema prodigioso e anual,
A poesia será meu cotidiano..."

E me tornei esta alma andarilha
Já que cessou o mundo de ser plano,
Mas em mim mesma criando a minha trilha...

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19/05/2018

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Minhas rusgas com Deus (de Alma Welt)

A vida é bem cruel no mais das vezes,
E me faz mesmo questionar o Criador.
Não gosto da injustiça e desamor
Com que trata umas crianças e as reses...

Ele diz que somos nós que o fazemos,
Mas Sua omissão é que me choca,
E um berreiro faço até, dos demos,
Que nos ouvidos Deus as mãos coloca.

"Cala-te, fedelha! Tu me intrigas...
O que tu pensas, ó tola peralvilha?"
(Deus fala assim, meio às antigas)

"De alguns por mais cruel que seja a sorte,
Para todos eu criei a maravilha
Do pleno esquecimento, que é a Morte..."

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18/05/2018

A viagem (de Alma Welt)

Minha avó diz que temos que correr,
Será preciso viajar, tudo é destino.
O trem partiu da estação ao sol nascer
E já temos sobre nós o sol a pino.

Se o embalo te deixa sonolenta,
Corra entre os vagões feito criança.
Para alguns a viagem é pasmacenta,
E o bilheteiro picota e não se cansa.

O apito, este sim, é auspicioso
Aos nossos sonhos e ouvidos pueris:
Faz crer que o maquinista é glorioso.

A estação final ninguém conhece,
Ouvi dizer que o nome é curto e lhe condiz,
A gente chega, lê, e tudo esquece...

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18/05/2018

quinta-feira, 17 de maio de 2018

O pão, o sal e o vinho... (palavras de minha avó) (de Alma Welt)

Não te mistures muito, minha guria,
Se acaso fores às vilas e cidades;
O povo necessita de poesia
Mas tem muito mais necessidades.

Se não és uma enfermeira pouco podes,
Ou uma médica, vocação sublime...
Mas não pedirei que te acomodes
Se és somente alguém que tudo rime.

Vai como menestrel por entre as gentes
E virás a conhecer o Bem e o Mal
Nos humanos corações e suas mentes.

Finda a função, declina dos convites,
Pra com eles dividir o pão e o sal
Porque o vinho que então vem não tem limites...

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17/05/2018

terça-feira, 15 de maio de 2018

Diogenes (de Alma Welt)

Diogenes - pintura de Jean-Léon Gerôme, 1860

Diogenes (de Alma Welt)

A vida é permanente luta interna
Ou ao menos procura obstinada
Como a daquele louco da lanterna,
Por oculta hombridade ou disfarçada,

Passeando com seu galo depenado,
Diogenes, de Sinope para o mundo,
Ao sol, no seu tonel sem fundo,
Pediu sair da frente um potentado.

De nossa procura verdadeira
Os políticos somente nos desviam,
Querendo nossa atenção a vida inteira...

Mas aqueles cujas sombras promoviam,
Da frente do meu sol eu expulsei...
Pleno de vinho é meu tonel, então, bebei!

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15/05/2018

A Banalidade do Mal (de Alma Welt)

"O grande problema da existência
É sabermos separar o Bem do Mal,
Pois estão misturados, com frequência,
E mesmo os tens bem aí no teu quintal..."

Meu pai dizia, fumando o seu cachimbo,
Ou num gesto banal para limpá-lo,
E o fazia somente no domingo
Com toda a semana de intervalo.

"Mas o perigo é uma fatal banalidade
Na qual o Mal entre nós se transfigura
Pra com ele nos sentirmos à vontade..."

Assim, meu pai me pôs bem alertada
Pois o Mal já se propôs imagem pura,
Que afirmava existir, não misturada...

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15/05/2018



Nota

Sobre "a banalidade do mal"
Por Felipe Tessarolo em 19/01/2016

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma teórica política alemã, de origem judaica, que atuou também como jornalista e professora universitária. Escreveu livros como As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958), Homens em tempos sombrios (1968) e Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal (1963) e é considerada uma das pessoas mais influentes do século 20.

Este artigo pretende fazer uma analogia entre as ideias expressas por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, o conceito sobre a banalidade do mal e o comportamento dos indivíduos nas redes sociais, que de certa forma replicam as análises desenvolvidas pela autora.

Adolf Eichmann foi um oficial da Gestapo nazista responsabilizado pela logística de extermínio de milhões de pessoas. Foi capturado na Argentina e julgado em Jerusalém no ano de 1961. Hannah Arendt foi enviada como correspondente pela revista The New Yorker para cobrir as sessões do julgamento tornadas públicas pelo governo israelense. Em 1963, com base nos artigos publicados pela The New Yorker, a autora publicou um livro sobre o julgamento e nele desenvolveu uma análise sobre Eichmann.

Um dos pontos polêmicos do livro é a maneira como a autora interpreta o comportamento de Eichmann, pois além de cobrir todo o processo do julgamento, ela ainda entrevistou pessoalmente o acusado. Segundo Hannah Arendt, Adolf Eichmann não era um monstro, alguém com um espírito demoníaco e antissemita. Ela o identificou como um burocrata, um sujeito medíocre, que de certa forma renunciou a pensar nas consequências que os seus atos poderiam ter. “Embora as atrocidades por ele conduzidas tivessem sido de uma crueldade inimaginável, ‘o executante era ordinário, comum, nem demoníaco, nem monstruoso’. Eichmann revelou-se, durante todo o processo, até os dias que antecederam sua morte por enforcamento, como uma pessoa incapaz de exercer a atividade de pensar e elaborar um juízo critico e reflexivo” (SIQUEIRA, 2011).

Mas é preciso dizer que os judeus no mundo todo ficaram indignados com a tese de Hannah Arendt, que consideraram uma judia renegada, e que ela, sim, é que estava banalizando o Mal. O Mal para os judeus é torpe e demoníaco ao extremo, e os nazistas estão associados a Satã sobre a Terra. Eu também assim acredito. A aparente banalidade do Mal no nosso cotidiano, é justamente uma das maiores perfídias do demônio.
(Guilherme de Faria)

Ervas Daninhas (de Alma Welt)

"Nesta vida, somente Amor e Arte
Têm algum sentido transcendente
Pois a Fé deles deriva ou faz parte
Que sem ela o Ser vive mas não sente."

Minha avó assim dizia em seu jardim
Protegendo suas flores de umas ervas
Que com o dedo apontava para mim:
"Daninhas e mortais se as conservas..."

Mas nenhuma diferença eu via, ou pouca,
De outras ervas com que fazia os chás,
E eu achava minha avó um pouco louca.

"As pessoas ervas são, minha querida,
E tu precisas distinguir quando são más,
Entre as boas no Jardim de tua vida..."

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15/05/2018

segunda-feira, 14 de maio de 2018

A Poesia e a Pintura (de Alma Welt)

A Poesia é irmã gêmea da Pintura
Mas não univitelina, na verdade;
E suas diferenças de estrutura
Têm a mesma meta e liberdade.

Por isso tantos poetas são pintores
(não só como Rimbaud com suas vogais)*
E encontram nas palavras suas cores
Buscando uma fusão que as liquefaz.

Dante, se não o Alighieri, mas Rosseti,
Logrou exercer magistralmente
Esse duplo mister que nos compete:

Plasmar do mundo o dom poético na tela
Assim como as cores de sua mente
Colorem cada palavra que a revela...

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14/05/2018

Notas
*não só como Rimbaud com suas vogais- O grande poeta Arthur Rimbaud
tem um famoso poeminha denominado "Les couleurs des voyelles".

*Dante, se não o Alighieri, mas Rosseti - Dante Gabriel Rossetti (Londres, 12 de maio de 1828 — Birchington-on-Sea, 10 de abril de 1882), originalmente Gabriel Charles Dante Rossetti, foi um poeta, ilustrador e pintor inglês de origem italiana. Devido à sua preferência pela poesia medieval e em especial pela obra de Dante, Rossetti muda a ordem dos seus nomes e passa a usar Dante em primeiro lugar. Fundou, juntamente com John Everett Millais e William Holman Hunt, em 1848, a Irmandade Pré-Rafaelita, um grupo artístico entre o espírito revivalista do romantismo e as novas vanguardas do século XX. Rosseti era tão grande poeta quanto pintor.

domingo, 13 de maio de 2018

O segredo do Humor (de Alma Welt)

"Sobretudo é necessário ter humor
Para viver, amar e fazer arte.
Humor não é algo pronto a se dispor,
É colocar-se a si acima e à parte..."

E contestei meu pai: "Como? O que dizes?
Quando íamos caçar naqueles dias
Comparaste-nos ao voo das perdizes,
Pobres humanos que voamos raso, e rias..".

E respondeu meu pai: "Vencer o medo
Para olhar-nos um pouco lá de cima:
Tolos, agachados, mãos na carabina..."

"Enxergar-nos do alto de um rochedo
Como talvez Deus nos veja: aparvalhados,
Ainda "gauches" nos sentindo, e pelados..."

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13/05/2018

quinta-feira, 10 de maio de 2018

A Obra Aberta (de Alma Welt)

"Não estamos nunca prontos, acabados,
E somos obra aberta pra retoques",
Dizia, remexendo os seus guardados,
Minha avó nos seus típicos enfoques.

E eu ficava imaginando o meu pintor
A pintar-me numa tela com esmero
Sem atingir o fim, e em desespero
Destruindo-me afinal por puro amor.

E dei-me conta de que Deus é o Artista
Que envelhece e mata por capricho
O modelo, quanto mais Sua mão insista.

E sorri, como a própria Monalisa
Cujo sorriso era tão somente o início
Da gargalhada a vir, e que ela avisa...

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10/05/2018

quarta-feira, 9 de maio de 2018

"Por quem os sinos dobram" (de Alma Welt)

Eu gostaria de ter sido só amor,
Sem dor, ressentimentos e ironia
Que se estes marcaram minha poesia,
Revistos quase ferem meu pudor.

O espelho da poesia não é qualquer,
Muito menos como um espelho de cristal
Lisonjeiro que devolve o que se quer,
Mas terrível, zombeteiro e quase mau.

A poesia é esse dom de solidão
E por nós os amigos vestem luto
Ou nos dão essa precoce sensação...

Pois os versos seu pacto nos cobram
Como ao Fausto a beleza do minuto
E somos vivos "por quem os sinos dobram"...

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09/05/2018

Notas
* "Por quem os sinos dobram"- Este verso célebre ( ...for whom the bells tolls...) são do poeta inglês elisabethano, John Donne (contemporâneo de Shakespeare) O poema a que ele pertence, começa assim: "No man is an island.."" Nenhum homem é uma ilha, somos todos parte do continente)...e termina : "Por isso não pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti."

*...seu pacto nos cobram/como ao Fausto a beleza do minuto - alusão ao pacto que o insatisfeito e entediado Fausto ( no grande poema dramático de Goethe) faz com Mefistófeles (encarnação do Diabo), segundo o qual se através das dádivas e poderes que o demônio lhe proporcionasse, num momento de satisfação e deslumbramento dissesse afinal "ao minuto que passa" : "Pára! És tão belo! ", o pacto cessaria, e pelo contrato ele morreria e a sua alma seria levada por Mefistófeles. Mas no final, inusitadamente Deus caloteia o Diabo (tratava-se de uma aposta de Deus com o Diabo pela alma do sábio recluso) e manda um anjo serafim sedutor em evoluções e meneios despertar a luxúria do diabo na hora da saída da Alma do corpo de Fausto, distraindo-o com sua beleza adolescente e tentadora, O serafim se aproveita da distração e escamoteia a Alma de Fausto levando-a para o céu. Deus, que perdera a aposta... ludibria o Demônio.

Autocrítica (quase pedante) (de Alma Welt)

Bem cedo com a beleza fiz um pacto
E dela eu seria uma devota,
"Data venia, latu sensu, ipso facto",
Preservando sua essência e sua nota.

Quero dizer com isso que elegi
A estética e o rigor greco-romano
Em que pese o beco em que me vi
Sem saída, passadista, quase insano.

Mas tal clássico modelo restringi
Tão somente à forma da expressão
Pois no conteúdo eu me expandi.

E do soneto eu seria esta guria
Cheia dos caprichos da Invenção,
Que são meu núcleo denso de Poesia...

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09/05/2018

terça-feira, 8 de maio de 2018

O Esquecimento (de Alma Welt)

Nada é mais triste que esquecer...
O esquecimento é o maior castigo
Que não desejo nem para o inimigo
Porque é a pura essência do morrer.

Me refiro só ao meu esquecimento
De mim em mim mesma, e não no outro.
A memória é o destino do momento,
Lembrar é ter consigo novo encontro.

Senhor, leva contigo a minha vida
Mas, rogo, não me tires a memória,
Tudo o que tenho é a minha história...

Que me importa uma alma sem lembrança!
Se toda esta bagagem é esquecida
Porque tanto a carreguei como fiança?

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08/05/2018

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Filosofia simples (de Alma Welt)


Pelo amor vivi a vida inteira,
Mormente o amor do ser humano,
E de tudo que existe na tal Feira
Das Vaidades, que pra manga dão o pano.

Tudo o que é humano me concerne
E até os pecadilhos me são gratos;
Na verdade, desta vida são o cerne,
Só não suporto os maus e os ingratos.

Há aqueles que nos desqualificam
Reafirmando o Mal em nossa vida,
E na escolha mesma com ele ficam...

Quero crer: o Mal não é a medida,
Só nos coloca fora de um sistema,
Pois é a falsa clara e não a gema...

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07/05/2018

domingo, 6 de maio de 2018

A queda (de Alma Welt)

"O mundo é falso, mas como tentação
O pomo continua em toda parte,
E o Jardim, com sua árvore de exceção,
Há muito virou lote de descarte..."

Assim dizia um velho professor
Quando eu estava na escolinha,
E eu ficava impressionada, com horror
Pois que o Éden no coração eu tinha.

Mas percebi o laivo de amargura
Mascarada de humor, daquele Mestre
Que perdera a mulher em queda equestre.

Ele mesmo é que caíra do cavalo:
Ela levada por bem melhor figura
Descobrira o Paraíso, sem amá-lo...

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06/05/2018

sábado, 5 de maio de 2018

O Mestre da Montanha (de Alma Welt)

"Se queres ser poeta muito leias,
Não sejas mera fazedora de versinhos.
Como os ninhos, os casulos e as teias,
A poesia faz-se à margem dos caminhos."

"Deverás sair da trilha das estradas
E abrir mil picadas a machete
Evitando as áreas desbravadas,
Somente nova trilha te compete..."

Assim dizia um mestre que sonhei
E que vivia no alto da montanha
Bem longe da cidade e sua sanha.

Mas de repente, foi-se o sonho, acordei
Na planura, e do soneto até a ode
O Poeta é o que faz só o que pode...


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05/05/2018

Teu é o Mundo (de Alma Welt)

"Teu é o mundo, filha, por princípio,
Pois, como todos nós, nele vieste.
Não o vejas como algo vão ou ímpio,
Ou do Eden uma fuga para o Leste..."

"Não matarás nunca um teu irmão
Nem roubarás o fruto do vizinho
De quem respeitarás a opinião
E mesmo um palpite comezinho."

"Frua o mundo, sem culpa, com respeito,
E o mundo te abrirá o seu segredo
Se provares te-lo antes no teu peito."

Assim disse meu pai quando nasci,
E por isso cresci quase sem medo,
Mas também por este "quase" eu me perdi...

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05/05/2018

segunda-feira, 30 de abril de 2018

A rebelde (de Alma Welt)

Medo da vida mesma tive nunca,
Tive medo é da sua adversária,
A maldita, multiforme, triste e vária,
Embuçada ou nua, sempre adunca.

Entretanto cortês, de voz melíflua
Um tanto grave, é verdade, mas macia,
Empenhada em evitar que a vida flua,
A despejar-nos com a água da bacia...

Devemos aceitá-la, ouvi na missa:
Só estamos aqui como castigo,
Nosso Vale não imita os da Suíça.

Mesmo assim, rebelo-me, discuto;
O que houve nada tem a ver comigo,
Jamais assumo o pomo que não furto...

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30/04/2018

domingo, 29 de abril de 2018

Balanço da Alma (III) (de Alma Welt)

Quantos amores e alegrias eu vivi
Na casa grande de meus pais e meus avós!
Quantas memórias e segredos recolhi
Como base de meus textos logo após...

Nada é falso ou fictício, pois meus sonhos
Fazem parte verdadeira desta saga,
Omitidos quando toscos ou bisonhos,
Transfigurando outros, nunca amarga...

Tristezas, sim, tive algumas, passageiras
Que não pude evitar no meu percurso
Estas intrusas e noturnas companheiras...

Mas emergi como musa triunfante,
De mim mesma, retomando meu discurso,
Indiscreta, pois da Vida fui amante...

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29/04/2018

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Alma no bosque florido (de Alma Welt)

                                           Alma no bosque florido- o/s/t de Guilherme de Faria, 2018, 100x100cm

                                    Alma no bosque florido - óleo sobre tela de Guilherme de Faria, 2018, 100x100cm

Alma no bosque florido (de Alma Welt)

Chegaste, Alma, no bosque tão florido
Que será a tua casa verdadeira,
E em silêncio doce e comovido
És branca nau com flores como esteira...

No mundo toda alma tem o seu nicho
Que é como um refúgio, uma capela,
Onde sem necessidade de uma vela
O Ser se reintegra, como um bicho.

É tua casa, chegaste, é como um porto.
Para alguns é como um estaleiro,
Para outros uma vigília, como o Horto...

Sossega, se acaso inquieta estejas
Para voltar ao mundo, esse vespeiro;
Agora abelha és, e as flores beijas...

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25/04/2018

terça-feira, 24 de abril de 2018

Pique-esconde (de Alma Welt)

Eu bem quis burlar o meu destino
Tentando evitar o inevitável
Como uma brincadeira de menino
Naquele pique-esconde memorável...

Mas a Moira era com quem eu brincava
E sorria para mim o tempo todo
Tal como companheira (assim pensava),
Já tramava dar comigo nalgum lodo.

Tristes são os jogos do vivente:
Não há como escapar na brincadeira,
Somos sempre descobertos de repente.

Mas retornando em forma de poesia
Através de mil sonetos em carreira,
Eu, meu pique-esconde estenderia...

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24/04/2018

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Eu e a Poesia (de Alma Welt)

"O autêntico real absoluto
É a Poesia", Novalis já dizia...
E sou sua companheira até de luto
Quando morre à míngua, em afazia.

Mas renasce e sou fiel à renascida
Quando parece não se recordar de mim
E tenho de acenar-lhe constrangida:
Sou Alma, não te lembras? Estou aqui, sim!

Morro e reencarno em mim mesma
Me buscando onde for meu paradeiro
Mesmo quando quase uma abantesma...

Meu mundo é realidade paralela
Mas real, absoluto, verdadeiro,
Com humilde persistência de uma vela...

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23/04/2018

domingo, 22 de abril de 2018

A Dança das Cadeiras (de Alma Welt)

Ó meus amigos, que saudades tenho eu
Dos tempos de nossas brincadeiras
De salão, como a "dança das cadeiras" :
Quem não sentou, caiu, saiu, perdeu...

Depois, na vida, seguimos com o jogo,
Nunca haveria cadeira para todos
E vi de alguns amigos pranto e rogo
Já que foram dar em chão de lodos...

Há quem diga que injustiça não existe
(meu pai mesmo era desta opinião)
Mormente para quem no erro insiste,

Mas, ai, como me lembro dos caídos,
Quem nem por isso mereciam ser punidos,
Desajeitados para os jogos de salão...

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22/04/2018

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Cristo nos espelhos (de Alma Welt)

Tinha tantas providências a tomar,
Como pôr a casa em ordem, por exemplo,
Me compor como se fosse me casar
Mas fazendo do meu corpo o próprio templo.

Assim perdi meu tempo em ninharias
Sem me dar conta um só momento,
Orbitando o espelho das marias
Madalenas antes do arrependimento...

Mas eis que vi um quadro do Van Gogh
Um belo autorretrato tão intenso
Que por um instante fiquei grogue

E vi que ele era o Cristo dos espelhos
Como em todos nós, mas nele imenso,
E me pus diante da Arte, de joelhos...

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20/04/2018

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Como posei para o pintor (de Alma Welt)

Pois ali estava eu frente ao pintor
Diante da tela no seu grande cavalete,
E sem ordem e o mais leve rumor
Fiquei nua sem ajuda de um valete

Ao deixar cair ao chão o meu vestido
Diante do surpreso olhar do artista
Que nem sequer fizera um tal pedido
E logo, de imediato, a tela risca...

Foi assim, mas não me alongarei
Pois jamais entro nos "sórdidos detalhes"
Que, tão lindos na verdade, ocultarei.

E emergi em pintura gloriosa
Como se fosse a rainha de Versalhes
E não esta tão inquieta que mal posa...

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19/04/2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O eterno retorno (IV) (de Alma Welt)




O eterno retorno (IV) (de Alma Welt)


Memórias, pensamentos, devaneios,
Com que ricos povoo estes meus dias
Que por certo não o são por outros meios,
Rica de mim, pobre de mim se não me lias

Tu leitor e face-amigo, passo a passo,  *
O melhor que posso, sim, diariamente,
Logo eu, que na verdade nada faço,
E tudo em mim se passa só na mente...

Mas o que é o corpo, não é verdade?
Este se vai como a canção do pó no vento *
E só resta de alguns poucos a saudade...

Quero, pois, estar contigo como agora
Já que fui só um ou outro pensamento
Que retorne de mim se eu for embora...

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16/04/2018


Notas
*... face-amigo - A Alma Welt,  após sua morte em 2007, passou a se apresentar ao artista Guilherme de Faria, desde 2008 na página dele no facebook, diariamente, seus sonetos e pensamentos digitados ali diretamente no Status, e datados na hora. Iniciados em 2001, seus sonetos já beiram os 5.000 (!!!). Somente neste blog, um dos mais de 60 da poetisa,  são, até este momento, cerca de 1.405.

* canção do pó no vento - Alma certamente se refere à belíssima e pessimista canção "Dust in the Wind", sucesso dos anos 80 da banda de rock americana Kansas.

sábado, 14 de abril de 2018

Pecado Original (de Alma Welt)

                                      Adão e Eva no Paraiso - curiosa pintura a quatro mãos, de Rubens e Jan Brueghel. 
                                                   Rubens pintou o casal e Brueghel a paisagem e os animais..

Pecado Original (de Alma Welt)

"Minha Alma, cabe a ti vencer o Mal
Que herdaste ao nascer, o tal pecado
Original, de fato assim chamado
E que faz de ti um ser mortal..."

Assim disse meu pai, quando eu guria
Lhe perguntei o porquê da confissão,
Que tão inútil então me parecia
Porque não tinha nenhum mal no coração.

Olhou nos olhos meus meu lindo pai,
Deu um suspiro e disse: "Vai brincar
No Jardim com teu irmão. Sossega e vai..."

Então voltamos, eu e Rodo, às maçãs
E até hoje não sei o que é pecar
Ao brincar nua no pomar pelas manhãs...

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14/04/2018

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Autocrítica (de Alma Welt)

Representação artística alemã de um aparato para destilação da Aqua vitae (em italiano "Aqua de Vita") o ethanol, do Liber de arte Distillandi, de Hieronymus Brunschwig, 1512.
Entretanto Aqua de Vita, era também conhecida como a mítica Fonte da Juventude, procurada e supostamente encontrada na Flórida pelo espanhol Juan Ponce de León 1460-152


Autocrítica (de Alma Welt)

Não costumo dizer "nós" no meu soneto,
Não sou ego-centrada o suficiente.
O que há comigo, erro ou acerto,
Por certo não atribuo à toda gente...

Individualista empedernida,
Quem quiser que se veja ou se reflita...
Estou a falar da minha vida,
Sou fonte mas não sou "aqua de vita". *

"Egotista sublime", disse um crítico, *
Dos de minha espécie, ou parecido,
Faço do meu centro um polo mítico.

Como se fora um humano querubim
Mas sem me atribuir geral sentido,
Tenho a desculpa de só falar de mim...

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13/04/2018

Notas

* "Egotista sublime" ´Expressão criada pelo crítico inglês Herbert Reed, que assim classificava o mais alto tipo de poeta (a seu ver), que aparentemente falando somente de si mesmo, falava de toda humanidade. Como exemplo disso "rendia todos os dias" graças a Shakespeare, "um poeta que não era nem um filósofo nem um moralista, e que vivia ao sabor do cristal terrível de uma mente intuitiva." Reed cita o poeta John Keats, um grande admirador de Shakespeare, que em uma famosa carta a Richard Woodhouse, contrasta Imogen com um dos personagens mais notoriamente imorais de Shakespeare, Iago, a fim de descrever o caráter do poeta: "O caráter poético não tem personalidade própria", tudo e nada - não tem caráter e goza de luz e sombra, vive com prazer, seja mau ou justo, alto ou baixo, rico ou pobre, mesquinho ou elevado - tem tanto prazer em conceber um Iago quanto um Imogen. O que choca o filósofo virtuoso encanta o camaleão poeta... Um poeta é o menos poético de tudo o que existe já que não tem identidade, e está continuamente preenchendo o corpo de outrem.
(Pesquisa de Guilherme de Faria)
___________________________

Nota (2)
* Aqua de Vita (em italiano) ou Aqua Vitae (em latim ) - Água da Vida, mais conhecida como Fonte da Juventude:
1. Em 1493, Juan Ponce de León sai da Espanha rumo à América, acompanhando Cristóvão Colombo em sua segunda expedição – financiada pelos reis Fernando e Isabel. Desembarca na ilha de Hispaniola (atual ilha de São Domingos), colonizando o território

2. Com o objetivo de explorar novas terras, Ponce de León chega a Porto Rico, onde é nomeado governador, em 1508. Por meio dos nativos, teria descoberto a existência de uma fonte da juventude, que ficaria ao norte de Cuba, em uma ilha chamada Bimini

3. Em 1513, sai em busca das águas rejuvenescedoras. Como a lenda dizia que a fonte ficava em um ambiente paradisíaco (onde também estaria o jardim do Éden), qualquer ilha tropical era digna de ser investigada

4. No domingo de Páscoa do mesmo ano, Ponce de León chega a uma costa, que nomeia de “La Florida” – que significa “A Florida”. Durante a expedição, é ferido gravemente por índios, sendo levado a Cuba, onde não resiste e morre

5. Muitos acreditam que o explorador tenha encontrado a fonte na Flórida – região rica em águas minerais. Em sua homenagem, foi criado o Parque Nacional da Fonte da Juventude, em Saint Augustine – cidade situada na primeira costa a ser colonizada por europeus


(Fonte Claudio Carlan, professor de história antiga da Universidade Federal de Alfenas, MG)



quarta-feira, 11 de abril de 2018

A Esperança (de Alma Welt)

Das intempéries estamos à mercê
Na frágil embarcação fazendo água,
E a lançar sinais no ar, que ninguém vê,
A trocar a nossa fé por pura mágoa.

"O quê que é isso, Alma? Não blasfemes!
A perda da esperança leva à morte,
Não da carne mesma, se é o que temes
Mas da alma, condenando a sua sorte"...

Assim disse meu anjo de asas brancas,
Imenso e claro velando sobre mim
Quando eu já tinha a água pelas ancas.

Então logo sacudi meu desespero
Como um cão, do focinho ao duplo rim,
Pois sobrava da vaidade aquele esmero...

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11/04/2018

segunda-feira, 2 de abril de 2018

O Último Baile (de Alma Welt)

Como é bom estar aqui entre vocês,
Amigos meus, reunidos pela face *
Melhor que temos, afinal, a cada vez,
Pra não mostrar somente o que se passe.

Porque se mostro sempre o meu melhor
Para estar entre vocês em plena sala,
Quero dizer que me visto, assim, de gala
Para as nossas reuniões, em tom maior...

Houve um baile, uma vez, na Ilha Fiscal
Onde a Corte reuniu-se em saideira,
Sem nem sequer desconfiar do Marechal...

Amigos, como então naquele Rio,
Dancemos nossa valsa, a derradeira,
Que a Liberdade está apenas por um fio...

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02/04/2018


Nota
*Amigos meus, reunidos pela face - subentende-se: pelo facebook...

domingo, 1 de abril de 2018

Páscoa de Chocolates (de Alma Welt)

Na Páscoa a gente ia para Gramado
Atrás de chocolate e até de neve,
E então, por um momento breve
Me sentia na Europa em meu Estado.

Imersa em um mar de chocolate
E cercada de pinheiros e de hortênsia
Eu vivia uma outra existência
Em que faltava o nosso charque e o mate.

Mas essas lembranças são inúteis
Não fazem parte do corpo de memória
Que compõem de fato a minha história.

Como postais são belas mas são fúteis,
Só meu pampa me contém, é plano e largo,
Ó coração de chocolate meio-amargo!...

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01/03/2018

sábado, 31 de março de 2018

O véu rubro (de Alma Welt)

Às vezes, me perdoem, eu quero ir-me.
Quantas vezes, ai! quero partir,
Com esta "dor de pátria" a afligir-me
E não tendo mais pra onde fugir...

Minha nação envenenada, agonizante,
Os lábios distorcidos em agonias;
Dois punhais de fogo temos diante,
Mas, há muito, povo nosso, já não rias...

Não quero mais ver isto, e ir embora
Tornou-se-me desejo imperativo
Conquanto nada exista pra mim fora.

Ó véu rubro que assomas como nuvens,
Não há nada de bom de onde tu vens,
Nem mais o doce gosto de estar vivo...

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31/03/2018

sexta-feira, 30 de março de 2018

A falsa paz (de Alma Welt)

Sempre senti que paira uma ameaça
No ar, em meio a paz deste jardim,
E diante de uma nuvem má que passa
Eu perguntava à minha avó, assim:

"Nenhum alarma nem flâmula se alça
E mal ouvimos o rangido da porteira.
Vó Frida, por quê a paz me soa falsa?
Por quê razão não a sinto verdadeira?"

E a velha zombeteira e perspicaz
Piscou o olho fazendo uma careta,
E disse: "Alma, pergunte ao capataz."

"O Galdério é que sabe dos rumores
E ouve primeiro o rufo dos tambores
E muito longe o sopro da corneta..."

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30/03/2018

quinta-feira, 29 de março de 2018

O Manjar Branco (de Alma Welt)

"Como estar em paz na vida e relevar
Tantas ofensas graves e ameaças?
Como inteira ser feliz e perdoar
As perfídias alheias e as trapaças?"

Assim falava minha mãe pondo perguntas
E questões na minha boca emudecida
E perplexa, já que essas coisas juntas
Sequer faziam parte da minha vida.

" Mãe" - eu respondi - "Não tenho queixas!
Mas do que a senhora está falando?
Fiz um branco manjar cheio de ameixas...

Vê, olha os contrastes, sou assim.
As ameixas são escuras, mas melando,
Não desejes pôr receios no pudim..."

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29/03/2018

terça-feira, 27 de março de 2018

Memórias da Alma (de Alma Welt)

"Minha filha, viver é estar na selva
E deixar o rastro onde passemos.
Nossas ações, nossos passos nessa relva
Definem quem nós somos ou seremos..."

Assim meu pai dizia, aventureiro
Que avistara coisas escabrosas
Na ascensão do Reich (o Terceiro),
Mas voltara aos vinhos e às rosas...

E eu, sentadinha em seus joelhos,
Viajando em suas palavras como um coche
Diante do Jardim da minha avó Frida,

Cercados pela vinha do avô boche
Chegado mais aos mandos, não conselhos,
Lá ia eu, no coração forte da Vida...

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27/03/2018

domingo, 25 de março de 2018

As três perguntas (de Alma Welt)

                                D'ou Venons Nous / Que Sommes Nous / Où Allons Nous (pintura de Paul Gauguin)


As três perguntas (de Alma Welt)

A meu pai, quando guria, eu prometi
Investigar a razão e o sentido
Da Vida e da Arte... e comovido
Então, mais uma vez, o grande homem, vi...


"Alma minha" - disse ele- eu acredito
Que procurarás o Bem, o Justo,
E a Beleza, que já têm um alto custo,
Pois neles, sim, é que repousa todo Mito.

Fiquei perplexa, mas só por um segundo,
E respondi que os usaria como meio
Pois queria penetrar ainda mais fundo.

Pois queria é encontrar as três respostas
Para as três perguntas, no alto postas
Da pintura de Gauguin, que sempre leio...
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25/03/2018

quinta-feira, 22 de março de 2018

Quê mistério... (Alma Welt)

Quê mistério a vida é, quão espantoso!
A rigor tudo é milagre, se pensamos...
Dormir e sonhar são um dos ramos
Da Árvore da Vida em pleno gozo.

Mas em quê pesadelo a transformamos
Em nosso recebido arbítrio livre
Que, se nos define enquanto humanos
Também cria o Inferno que em nós vive.

Sempre uma e outra coisa, sempre extremos,
Sempre dupla a visão ou o conceito,
Dupla chance ou falsa escolha temos...

Quantas vezes quando estou desesperada
Peço a Deus mais uma mão, nova cartada,
Outra rodada de blefes no meu peito...

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22/03/2018

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Olhai as flores (de Alma Welt)

Vivo, sim, em eterna vigilância,
No que for concernente à minha alma,
Que me foi dada, eu sei, em confiança,
Para levá-la de volta sem um trauma.

Mas "trauma" é sonho, dizia minha avó *
Se referindo da palavra a própria origem
Na sua aldeia, de onde saiu só
Pra encontrar com meu avô, ainda virgem.

E zelaria por mim muito mais tarde,
Preservando não a minha inocência
Mas a própria chama que em mim arde.

" Minha Alma"- ela dizia- "olhai as flores
E mantenha como elas vossas cores
Até o fim, tudo mais é excrecência"...

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23/02/2018

Nota
*..."trauma" é sonho, dizia minha avó - O termo psicanalítico "trauma", deriva da palavra alemã "traum" = sonho, sonhar.
Frida (Frieda Henner-Welt), a avó da Alma, era alsaciana e sua língua de origem, o alemão.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Devolução (de Alma Welt)

Muito andei por aí perambulando
No meu tempo de desassossego,
Algo muito específico buscando,
Não tateando como camundongo cego...

"O que buscas?"-perguntaram- "Estás perdida?
"Não perdeste o aplom e a doçura...
De onde vem essa desenvoltura
Como quem já se encontrou na vida?"

Busco um poema tão perfeito (eu respondi)
Que revele do Ser o quando e o como,
E que tenha sido eu que o escrevi.

Quero levá-lo ao meu Jardim e seus limites
E dizer logo a Deus: "Eis Vosso pomo.
Tomai-o, pois, de volta e estamos quites ..."

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22/02/2018

Entre Deus e o Diabo (de Alma Welt)

"Que queres, Alma?" me disse Deus um dia.
"Peça claro e bom som embora eu saiba.
E não me venha com papo de poesia
Ou qualquer outro truque que não caiba."

"Mas Senhor, só me destes as palavras,
Do teu Logos um pouco, em verso e rima.
Se tudo isto não vem aí de cima,
De onde vem, Senhor? Que outras lavras?"

Assim eu conversava com o Senhor,
Inconteste criador do Céu e Terra
A quem, modesta, atribuo meu pendor...

"Filha, o Diabo aqui esteve em meu salão.
Qual Salomão me pediu que usasse a serra
Pra dividir-te com ele, o fanfarrão..."
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22/02/2018



Nota
*Qual Salomão me pediu que usasse a serra - Alusão ao episódio bíblico do Juizo de Salomão, em que duas mulheres disputavam a maternidade de um um recém nascido acusando-se uma a outra de usurpação. Salomão mandou que um soldado dividisse a criança ao meio com a espada (aqui,figuradamente "serra") A verdadeira mãe, cujo bebê fora roubado durante o seu seu sono pela vizinha que sufocara no leito o seu próprio por acidente, desesperada, gritou: "Não o matem! Deem a ela o bebê!" O rei Salomão então soube que essa era a verdadeira mãe...

A filha pródiga (de Alma Welt)

No bosque das ilusões perdidas *
Encontrei-me em certa ocasião
E perdido o rumo e as saídas
Sentei-me e chorei, não por Sião,

Mas por minha vida àquela altura,
Sem fé, sem rumo, sem um Deus
Que me pusesse de novo na procura
Ou mesmo uma razão para um adeus.

O bosque mesmo já desaparecia
Como a quem sua própria terra arrasa
Quando ouvi uma voz que me dizia:

"Alma, já que não foste nada módica,
Podes voltar agora pra tua casa
E seres de ti mesma a filha pródiga..."

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22/02/2018

Nota
* " bosque das ilusões perdidas"- Alma pede emprestado este belíssimo título brasileiro do filme francês do diretor Jean-Gabriel Albicocco, baseado no romance de título original infeliz:" Le grand Meaulnes"...

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Lições e lembranças (de Alma Welt)

"Que podemos nós fazer diante do mundo
Repleto de maldade e injustiça? "
"Olha dentro de ti a tua preguiça
E se puderes vai mais fundo..."

Assim com meu pai eu conversava
Já que era um agradável moralista
Pois que a alma alguma condenava
Mas as passava em boa revista...

A mim nunca ralhou, era meu fã,
E se a sua ternura me mimava
Me acordava muito cedo de manhã.

Com sua voz de baixo irrompendo
No meu quarto a Nona ele entoava,
Eu mais fundo nas cobertas me escondendo...

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21/02/2018

O País dos Belos Sonhos (de Alma Welt)

As lembranças da infância, recorrentes,
Não cessam de me acompanhar,
E aparecem também as provenientes
De outra dimensão, tempo e lugar.

Temos muitos passados e presentes,
Estou disso há muito tempo convencida,
E vivo por enquanto ou entrementes
Na experiência de um exílio nesta vida.

Daí esta minha eterna nostalgia
Que não há meios e modos de curar-se
E que é a raiz de minha poesia...

"És romântica" (me dizem com espanto),
"Para ti o feio mundo é um disfarce
Do país dos belos sonhos sob um manto"...

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21/02/2018

O que cala um coração (de Alma Welt)

Meu pai dizia "plebe insana e rude"
Se referindo ao nosso bom povão,
E chocada e pensativa nunca pude
Entender muito bem esta noção,

Porque ele era bom e compassivo
No trato pessoal com os peões
E com todo e qualquer outro ser vivo,
Excetuados os bandidos e vilões...

Um dia me pediu, e nunca esqueço,
Que fechasse a porta do escritório
Pois recebia um tipo "faço e aconteço"...

Pouco depois saía pálido o peão,
E aquilo que cortou-lhe o palavrório,
Vi, era o medo que cala um coração...

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21/02/2018

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

O Mau Passo (de Alma Welt)

Queria voltar àquela estaçãozinha
Que se foi, agora sei, não mais existe.
Fechou e era a derradeira linha
Que passava por aqui, tu a cumpriste.

Levei-te já saudosa à plataforma,
A despedir-me de ti entre vapores,
Uma névoa de lembranças que se forma
Quando vou abandonar os meus amores...

E tu me acenaste após o abraço,
Sabendo ambas que foram só delírios
Como as que deram, virgens, um mau passo.

E fiquei a acenar-te aliviada,
Porque agora poderia amar sem lírios,
Sem sustos, sem culpa, sem mais nada...

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20/02/2018

O Cais Perdido (de Alma Welt)

Questionar a existência e seu declínio
Foi-me sempre uma coisa recorrente
Desde que me foi dado o raciocínio
E no auge do poder de minha mente...

Perderei minhas memórias tão queridas
Um dia velha e carente de razão?
Eu que me nutro de meus gozos e feridas
Rumarei a uma implacável escuridão?

Quando medito nisso a voz me treme
E eu, a bordo de uma nave decidida
Me dou conta de que me falta o leme...

E gargalho qual marujo enlouquecido
Que ainda lembra da hora da partida
Os acenos, o apito, o cais perdido...

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20/02/2018

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O Importador (de Alma Welt)

Minha vida é bela, eu reconheço,
Não sei a de vocês, se assim também...
Pois para haver beleza é um começo
O prazer em aceitar o que se tem.

Minha avó assim dizia e me ensinou
Às coisas boas sempre reverenciar
Excetuadas às que o Demo importou
Mas mudou a marca, hora e lugar...

Eu ria e ria com as lições de minha avó
E jamais as haveria de esquecer
Pois quando se ri cria-se um nó.

Sim, a vida é bela, eis seu sentido,
Malgrado o Importador a perverter
Falsificando tudo, o intrometido...

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19/02/2018

domingo, 18 de fevereiro de 2018

A Mariposa (II) ( de Alma Welt)

O medo é nosso triste companheiro
Que nos acompanha a vida inteira,
Uma síndrome perpétua de atoleiro
Para alguns, uma espécie de coleira.

Para mim foi felizmente um aguilhão
Que me impeliu além das minhas forças,
Frágil guria mas de forte coração,
E alguém por certo por quem torças

Porque ser poeta é um desafio,
O mais antigo chamado das estradas
A um coração afeito ao meio fio

Ou mariposa em noites desastradas
(senão borboleta em plenitude),
Que, alada, fiz de mim mais do que pude...

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18/02/2018

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Eu, heterônimo (de Alma Welt)

Confesso, sonhei grande, tola eu era
Fui em busca do meu sonho de guria,
Tão ingênua a perseguir uma quimera
Ser poeta e viver da minha poesia...

Mais tarde descobri que ser poeta
É o mais miserável dos amores,
E a triste razão de tão seleta
É que a fome é o premio dos melhores.

E claro, existem os poetas diplomatas
Que, pobres funcionários de escritório,
Não passam de modestos burocratas.

Mas na dimensão poética, só, viver
Para mim se tornou obrigatório,
Um caminho bem mais digno do ser...

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15/02/2018

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-feira de cinzas (de Alma Welt)

Meu irmão Rodo chegava de ressaca
Na quarta e a custo se esgueirava
Subindo para o sótão quase em maca,
Ajudado por mim que o amparava...

E ele gemia como o arrependido faz,
Maldizendo um amor de Colombina,
Decepção que o amor fútil sempre traz
Pois amor com saideira não combina.

E eu rindo, condoída, perguntava:
Era bela aquela tua bailarina?
E na caixinha de música rodava?

Ele então chorava mais e mais,
Dizendo: Alma, ela era uma menina,
Não parecia ser cruel e foi capaz...

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14/02/2018

Soneto da Quarta-feira (de Alma Welt)

Apreciava sobretudo a quarta-feira
De cinzas e com a súbita tristeza
De quem cai na real ou está na beira,
Como quem para dançar subiu na mesa...

Meu avô boche me dizia: "Ai de ti,
Se colocares a saia na cabeça,
Tendo ingerido champanha ou Parati,
Não esperes que depois te reconheça."

Mas pobre de mim, e quem me dera!
Eu era sóbria, recatada até demais,
E o Carnaval, uma espécie de quimera.

Minha avó dava risinhos de ironia
Pois sabia do meu navio no cais,
Em cuja mesa eu sonhava e escrevia...

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14/02/2018

Velho Tema (de Alma Welt)

"Procurar-se um amor não tem sentido
Pois que amor deve estar dentro de ti.
Deus dá a cada um o que lhe é devido
Se te faltar amor por dentro, não és daqui."

Assim dizia minha avó podando rosas
Com sua vetusta figura de espantar,
Tão curvada e com suas mãos nodosas
Com uma pequena tesoura de podar.

E eu confiava em minha avó em tudo,
Já que ela tinha amado a vida inteira
Aquele velho difícil e carrancudo.

Não procurou o amor e o amor subiu
E o derramou de si sobre a roseira
Toda de espinhos com que Amor surgiu...

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14/02/2018

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A cabrinha valente (de Alma Welt)

Meu pai tinha pistola e espingarda,
Esta, pequena, na parede fixada,
E um dia garantiu-me que a mantinha
Para que, eu quando moça, fosse minha.


Isto me chocava, não entendia
Por qual razão uma arma empunharia;
Impensável um enredo àquela altura
Que comportasse na Alma tal loucura.

Mas uma noite li "Lettres de mon Moulin"
De um Alphonse Daudet, francês querido,
E com a cabrinha resisti até a manhã...*

Mas se venceram os lobos na novela,
Com chifrinhos tendo tanto combatido,
Eu teria uma arma como ela...

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13/02/208

Nota
*E com a cabrinha resisti até a manhã - Alma se refere ao conto "La chèvre de monsieur Seguin", tocante conto das "Lettres de mon Moulin", um clássico de Alphonse de Daudet (1840 — 1897).

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A cruz e as asas (de Alma Welt)

"No Vale de Lágrimas que é a vida
Cada um tem que levar sua própria cruz..."
Assim dizia minha mãe, e eu dividida
Hesitava entre a depressão e a luz.

Meu pai adepto da luzes do saber,
Dizia à minha Mãe: "Para com isso!"
Não ensines a guria a só sofrer,
Sentir tal peso nesse ato submisso..."

"Não lhe acenes com essa abantesma.
Vê, a cruz era objeto de tortura
E nada tem a ver com a Vida mesma."

"Os versos tornarão sua vida leve,
Não vês que a sua alma nasceu pura?
Grandes asas lhe darão na vida breve."

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12/02/2018

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Báh! Amores meus ( de Alma Welt)

Báh! Amores meus, peço perdão
Por tanta independência que mantive
E por pouco tolerar guri mandão
E ser esta poeta que ainda vive.

Gostar de aninhar-me em largo peito
Iludiu alguns de vós por um momento
Quando isso era apenas o meu jeito
De ser mansa e feliz trinta por cento.

Olho agora pra trás, como uma tela,
E minha face desconheço e meu andar
Embora reconheça que era bela...

Então deixem-me sozinha com os meu versos
Mas não me digam que já não sei amar:
Sem amor até os poemas são perversos...

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11/02/2018