terça-feira, 14 de junho de 2016

Divagando (Alma Welt)


Tenho uma certo pudor de ser assim
Tão dependente de me pôr em verso
Para me sentir completa em mim
Pois bem sei que sem poesia me disperso.

Talvez me falte a verdadeira integridade,
"Ai de mim!" Como diziam os antigos
No meio da tragédia sem idade
Com ou sem a existência de inimigos.

Viver é ter a espada sobre a fronte
E coragem é rir, mas conscientes,
Que com riso de bobo também conte.

A consciência faz mulher e homem
Não cuspir naquele prato em que comem,
Derradeira lucidez de nossas mentes...

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12/06/2016

A boa mão (de Alma Welt)




"Alma, tens boa mão para o soneto,"
(dizia o bom meu pai, churrasqueando)
"Assim como a Matilde no cloreto
De sódio, nossa janta cozinhando."

E ria, o arguto pai, com intenção
De assim talvez "baixar a minha bola"
Sem do orgulho precisar fazer menção
E mostrar que não estava na minha cola.

Mas um dia, sobre sua escrivaninha
Vi um álbum grosso, assim, jogado,
E abri pra ver alguma foto minha...

E era uma recolha dos meus versos
Em que reconheci o meu legado,
E meus sais ali estavam, não dispersos...

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12/06/2016

Mais uma prece (de Alma Welt)



Mais uma prece (de Alma Welt)

Senhor Deus, livrai-me do meu ódio
Que o dos outros eu mesma me livrei.
Sabeis que nunca quis subir num pódio
Apenas porque ao chão me acomodei.

Quero colher flores, quem não quer,
Quando se é plena, bela ou só mulher?
Versejar e passear pela coxilha
Como se o mundo fosse bela ilha...

Que o mundo não é bom, eu sempre soube,
Mas meus desejos cercam-me de muros
Como falsa fortaleza que me coube.

Então o meu egoismo me envergonha
Pois minhas defesas apresentam muitos furos:
As mágoas que confio à minha fronha...
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12/06/2016

sábado, 11 de junho de 2016

O Labirinto (de Alma Welt)



O Labirinto (de Alma Welt)

Em sonetos cantarei tudo o que sinto
Até o extremo fim desta jornada
Pois sem eles perco o fio do labirinto
E perdida de mim mesma não sou nada.

No centro o Minotauro espera em breve,
Eu temerosa, ele ardente de luxúria,
E sou eu mesma em minha face espúria
Que devo vencer ou que me leve.

Tal é a saga humana do poeta
Que me coube apesar de ser mulher,
Que filhos não foram minha meta.

Minha obscura saga é só por dentro
Sou a que tudo perde e tudo quer
E morrerei de mim bem no meu centro...

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11/06/2016

Oração (de Alma Welt)



Oração (de Alma Welt)

Perdoai-me Senhor, a incoerência
Que tanto à hipocrisia se assemelha.
Perdoai-me o meu ferrão de abelha,
Pelo mel, somente, da inocência...

Ao ver a hecatombe da manada,
E nas minúsculas gaiolas de arame
O sacrifício das aves, tão infame,
Eu prometi abstinência, e não fiz nada.

A lógica, Senhor, é um bom começo,
Para evitar o mal já conhecido
E afastar o mal que não conheço.

Mas, Senhor da Lucidez, dai-me bondade
Pois coerência é só tempo perdido
Se a alma não quiser a santidade...


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11/06/2016

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O Sonho (de Alma Welt)

                                  A fuga de Caim e sua família para o Leste do Éden - Fernand Cormon ( 1845-1924)

O Sonho (de Alma Welt)

Sonhei quando guria ser poeta,
A coisa mais difícil desde então,
Ambição desmedida como meta,
Cujo rol, cabe nos dedos desta mão,

Contém os nomes daqueles mais descrentes
Que nem sabemos na verdade onde estão:
Se no limbo infantil dos inocentes
Ou na terra do exílio, como Adão.

A leste do Éden ainda habitamos
E ostentamos a tal marca de Caim
Sem que nós, afinal, nada devamos,

Mas por simples simpatia de desvio
Ou pelo nosso protesto contra o Fim
Pois o curso eterno é nosso rio...

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10/06/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Profissão de Fé (de Alma Welt)


Escolhi o antigo culto da beleza,
Mas nada deverei à fútil moda
Que assenta no vazio a realeza
E no falso perene se acomoda.

Creio num eterno inconfundível
Que habita na alma e é comum
A todo ser divino e perecível,
Já que nesse nível somos "um".

Um pequeno verso ou uma linha,
Mistério gráfico ou comezinha imagem
Que na origem já era tua e minha

E se perde na universal memória
Onde nascem os Mitos e a contagem
Do Tempo que embala a nossa história...

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03/06/2016

terça-feira, 31 de maio de 2016

Após a Tempestade (de Alma Welt)


Tivemos águas bem mais turbulentas,
Agora é só um silente deslizar...
Levantamos nossas almas violentas,
Agora é nossa hora de acalmar.

Vai o nosso barco lentamente
E podemos por fim calafetar,
Reparar as velas no poente
E com um grog de rum talvez cantar.

Bah! Como é bem vinda a calmaria
Em que então nos miramos na água calma
Já que espelho mais antigo não havia...

E voltamos ao melhor de nossa paz,
Afinal tudo se passa em nossa alma,
Tudo, dentro ou fora, ela é que faz.


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31/05/2016

domingo, 29 de maio de 2016

O desafio (de Alma Welt)


Pobres de nós, humanos seres!
A vida nos traz doença e morte,
O desenlace é ruptura ou corte,
Não adianta questionar os seus poderes.

Vivemos só por ironia, obra e graça
De um poder maior desconhecido
Que velho como o mundo faz pirraça
E ainda quer o homem agradecido.

Tudo é insensato nesta ilha
Onde viemos dar com os costados,
Quando náufragos perdemos nossa trilha.

Só nos resta do Montecchio a rebeldia *
De erguer a voz, punhos fechados
Então desafiar a estrela guia...

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29/05/2016

Nota
* A rebeldia de Montecchio - Romeo Montecchio quando pensa que Julieta está morta, ergue o punho para o céu e grita: "So I defy you, stars!"

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Velhos amores (de Alma Welt)



Já cultivei demais velhos amores
Que se desgastaram com o tempo
A custa de remendos e rancores
E erros, desculpas, contratempo.

Não posso concertar um verso só
Dos poemas que com eles redigi,
O melhor das rimas falsas e do pó
Que a vida me legou, já percebi...


Entretanto os tenho ainda em mim,
Que se tornaram em gesto e sangue
E portanto em verso e lírica por fim.

Raízes, funda lama e morno porre,
A vida é rica e vária como um mangue,
Já posso esquecê-los, nada morre.

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26/05/2016

terça-feira, 24 de maio de 2016

O retorno (de Alma Welt)



Manhã orvalhada (Alma ) - óleo / tela de Guilherme de Faria, 2002.

O retorno (de Alma Welt)

Não fixei da desvairada juventude
Mais do que as ânsias da paixão,
Cheia de tolice e incompletude
Regidas por desejos e ambição.

Que castelos loucos fiz no ar,
Sem necessariamente ser romântica
Mas sim da veleidade de voar
Nas asas dos truques de semântica...

Para poder voltar aos meus inícios
Então abandonei os artifícios
E esqueci os "ismos" da cultura:

E era uma simples guria da coxilha,
Da mãe que me cobrava ser só filha
A colher flores para a sua sepultura...

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24/05/2016

sábado, 21 de maio de 2016

Dias chuvosos (de Alma Welt)


Dias tristes, chuvosos no meu pampa
Me faziam chorar de auto-piedade
A imaginar-me já em minha campa
E numa solidão de eternidade...

Mas um piano perto sempre havia
Tocado pelos dedos do meu pai
Ou então de meu irmão por ironia
Fingindo uns suspiros, tipo "ai!"...

E então eu ria e o abraçava
E na tristeza ou dor já não me via
Pois o seu cinismo me encantava.

E logo era feliz sem mais demoras
Na volúpia de sentir o que eu sentia
Entre a sombra e a luz daquelas horas...
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21/05/2016





Sem remorsos (de Alma Welt)



Remorsos, talvez não, mas muita pena
Tenho agora do excesso de altivez
Com que aparente andei, falsa serena
Na tola juventude em minha vez...

Quanto medo eu tinha, na verdade!
Frágil em minha cândida soberba
Mas sem culpa de ser bela à saciedade
O que tornava a vida tão acerba...

Não tirarei portanto uma só linha
De tudo aquilo que sem merecer vivi
Pois blasfêmia é renegar o que me vinha.

Não cuspirei no lindo prato que me deram
Com que a vida me serviu e bem comi
E em que provavelmente me comeram...


21/05/2016

Louca juventude (de Alma Welt)


Juventude louca quão depressa passas
Sem que nos demos conta ou importância
Como um mero novilho que tu laças
Ou boleias por esporte aqui na estância...

O quê não daria eu para deter-te
Agora que te vejo no horizonte
A dourar o passado, e converter-te
Em novas esperanças com que conte.

Velha como o mundo assim me sinto,
Sentada a embalar-me na varanda
A tomar o chimarrão meu absinto...

No entanto meus cabelos, sei, flamejam
Perfumados a jasmim ou a lavanda
Que beijar os colibris ainda almejam...


21/05/2016

quarta-feira, 18 de maio de 2016

A sibila líbica (de Alma Welt)



            A Sibila Líbica - de Michelangelo (Capela Sistina)

A sibila líbica (de Alma Welt)


*Rafisa, a minha líbica sibila
Cigana, respondendo ao meu anseio
Sobre tudo em que meu saber vacila
Me disse pondo a mão sobre o meu seio:

Alma, és o universo feminino
Com tudo o que nele está oculto
E teus versos de desvelo sibilino,
Objeto serão de novo culto.

As coisas que se escondem nas caladas
Das mentes mais brilhantes contra o vulgo,
Haverão de ser um dia reveladas.

E nesse dia, teu nome se erguerá
Como um flor nascida no refugo
De um século de horror e Deus-dará...

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18/05/2016

Notas
* Rafisa- este é o nome da cigana profetisa que se tornou amiga da Alma Welt quando sua tribo acampou pela primeira vez nas terras da família Welt (estância Santa Gertrudes) no pampa riograndense. O artista plástico e poeta Guilherme de Faria a retratou no seu mais famoso cordel "Romance da Vidência" Vide www.guilhermedefariacordel.blogspot.com


A sibila líbia ou sibila líbica era a sacerdotisa profética que presidia o oráculo de Zeus Amon (Zeus representado com os chifres de Amon) no oásis de Siva no deserto da Líbia.

A palavra «sibila» procede, através do latim, do grego σίβυλλα sibylla, ‘profetisa’. Havia muitas sibilas no mundo antigo, mas a sibila líbica predisse a «chegada do dia em que tudo o que está oculto será revelado».

A Sibila de Cumas (O pedido) (de Alma Welt)

                                         A sibila de Cumas - Michelangelo (Capela Sistina)


A Sibila de Cumas (O pedido) (de Alma Welt)

Eu me aproximei do umbu-pampeiro
E logo na primeira e final prece
Pedi só juventude e com dinheiro
E que seja eterno e nunca cesse.

Mas não implorei a mocidade pura
Para eu não cair numa armadilha
Como a cumana e sibilante criatura
Pr'a quem a juventude era uma ilha.

Pois como a eternidade sem frescor,
Sem a sabedoria é uma "roubada",
(perdoai-me a gíria velha e o humor),

E então, exigiu-me certa lábia,
Coisa nunca vista ou imaginada
Pedi ao Pampa a juventude sábia...


18/05/2016


Nota
A Sibila de Cumas na Antiguidade era considerada como a mais importante das dez sibilas conhecidas. Era também conhecida como a Deífoba - palavra que significa deidade, ou que tem a forma de deusa. Apolo era o deus que inspirava as profecias das sibilas. À Sibila de Cumas consta que havia prometido realizar um grande desejo. A Sibila então colocou um punhado de areia em sua mão e pediu-lhe para viver tantos anos quantos fossem as partículas de terra que tinha ali. Mas esqueceu-se de pedir, também, a eterna juventude, assim foi que com os anos tornou-se tão consumida pela idade que teve de ser encerrada no templo de Apolo em Cumas. A lenda diz que viveu nove vidas humanas de 110 anos cada. Encerrada numa jaula no templo, encarquilhada como uma bruxa de mil anos, só conseguia murmurar: "Quero morrer".

terça-feira, 17 de maio de 2016

A humana barca (de Alma Welt)

    Nau grega - aquarela de Guilherme de Faria, anos 80

A humana barca (de Alma Welt)

A humana barca roda e dança
E como nós gritamos, remadores,
Enquanto a barca louca não avança
Mas furada afunda entre clamores!

Toda nau é heroica e insensata
E sua vocação é o naufrágio
Pois ao deus dos mares desacata
E em terra se prolonga como um ágio.

Mas se estamos fadados ao desastre
Pior restar na praia preguiçosa
Se a calmaria o ímpeto nos castre...

Não temos pois escolha: alçar velas,
Negras velas na partida temerosa
E também no retorno, a salvo, delas...*

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17/05/ 2016

Nota
*Negras na partida temerosa
E também no retorno, a salvo, delas - alusão Ao episódio da saga de Teseu, em que seu pai, o rei Egeu, proveu a nau de seu filho de velas negras para partir para Creta afim de libertar os jovens de Atenas, que todos os anos eram enviados ao Labirinto do rei Minos para alimentar o Minotauro, como tributo da guerra vencida por Creta sobre os atenienses. Como recomendação de seu pai, Teseu se saísse vencedor deveria trocar as velas por brancas. Teseu se esqueceu disso no retorno e não as trocou. Seu pai que todos os dias ficava no alto de um penhasco olhando o horizonte aguardando ansioso a o retorno de seu filho, quando avistou velas negras, julgou seu filho derrotado e morto e se atirou a mar, que passou a se chamar Mar Egeu, em sua honra..





quarta-feira, 4 de maio de 2016

A tapera do fim do mundo (de Alma Welt)

                     A tapera do fim do mundo  - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2015, 30x40cm

Fui até o fim tristonho do meu mundo
Lá mesmo onde fica uma tapera
Em que me vejo só e mais a fundo
E onde meu eu real a mim me espera.

Fica lá onde o arroio corre, do Chuí
O extremo do extremo do meu pampa
Onde o frio minuano dobra ali
E volta porque encontra sua campa...

Ó solidão extrema, insustentável,
Que a nenhum vivente coube igual
Que se mantivesse ainda amável!...

E eu acordo ofegante e esbaforida
Procurando em torno meu quintal
Onde rica minha alma tem guarida...


04/05/2016

Esperanças (de Alma Welt)



Esperanças (de Alma Welt)

Guardei minhas secretas esperanças
De maneira tão discreta, e sutilmente,
Que não fossem roubadas de minha mente
Pelos jogos da ambição e suas ânsias.

Nada quis de material, um alfinete,
Um iate pra singrar por entre as ondas,
Um reino, um corcel e seu ginete,
Nem mergulhos imortais em novas sondas.

Quê esperanças foram essas? Me perguntas.
E eu só posso dizer quase corada
Que sonhei com as pessoas todas juntas

Sem o ódio e o rancor de tantos anos,
Uma bandeira nova em novos panos,
Numa pátria feliz e restaurada...


04/05/2016

terça-feira, 3 de maio de 2016

Ontem hoje amanhã (de Alma Welt)

                                    Litografia de autoria de Guilherme de Faria

Ontem hoje amanhã (de Alma Welt)

Viver o ontem, o hoje e o amanhã
Tudo junto num mesmo aqui-agora
Não é bravata ou mera pose vã,
Mas sim prerrogativa da memória.

Como é bom sentar nesta varanda
E olhar ao longe, dourando no horizonte,
Pr’onde a grande manada se debanda
Das nuvens, nosso derradeiro front

A mente sonhadora conta as rezes
De um tesouro de lembranças, inefável,
De que a alma desfruta tantas vezes...

E oscilo na cadeira de balanço
Onde fruo o meu saldo memorável
Descontados as mágoas, dor e ranço...


03/05/2016

sábado, 4 de julho de 2015

Ó meus amores (de Alma Welt)


Ó meus amores, quanto vos cantei
Em tanta canção apaixonada!
Mais do que isso, eu peço, não querei,
Que já não tenho forças nem mais nada...

Estou entregue, prostrada, bah! Tomai-me!
Fazei de mim o último banquete!
Invadí minha carne, ó, abusai-me
Fazei das minhas dores ramalhete!

Desmembrai-me, cortai-me em mil pedaços,
E que eu já não possa me lembrar
Da dor de ser uma e de ter laços

Que me prendem à Terra como campa
Enquanto Ananke meu fuso faz gira
r
De renascer e amar neste meu Pampa!

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Quisera (de Alma Welt)


Quisera eu ter a fé de boa cristã,
Também de um índio manso, bom pagão
Antes da cruz do evangelho do canhão,
Ou talvez de um fanático do Islã...

Mas sou desconfiada, tenho dúvidas
Que me vieram, acredito, pra ficar;
Permaneço também por razões lúdicas,
De gostar tanto de mim e a vida amar.

Quê digo? Na verdade tenho medo
Da Morte, essa total desconhecida
Com esse sorriso branco de arremedo.

E encolho-me à sombra, de covarde,
Como se fosse ela a própria vida,
Já que de tanto sol meu olho arde...

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Relembrando os lírios (de Alma Welt)

É comum talvez sentir medo do mundo,
E por isso lutamos dia a dia
Num desespero surdo mas profundo
Esquecendo o que o Mestre nos dizia:

"Do campo olhai os lírios (e as aves)"
Sem temer fome, nudez e desemprego,
Contornando da vidinha seus entraves
E evitando o vão desassossego

Mas também os livros de auto-ajuda
Que não guardam dos mestres o carisma
Que já temos em Cristo, Gandhi e Buda.

Todavia não é preciso ir à Igreja
Que foi dar ao vão protesto e ao sisma.
Valem bem mais a prosa e a cerveja!...

domingo, 31 de maio de 2015

Vida (de Alma Welt)

A vida é uma comédia, disse alguém,
Esquecendo Calderón que disse "é sonho".
Mas ao pensá-la, essa terra de ninguém,
Uma solução melhor talvez, proponho:

Vamos vivê-la primeiro bem quietinhos
Qual se fôramos, digamos, camponeses
Que realizam em silêncio seus caminhos
Somente atentos aos dias e aos meses,

Das estações no embalo, rotineiros,
Ouvindo a chuva bater forte no chão,
Peregrinos sobre a terra ou pioneiros...

Talvez cheguemos de novo ao sentimento
Do mundo, experimentado por Adão
Que abriu mão d'um Paraíso sem lamento...

sábado, 30 de maio de 2015

Meu perfil para os novatos (de Alma Welt)

Quero morrer se o dia é frio e cinzento;
Voar quando faz sol, cantar, dançar!
Se não volúvel "como pluma ao vento",
Um pouco instável, moderna bipolar.


Melancolia... o termo até cansou,
Mas se acaso a gag é genial
Me pega fácil, e romântica que sou,
Gargalho como hiena em meu quintal.

Preciso é paz. O coração inquieto
Desmentindo a minha vã sabedoria
Me desmoraliza por completo.

E se tens de um bom fracasso mal conceito
Não te acerques de mim e minha poesia,
Que pro sucesso meu gênio não foi feito...

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Meu sonho (de Alma Welt)

Eu construí meu barco muito belo,
Verso a verso sem esquecer a rima
Com cunhas, cavilhas e martelo
E pus pra navegar minha obra-prima.


Desfraldei as velas contra o vento
Para singrar o mundo à contramão
Por pura teimosia, embora lento,
Pela rota onde os solitários vão.

Tornei-me de mim mesma uma pirata,
Com minha cabeça posta a prêmio
Sem lei, sem laços e sem pátria...

Então acordei e mesma eu era,
Ainda acreditando no meu gênio
Como quem feliz se desespera...

Isto e aquilo (de Alma Welt)



Tenho sérios problemas com a vida,
Sempre vendo nela algum defeito.
Por ter esta minha alma dividida
Sou dupla ou ambígua, não tem jeito.

Quero isto e aquilo, seu oposto.
Adoro o belo mas não rejeito o feio;
Na cozinha ponho sempre sal a gosto,
Não peçam que cozinhe enquanto leio.

Amo a luz, me conhecem, sabem disso
Mas tenho pela noite este fascínio,
Seu mistério, a fuga e o sumiço,

Mas sobretudo as estrelas tão modestas,
Tão maiores que o sol em seu domínio,
E a entrar no meu barraco pelas frestas...

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Meu encontro com Mefisto (de Alma Welt)

                                              Mefistófeles - litografia de Guilherme de Faria 

Meu encontro com Mefisto (de Alma Welt)

Sim, Mefisto na coxilha veio a mim
Que, de entrada, muito me assustou
Com sua figura, falso nobre, ou delfim
De um reino que há muito se acabou.

"Alma, bah! venho seguindo os passos teus
Desde quando, somente uma guria,
Vivias com a candura dos ateus
Ou daquele que em deuses não se fia.

Teu Vati* a ti o batismo recusou
Por negar a existência do pecado,
O original, o que a mim me encantou.

E agora venho pois me oferecer
Para ser teu conselheiro dedicado,
Que sendo pura nada mais tens a temer..."

__________________________
Nota
* Vati - "papai", em alemão ( pr, Fáti, diminutivo de Vater ( diminutivo de Vater ( pr. Fáter), pai)

Dos Segredos (de Alma Welt)

                                                           Dos segredos - litografia de Guilherme de Faria,1976

Dos Segredos (de Alma Welt)

Tenho bons segredos a esconder
De mim mesma para os dias de fastio
Quando mais nada puder me acontecer
E o espelho refletir o meu vazio.

Mas que tolice! Eu sei, eles se vão,
Perdem a suas registradas validades,
Vencidos, estragados como pão
Já mofado na despensa das vaidades...

É que tenho certo medo da penúria,
De perder o fio da minha memória,
Me perder no labirinto da lamúria

De estar no exílio do meu Éden
Perdida dos meus tempos de glória,
Minha infância que só os risos medem...

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Eu e o Espelho (de Alma Welt)

                                                             Ao espelho - óleo s/ tela de Guilherme de Faria

Eu e o Espelho (de Alma Welt)

Capcioso o espelho me convida
A penetrar no seu mundo de ilusão,
Com lisonjas e carinhos de fingida
Pois que mesmo incorporou minha feição.


E tomada de vertigem cambaleio
Na beirada desse abismo que sou eu
Com u'a mão na nuca outra no seio
Acreditando no que sempre prometeu:

"Serás bela para sempre, te garanto,
Não terás melhor amante neste mundo,
Narciso está de prova e me ama tanto

Que lhe ofereci meu maior preito,
Uma flor que é seu nome mais profundo,
Como a ti reservo uma do teu jeito..."

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Anti oração (de Alma Welt)

Senhor Deus onipotente das esferas,
Que um universo rolas sem sentido,
Perdoa a quem tanto desesperas
E essa falta de fé com que mal lido.

Me criaste quase à tua perfeição
Mas por esse "quase" abandonaste
Um pouco antes do tempo o coração
Que carente resta como um traste.

Como posso crer em ti, Senhor dos astros
Quando na vizinhança um guri chora
Envolto em dores, feridas e emplastros?

Se não pode um Poder vir em socorro
Pelos próprios desígnios que elabora,
Então, cara ou coroa, vivo ou morro.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

A guarda-costas (de Alma Welt)

                                        A pinguela- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2015

A guarda-costas (de Alma Welt)

Audaz atravessando uma pinguela
Fui criança destemida num jardim
Seguida pelo olhar de uma donzela
Que, bela, havia sempre atrás de mim.


Os anos se passaram, não a vi mais,
E cheguei a pensar num serafim
Que tardei a perceber que sou capaz
De revê-la quando chegue o nosso fim.

Pois que ela sou eu mesma num futuro
Avançado de minha alma que me guarda
E me protege as costas como um muro.

Dupla Alma, enfim, eu sempre a soube
Pois preciso ser vanguarda e retaguarda
Para ser a poetisa que me coube...

Lautrec (de Alma Welt)

                           Toulouse- Lautrec- litografia de Guilherme de Faria

Lautrec (de Alma Welt)

Inusitado anão de pince-nez,
Gravata, cartola ou chapéu coco,
Eras esse cavalheiro que se vê
Na mesa deixando sempre o troco.

Embriagado levavas dançarinas
Para o teu ateliê quadras adiante,
Mas todas em papel e mais divinas
Pois de todas eras meio amante.

“Des cocotte, putain, demi-mondaine”,
Como sob teu crayon transfiguravas
As deixando ainda “ plus humain” !

Artista genial, anão gigante
Que mais do que o dobro teu deixavas
A cada alegre noitada sufocante...

Eis o homem (de Alma Welt)

Empilhador de pedras e de orgulho,
Eis o homem, esse ser alucinado,
Amontoando maravilhas e entulho
Enquanto, falso humilde, prosternado.

Báh! Como se ajoelha ante os deuses!
Ou mais medroso, concentrado num Deus só,
A quem hospeda sempre ao fim dos meses
E que em um piscar de olhos vira pó:

O Dinheiro, tirano sobre a Terra,
Mais cruel que o último Anticristo
Cuja torpe natureza mais aberra

Quando, falso dadivoso, legitima
Sua outra faceta, a de bem visto,
Como a dúbia festa sua de vindima...

Mais do Amor (de Alma Welt)

A coisa mais bela desta vida,
Além de flores, aves, natureza,
O pôr-do-sol, a prece após a lida,
É a candura do amor e sua certeza

De ser, de estar e de se dar
Como se o outro sempre merecesse.
Que digo? Isso nem chega a colocar,
Como se Amor de si se esquecesse.

Então temos no que crer, acreditar.
Por quê precisaremos de outro deus?
Amor é soberano e um avatar

E nele então podemos confiar
Que não seja raivoso como Zeus,
E seus raios são só de irradiar..

Tão bonitos... (de Alma Welt)


Tivemos nossos tempos de ambição
E olhávamos pra frente co'arrogância
Ou tão somente cheios da ilusão
De mudar o mundo da ganância...

Tão cheios de ideal e tão bonitos
Quanto tolos que fomos, na verdade,
Correndo pelas ruas nos conflitos
Levando cacetadas à vontade...

Ó louca juventude, quanto enfado
De aquilo tudo ter caído no vazio
Do discurso reles de um safado,

Ou pior, na infame incompetência
Que jogou a pátria ao meio-fio
De onde gritamos nossa urgência...

.
27/05/2016
























segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A Anti-Ronda (de Alma Welt)


Para encantar o meu amor me rendo
Mas não serei sua eminência parda.
Não tentarei domá-lo (me contendo),
muito menos ao seu falo montar guarda.

Não esperes de mim um passo atrás
Como aquelas que vão como uma sombra.
Estarei do teu lado e me amarás
Pois a minha luz é que te assombra...

Não cercarei o espaço do guerreiro
como uma ninfa produzindo ecos,
tornada pedra ou vão despenhadeiro.

Não serei chamada de pentelho,
Não rondarei atrás pelos botecos,
Não lançarei Narciso em seu espelho...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Alegoria (de Alma Welt)


Alegoria Alma Welt- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014, 100x150cm
 

Alegoria (de Alma Welt)
(sobre um quadro do Guilherme de Faria)

Estava lá meu anjo e me seguia,
Enquanto eu me levava pela mão,

A mim mesma quando só era guria,
Meu presente e meu passado em comunhão.

E eu apontava o fumo de um navio
Que ao longe se perdia no horizonte
Como queimasse o destino meu pavio
Enquanto jaz a minha barca sobre o monte

Que era só um barranco frente à casa
E derradeira morada de meu barco
Que coberto pelas ervas já não vaza...

Atrás meu cão corria e dava salto
Enquanto um corvo descia feito um arco
Malgrado o gesto do meu anjo para o alto...

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Resumo da ópera (de Alma Welt)


Quem sou eu pra questionar o absurdo
Desta vida em que fomos atirados
Com alguma raiva e um baque surdo
Após gritos lancinantes e irados?

Começamos meio mal, sim, convenhamos:
Báh! Expulsos do casulo mas sem asas,
Como as pequenas larvas nos portamos
No efêmero aconchego destas casas...

Depois, risos nervosos, soluçantes,
A febre dos segredos e conflitos
Atrás de portas por onde vazam gritos.

De repente, quer esposas ou amantes
Revivemos velhas sagas e os mitos,
E a vida faz sentido por instantes...

domingo, 17 de agosto de 2014

O Grande Circo (de Alma Welt)



                                                              O circo - Portinari

 O Grande Circo (de Alma Welt)

O grandioso Circo a que pertenço
E planejado por mim quando guria,
Tem da humanidade o rosto imenso,
Quase todas as formas da Poesia.

E não ficará de fora quem não paga:
Passa por baixo, o pobre, desta lona,
E o palhaço, o medo não mais traga
Ao menino mais sensível e à chorona.

Animais permaneçam em suas selvas
E não ouviremos rugidos na cidade,
Deserto de cimento e poucas relvas...

Todos nós equilibristas, saltimbancos,
Trapezistas da fatal eternidade,
Um picadeiro sem redes, nossos campos...

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Alma e o Anjo (de Alma Welt)

 

    Alma e o Anjo - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014, 100x100cm

 Alma e o Anjo (de Alma Welt)

Um anjo apareceu na minha árvore
Com tocha flamejante, desabando
E pondo-me branca como o mármore,
Com o dedo em riste me apontando.

Pasma então desconfiei de sua fé
Pois não o acompanhava um querubim
Mas um duende que estava ali ao pé *
Enquanto o anjo se dirigia a mim:

- “A ti mesma, Alma gentil, não punirei
Por teres devorado o sábio fruto
Que é fatal prerrogativa de meu rei”;

“Não foste a cruel Lilith, nem Eva...
Anima, não alma em estado bruto,
És de toda solidão a mais primeva!” *

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Notas:
* Pois não o acompanhava um querubim
Mas um duende que estava ali ao pé " - O fato do anjo não estar acompanhado de um querubim, mas de um duende, e portar uma tocha, não uma espada, nos remete à idéia do anjo rebelde, Lucifer (que significa portador da Luz), tanto mais que ele se refere ao seu "rei", não a Deus

* "És de toda solidão a mais primeva” - Era de se esperar que o anjo dissesse: "És de toda Criação, a mais primeva!" Mas dizendo "solidão", o anjo (ou a Alma) levanta uma curiosa questão poético-metafísica...
 

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Acalantos (de Alma Welt)

                                               Nau catarineta - lito de Guilherme de Faria

Acalantos (de Alma Welt)

Há poetas que são grandes falastrões...
Digo isso por mim e outros tantos.

É fato que a alguns, mais canastrões,
Faltou-lhes em criança os acalantos

Que sem dúvida são canto essencial,
Diretamente da alma ao coração,
Com um mínimo de apuro formal
Evitando somente a rima em “ão”.

Vêde como tudo está contido
No pavão e no boi da cara preta
Que de cima do telhado foi ouvido

No berço aconchegante a balançar,
Que é a nossa nau catarineta
Que afinal em Portugal vai aportar...



quarta-feira, 23 de julho de 2014

“Forever Young” (de Alma Welt)

Pintura de Georges de La Tour

“Forever Young” (de Alma Welt)

Estamos todos em tela a nos pintar,
Sim, nosso autorretrato convincente,
Querendo ou não nosso rosto fixar
De modo afinal mais consistente...

Não há, pois, meios de falsificarmo-nos,
Que, se inepta, a pintura nos revela
Tão bem ou mal quanto as daqueles monos
A quem damos pincel, tintas e uma tela.

Mas vede como a carne se derrete
Como vela de cera num serão
Que é a vida que tanto só promete

E faz crer que amanhã é novo dia
Na vã vigília do insone coração
Que pintava enquanto a cera derretia...




segunda-feira, 21 de julho de 2014

Filosofia de ateliê (de Alma Welt)


Pro Destino o desejo pouco conta,
A mais louca ambição só o diverte.
Só nossa grande arte lhe é afronta
E nos cobrará logo e solerte:

Uma bala no peito, um avecê
Um enfarte ou envenenamento;
Um avião que cai, não com você 

Mas com toda sua obra, num momento...

Que tola conclusão me coube agora!
É somente a condição humana:
Se viemos também temos de ir embora...

Mas nos resta o prazer da pincelada,
Ou de tudo o que na vida nos irmana,
O resto é silêncio... não é nada...


______________________
Notas
* ...ou envenenamento - Alma parece aludir à morte do nosso grande pintor Portinari, que morreu envenenado pelas tintas...

*Um avião que cai, não com você / Mas com toda sua obra... - Alma parece estar se referindo ao episódio acontecido com parte da obra do grande pintor Manabu Mabe, que voltava de uma retrospectiva e se perdeu num desastre aéreo, em que o pintor pessoalmente não se encontrava a bordo...



 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Não mais miro poentes (de Alma Welt)


Não mais miro os poentes reclinada
Na cadeira de balanço da varanda,
Nem passeio a esmo pela estrada
Onde a memória viva ainda anda;

Não mais na coxilha escrevo versos
A saltar pequenas poças de manhã
Onde nascem os sonetos controversos,
Testemunhos finais de meu afã;

Não mais tenho estes meus cabelos louros
Longos, ruivos ou dourados, nunca soube,
Despertando olhares vivos entre os mouros;

E eis-me triste e velha dama espectral
De vasta e branca cabeleira que me coube
Quando as flores desertaram meu quintal...

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A Fronteira (de Alma Welt)


 No amargo fim chegar sem dissolver-se,
Sem sequer desintegrar-se ou derreter,
Eis pra nós o mais difícil de obter-se,
Já que o fim nosso é só morrer

Que é o ponto final comum a todos,
Que nos chama, nivela e absolve
Pois havemos de voltar aos mesmos lodos,
Que desde sempre a terra nos envolve...

Mas à beira do abismo do universo
Chegar naquele ponto fronteiriço
Onde os astros experimentam seu reverso

E dizer: “Eis-me, estou pronto: bem vivi!
Cansei até... já posso dar sumiço,
Fui sempre o herói de mim e não fugi!”

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Anjo no Balanço (de Alma Welt)

                         Anjo no Balanço - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2014, 100x100cm

Anjo no Balanço (de Alma Welt)

Naquela árvore rubra do meu horto
De que eu nunca ousei comer o fruto
Mas deixo meu balanço em ponto morto
Para os puros devaneios que desfruto,

Vislumbrei numa tarde o anjo branco,
Jovem ruiva ocupada em balançar
Enquanto entoava um acalanto
Como quem a si mesma quer ninar.

“O sonhado só remete ao sonhador”,
Diz do “código dos sonhos” o axioma
Que desmente em nós o expectador...

Então soube: era eu mesma que eu via,
Que dos meus caminhos todos era Roma
Mas que balançava e não escolhia...
 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Calafate (de Alma Welt)


                           Barco na Tempestade - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2001, 20x20cm
 
A Calafate (de Alma Welt)

Guria eu tinha tudo pra dar certo:
Beleza, inteligência e coração;
Tinha caráter e um olhar esperto,
“Tenía angel” e poesia por condão.

Quem diria eu dar com os burros n’água!
Embora ouvisse minha avó Frida dizer
Que “poesia boa é a que tem mágoa”,
Eu não tinha bons motivos pra sofrer...

Báh! A vida sempre dói, é nossa sina,
E o fracasso vigia os nossos passos
Como agourenta ave de rapina...

Mas agora que a maré sobe e inunda,
Sou a calafate que enche espaços,
Enquanto o meu pobre barco afunda...

terça-feira, 3 de junho de 2014

Alma (de Alma Welt)

 
 
                               La Liseuse-  Jean-Jaques Henner - (1829 – 1905) 

Alma (de Alma Welt)

Houve tempo em que eu prezava ir à missa
Com um lenço na cabeça e um breviário.

Na verdade era guria, em Rosário,
E devia ser ingênua, por premissa.

Eis então que o padre interpelou-me
Para, curioso, investigar a minha fé
Por um gritinho fino que escapou-me
Durante um sermão em que fui ré.

Mas logo o bom padre percebeu,
Pousando minha mão em sua palma,
Que o centro era sempre e mesmo eu.

E disse: “Filha, não és nada devota,
Ou estás a venerar tua própria alma,
E isso, por princípio, me derrota”...
 


segunda-feira, 2 de junho de 2014

A Vida e a Morte (de Alma Welt)

                                       Morte e Vida - pintura de Gustav Klint

A Vida e a Morte (de Alma Welt)

Temos tudo que a Vida necessita
Para que a desfrutemos plenamente,
Com cinco ou seis sentidos (como a fita)
E um mistério imensurável pela frente.

As perdas e fracassos fazem parte
Para que as vitórias celebremos;
Nossa morte, da vida a contraparte,
É pra mais valorizar o que vivemos...

Mas quê estou dizendo? Uma maçada!
(para usar um termo antigo e brando)
A Morte é horrenda e desgraçada!

E pior: não faz sentido, ninguém quer
Nem se cogita o como e o quando,
E vivemos qual se Morte não houver...


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Ícaro (de Alma Welt)


                                      A queda de Ícaro - Pieter Bruegel 1558

Ícaro (de Alma Welt)

Grandes ratos roem a vida se o deixamos:
O medo, ciúme, ódio... tão mesquinhos.
São pestes por princípio e acalentamos
No seio qual serpentes nos seus ninhos...

Descartemos a baixeza que nos puxa
Para baixo qual pseudo gravidade
Atua sobre a forma mais gorducha.
Não basta o peso físico da idade?

Mas saltar, voar, abrindo nossas asas,
Prerrogativa final do nosso instinto
Que um dia construiu mais do que casas

Com penas de corujas, cera ou breu,
E falhando despencasse ao mar Egeu,
Quis chegar ao sol, de um labirinto…

terça-feira, 13 de maio de 2014

Nau de mim (de Alma Welt)


                                          Nau - litografia de Guilherme de Faria

 Nau de mim (de Alma Welt)

Vivi como princesa e nem quis sê-lo,
Venerada por ser bela, quê vergonha!...

Num mundo desigual e em desmantelo
Eu tinha meu diário e minha fronha...

Dos meus tempos, cá não foram nada feios,
Não terei jamais direito de queixar-me...
Ri, cantei, dancei, amei, dei os meus seios
Para os lábios daquele a quem quis dar-me.

Quê importa ser tão branca, rubros lábios!
Como vermelhos são estes meus cabelos
Não desmentidos sequer pelos meus pelos!

Aplicada meditei, li e escrevi;
Meus versos me guiaram, astrolábios
De uma nau de mim em que me vi...

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O Eterno Jogo (de Alma Welt)


                                       O castiçal e o jogo de cartas - Georges Braque, 1910


O Eterno Jogo (de Alma Welt)

Hei de saber o sentido disso tudo,
Por quê tantos poemas e delírios,
Por quê tudo é cambiante e eu não mudo
Mas fico em mim fluindo como os rios?

Hei de saber o porquê de ser poeta
Quando em volta nada corrobora
E todos têm em mente outra meta,
A jogar como se nada fosse embora.

Vão-se as horas, minutos e os segundos
E eu só penso em torná-los tão floridos
Como aqueles terrenos mais fecundos...

Mas finalmente cercada de beleza
Que transformei dos lances mais doídos,
Porei as minhas cartas sobre a mesa...

terça-feira, 15 de abril de 2014

A Razão do Soneto (de Alma Welt)

                          O Pampa de Alma Welt - de Guilherme de Faria, 2002

 
A Razão do Soneto (de Alma Welt)

Fiz o que pude embora fosse pouco
Pra deixar algo de belo e também bom
Neste mundo, convenhamos, meio louco,
Sem precisar mudar o timbre e o tom.

Fluidos versos, catorze, e mais a rima,
Doze sílabas por puro e vão capricho;
Uma canção, uma festa, uma vindima,
Onde encontrei meu verdadeiro nicho.

Mas por quê ?- me perguntas- quê diabo
Te fez querer esse esdrúxulo formato
Como se fora a baba do quiabo?

Manter minha rédea curta, isto sim,
Não pra evitar a disparada pelo mato,
Mas porque a terra é plana e não tem fim...

domingo, 13 de abril de 2014

Propósito (de Alma Welt)


                         John Keats ouvindo o rouxinol- de Joseph Severn  1845

Propósito (de Alma Welt)

Que Deus me guarde de toda fealdade,
Sobretudo da que possa haver em mim.
Mas se é da alma a responsabilidade,
Toda maldade, por grotesca, terá fim.

A Verdade e a Beleza andam quites,
De guardá-las trata enquanto podes.
A Beleza é a Verdade disse Keats
Na mais pura e bela de suas odes.*

Cantemos e dancemos entre as flores
Mas não deixemos de o solo nu pisar
Onde brotam as mágoas e as dores.

Se ao carente for capaz de dar beleza
Pelo pão que não me sobra para dar,
Possa ao menos enfeitar nossa pobreza...

______________________________

Nota
* A Beleza é a Verdade disse Keats
Na mais pura e bela de suas odes.* - Alma alude à "Ode a uma Urna Grega", um dos mais famosos poemas de John Keats.
Os dois últimos versos são assim:

 "Beauty is truth, truth beauty,"
that is all Ye know on earth, and all ye need to know.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O espelho e o eco (de Alma Welt)



                                                       Imagem de Parablev

 
O espelho e o eco (de Alma Welt)

O espelho é um amigo lisonjeiro
Mas não devemos nele tanto confiar.
Narciso não o tem só no banheiro
Pois gosta de em si mesmo se banhar.

Como podes confiar nesse chalaça
Que te mostra como flor enfeitiçada
Se tornando amiúde tua cachaça,
E deixar tua ninfa abandonada?

Báh! Quebrei os meus espelhos, não confio,
Tenho medo demais do seu fascínio,
Abismo onde ando sobre um fio...

Antes ouvir meu Eco que me adora
Mas tornou-se pedra e não escrínio
Que ao abrir liberta minha pandora...

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Forçando a rima (de Alma Welt)


Não vim para brigar, não sou de briga,
Sou mulher demais, no bom sentido,
Desaforo me magoa, faço figa,
Resistirá o meu coração partido.

Minha luta é com a palavra no meu verso
Somente pra expressar o que mais sinto
Até quando em mim algo perverso

Insiste em acordar o velho instinto.

Mas se alguém me fizer a vã pergunta:
Para quê então a rima ao versejar?

Digo: é graxa que o eixo velho unta...

E se a alguns posso mesmo melindrar
E rubores levantar ao rubicundo,
Falei de tudo o que é humano neste mundo...

O peixe ensaboado (de Alma Welt)

Aquarela de Guilherme de Faria
 

O peixe ensaboado (de Alma Welt)

Se não cri também não blasfemei
E mantive o meu decoro ante o sagrado
Dom da Vida, que esta tanto amei
Quanto a Morte me tem horrorizado.

Até aqui fui comum, nada de novo;
Certamente não fui muito original
Nesse medo que mal inibe o povo
Mas que atormenta tanto o Ser mental.

Jamais estarei pronta para ir-me,
Mas deixa que eu aqui me desabafe,
E como peixe ensaboado fique firme.


Não renego um só passo do percurso,
"Rien de rien" como cantou Piaf,
Que à vida me agarro como um urso...

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Chorar (de Alma Welt)

O Pranto de Alma Welt - óleo s/ tela de Guilherme de Faria
 
 
Chorar (de Alma Welt)

Se vierem a ti em busca de consolo,
Báh! Não te eximas conquanto seja vão!
Aproveita que te ouvem, embora seja tolo
Dar conselhos em vez de uma canção.

Então canta, dança, começa a palhaçada
Pois mais vale um riso, ao menos um esgar,
Que melhor foras ridículo que nada!
O ser humano é infantil e quer brincar...

Mas, conselhos? Evita o quanto podes,
Pois certamente hão de voltar-se contra ti
No momento que produzam novos “bodes”.

Pensando bem, faça tu o que quiseres
Somente a vida e cada um sabe de si.
Mas chorar? Antiga arma das mulheres...