terça-feira, 16 de agosto de 2016

À Deriva (III) (de Alma Welt) *

Na vida estamos à deriva, navegantes
De barco bêbado furado desde o cais. *
O capitão, que fomos nunca dantes, *
Está perdido, e grita: "Nunca mais!" *

No barco carregamos nosso esquife *
E nos esvaímos de nós mesmos
Ao som de alguém que toca um bife
Para acompanhar os nossos remos.

Tudo está arrevesado por princípio
Nessa nossa aventura desastrada
Onde o puro se confunde com ímpio.

Para o que amou tanto e não amaram,
Não recomendarei surda jornada: *
Na calmaria os ventos me levaram... *

.
16/08/2016

Notas
* À Deriva III - este é o terceiro soneto que Alma escreveu com o tema da deriva.

*Barco bêbado - expressão criada por Arthur Rimbaud no seu célebre poema precursor do surrealismo "Le Bateau Ivre" (O Barco Bêbado),

* ...nunca dantes - evocação do verso dos Lusíadas de Luis Vaz de Camões "...por mares nunca dantes navegados..."

* "Nunca mais!" - exclamação célebre (nevermore!) repetida por um corvo aziago, no célebre poema "The Raven" ( O corvo ) de Edgar Allan Poe.

* No barco carregamos nosso esquife- alusão à cena do livro célebre "Dracula", de Bram Stoker, do transporte dos esquifes (caixões de defunto) do Conde Dracula no navio para a Inglaterra, quando então o barco chega à deriva, com a tripulação toda morta.

* Não recomendarei surda jornada - alusão ao estratagema de Ulisses (Odisseu) que colocou cera nos ouvidos da tripulação toda para que remassem através da calmaria entre os rochedos das sereias, cujo canto uma vez ouvido era fatal: os marinheiros seduzidos se atiravam às águas e eram afogados por elas e levados. A propósito: somente ele, Odisseu, não colocou cera de abelha nos ouvidos, mas ordenou que o amarrassem fortemente ao mastro, porque ele, o grande curioso, queria ouvir o canto das sereias e sobreviver.

*Na calmaria os ventos me levaram- fusão da calmaria perigosa do canto das sereias e paráfrase do "E O Vento Levou", título do romance que celebrizou a personagem Scarlet O'Hara, arquétipo do romantismo sulista americano.

Advertência (de Alma Welt)

O direito a uma paixão nos apaixona
Avassaladoramente quando jovem,
De lembrar os amantes de Verona
Que há muito morreram e nos comovem.

Mas cuidado! Não há nada mais mortal
Que uma paixão adolescente
Quando se é imaturo e desigual
Ou carente e solitário, simplesmente.

Mas hoje já sabemos, a paixão
Da anima é uma mera projeção
Sobre o objeto à tua frente

Ficas pois impedido de enxergá-lo,
Vendo nele algo muito diferente
E pensas: foste feita para amá-lo...

.
15/08/2016

A Cigarra e a Formiga (de Alma Welt)

Não concebo a vida sem poesia
Que é uma boa maneira de a olhar,
Que capta a dor e a alegria
Bem como as coisas que só estão no ar.

Paga-se um alto preço, e é bom notar,
Para um aedo ser no dia a dia
Pois não tens carteira de assinar
Nem dá direito a aposentadoria.

Em compensação não tens que trabalhar
E não diga que poesia é um trabalho,
Não me venhas minha cigarra convocar.

A cigarra é quem as lendas reinventa,
Princesa oculta, não te pegam pro borralho,
A formiga é quem trabalha e te sustenta.

.

15/08/2016

Fé de menos (de Alma Welt)

Tenho pena de não ter a menor fé
Por ser poeta e portanto racional,
Os pés na terra ou aonde nem da pé
Ou bracejando pra estar no pedestal.

A Poesia vem do olhar perplexo,
Às vezes cínico, outras rancoroso
E não se assemelha a um amplexo
Ou um vago carinho vaporoso.

É o lado mais perverso ou infantil
De nossa natureza quase bruta
Pela nossa expulsão, um ato vil

Comandado por um Deus cruel tirano,
Talvez zeloso demais de sua fruta,
Obrigando-nos a nos cobrir de pano...

.
15/08/2016

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Considerações (de Alma Welt)

Confesso desejei fama e amor,
Dinheiro também, uns bons trocados.
Mas caindo na real e sem rancor
Troquei homens pelos versos, mais amados.

A mulher não é a fêmea natural
Do homem, disse alguém com certo humor.
A mulher com a mulher é mais normal
Pois girafa com elefante é um horror.

Sempre me espantei com os casamentos.
Como pode a mulher ser tão servil
Em função de tão breves momentos?

Báh! Os filhos são a chave, não me iludo.
Só por eles nos tornamos um barril...
Esqueçam o que eu disse, eu nego tudo.

.
15/08/2016

O circo da fé (de Alma Welt)

Outrora a maioria tinha crença
Nos poderes dos santos e da Igreja.
De Deus era a vida uma licença
Conquanto ainda hoje bem o seja.

Vivíamos verdadeira teocracia
Construindo grandes catedrais
Onde a fé cotidiana renascia.
Com o vinho, a hóstia e tudo mais.

Confessar? Quem há-de hoje em dia,
Se mais nada é pecado ou simonia
E a blasfêmia virou norma de conduta?

Vou ao circo depois vou ao padeiro,
E só sorvemos socrática cicuta
Na falta de um Cristo verdadeiro...

.
15/08/2016

A coleira (de Alma Welt)

Nascer, viver morrer, dar o sumiço,
E não saber ao menos o sentido,
O patético por trás de tudo isso,
É apelar pra religião ou um partido.

Tomar-se de uma obsessão política,
Quando não simples sexo-amorosa
Perdida pra sempre a veia crítica
E tomar o espinho pela rosa;

Devotar-se ao culto do dinheiro
E trabalhar duro a vida inteira,
Apenas pra cercar teu galinheiro;

Ser cão fiel do teu próprio consumo
Com teu nome gravado na coleira
Caso percas o teu faro e o teu rumo...

.
15/08/2016

A Arte de voltar (de Alma Welt)

"Esse mundo não é para uma dama",
Dizia minha mãe sobre a cidade,
Entre o jardim, a sala e a cama,
Sua bela vida em ociosidade...

A Açoriana em mim temia algo, *
Um quê de rebeldia e inquietação
A despeito do meu porte fidalgo
Que dela herdei sem devida gratidão.

E para lá daquela sebe do jardim,
A poetisa tinha sede de viver
O mundo além dos campos do sem-fim.

Para voltar, senão desiludida
Depois de ilusões tolas perder,
Para saber afinal o que é a vida...

.
14/08/2016

Nota
*Alma nos seus textos e poemas chamava sua mãe de "a Açoriana" com distanciamento, porque as duas não se entendiam bem, e sua mãe temia um destino solitário para a filha poeta...

domingo, 14 de agosto de 2016

Memórias urbanas (de Alma Welt)

Penoso foi para mim viver no mundo
Fora do cenário destes campos
Como se tudo fora um submundo
Sem mais noites de luar e pirilampos.

As cidades eram feias, nada a ver,
Elas não tinham céu, só o que "arranha"
E feria a natureza do meu ser
Estar perto dos maus e sua sanha.

A luxúria grassava, e eu na mira
De homens e mulheres cobiçosos,
Velha malta que a bajular conspira.

E eu, uma prenda em minha querência,
Por carregar os mistérios mais gozosos,
Reduzida a trapos de inocência...

.
14/08/2016

Anjo Rebelde (de Alma Welt)

O dever temos, penso, da alegria
Pois se nos foi dado cor e gesto,
Brilho no olho e rimas pra poesia
E talento ainda que modesto;

Infância e juventude foram dadas
E aquela doce inconsequência
Que nos faz criaturas atiradas
Ao preço perigoso da experiência.

Nossa beleza, também, é obrigação,
Pois nos foram dadas belas formas
Muito embora, reconheça, às vezes não...

Anjo rebelde recalcando um novo sisma,
Calo queixas e me submeto às normas,
Nesse doce enxergar por esse prisma...
.
14/08/2016

Consolo (de Alma Welt 1972-2007)

Eu semeei e colhi muito depressa
Pois não me foi dado maior prazo.
Prosa e versos escrevi, então, à beça,
Como se para tirar fosse, o atraso.

Aos trinta e cinco haveria de findar
Minha breve temporada nesta vida.
Como consolo, poderia já contar
Com de outra boa alma a acolhida.

Mas quando vejo uma rosa por acaso
Volto a pensar novos passeios pra mim:
Uma aurora advirá do meu ocaso...

E no limbo em que minha alma foi jogada,
Vago como outrora em meu jardim
Quando eu era bela e era amada...


.
14/08/2016

Resumo da Alma (de Alma Welt)

Contra a angústia uma constante luta,
Também contra a tristeza volta e meia,
Assim vivi uma vida de disputa
Por minha própria alma, e não alheia.

Mas com a aliança da inocência
E uma boa dose de ironia
Logrei andar nas trilhas da poesia
Evitando as sobras da veemência.

Pobre alma entre forças disputada,
Fiel a um pacto anacrônico de luz
Como ninfa que fosse ou uma fada...

Mas salva pelo humor, um bom recurso
Que a um espírito simples mais seduz,
Pude a vida humana ter em breve curso...

.
13/08/2016

sábado, 13 de agosto de 2016

Ao meu escriba (de Alma Welt)

Meu escriba se levanta quase aflito
De manhã cedo e toma seu café,
Mal espero que termine e já lhe dito
Um bom soneto ou um pensamento até...

Mas ele não se importa, ele é meu fã,
Descobriu-me entre um e outro cordel
Quando os escrivinhava num afã
De enterrar a gravura em tom pastel.

Desde então o atormento, pobre homem,
Com as coisas de sua própria alma
Porque se não o faço as coisas somem.

Agora minhas memórias são as suas,
Se confundem com as minhas, não são duas,
E uma só linha fatal em sua palma...


.
13/08/2016

Universos (de Alma Welt)

Nosso mundo tem bilhões de universos,
Cada um tem no centro nosso umbigo.
Todos termos nossa prosa e nossos versos,
Isso, sim, é o mistério, meu amigo...

A vida das pessoas é uma saga
Quando vista de perto o suficiente,
Embora raramente ensino traga
Ou que nos ajude a ir pra frente.

Não sei se amo ou não a humanidade
Pois no todo gosto dela bem de longe
E quando estou carente e com saudade.

Mas não me levem nem um pouco a sério:
Jamais seria em mim meu próprio monge,
Meu coração incendiou meu monastério...


.
12/08/2016

O voo da perdiz (de Alma Welt)

                                                            (Foto: o vôo baixo da perdiz)

O voo da perdiz (de Alma Welt)

Um desconforto estranho me desola
E me impede afinal de ser feliz.
Sinto que o meu voo sempre estola
Ou é só um voo baixo de perdiz...

Camões se comparou ao perdigão *
Que perdeu a pena e despencou...
Assim também voou meu coração,
Quis levar-me à alta torre e desabou.

Cacos são o material a que recorro,
E aparentemente laboriosos,
Meus sonetos são um mato sem cachorro.

Vivo então no limbo dos fracassos
Recompondo os voos grandiosos,
Coletando dos meus sonhos os pedaços...
.
02/08/2016

Nota
Consta que o grande poeta Luis Vaz de Camões, que perdera um olho na batalha de Ceuta, tendo escrito Os Lusíadas e já famoso foi chamado a viver na corte do rei de Portugal, onde era mal aceito por alguns nobres que por ser caolho e plebeu, puseram lhe o apelido de "Perdigão", porque sabiam que ele jamais ascenderia à nobreza. O poeta se apaixonou por uma nobre dama da corte, e rejeitado por ela, ficou deprimido e melancólico e incapaz de escrever por um tempo. Então aqueles nobres para zombar dele, numa festa na corte o desafiaram em voz alta com um mote para testar seu talento no improviso. O mote era: "Perdigão perdeu a pena" . Camões assimilou a zombaria e no mesmo tom auto-irrisório, imediatamente continuou:

"Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha
Quis voar à alta torre
mas achou-se desasado
e vendo-se depenado
de puro penado morre..."

"Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha..."

As rosas de minha avó (de Alma Welt)

As rosas do jardim da minha avó
Permanecem inesquecíveis para mim,
Assim como seu incrível pão-de-ló
E a sebe com seu cheiro de jasmim.

Nós tomávamos chá entre as roseiras
Numa mesinha caprichada, com toalha
E a louça branca, fio de ouro pelas beiras,
E tudo o mais sequer sem uma falha.

O jasmim faz a vez das madalenas
Numa espécie de memória proustiana
Quando reconstituo aquelas cenas:

Duas guerras na pele, a velha Frida,
Uma vida inteira em luta insana,
E a minha, quase em branco para a vida...

.
13/08/2016

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Um sonho da Alma (de Alma Welt)

                                                           A torre na planície - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2015, 

Um sonho da Alma (de Alma Welt)

Parei diante da torre, estarrecida,
Em torno dela uma névoa encantada,
Mas corvos crocitaram em seguida,
E por um pressentimento fui tomada.

Bati na sua porta com a aldrava
Sentindo que a torre eu mesma era
Que sobre a planície dominava
Coberta de musgos e de hera.

Por quê então aquela torre me cabia,
Como transfiguração de minha mente?
Serei eu velha assim, e não sabia?

Eis que a torre então no sonho se desfaz
E em seu lugar plantei uma semente...
- Me diz, doutora, o sentido, se és capaz....
.
11/08/2016

O Sentido (de Alma Welt)

Procurei no próprio mundo seu sentido
Porém não o encontrei, não estava lá,
Apesar de muitas vezes ter curtido
Pois beleza no absurdo também há.

Andei por ruas, praças, torres e museus,
E fiquei muito encantada de belezas
Que comovem até mesmo alguns ateus,
Principalmente a arquitetura das igrejas.

Sentido, mesmo, na verdade nunca vi
Pois conservo um olhar meio infantil
E minha mente adulta não escolhi...

Então renunciei à coerência
Deixando para o verso sua eficiência,
Que no mundo real não me serviu...

.
11/08/2016

A Liberdade (de Alma Welt)

A Liberdade é que é o bom combate,
Uma vez que a Verdade é relativa.
O cachorro que morde às vezes late
E o real depende da perspectiva...

Assim pontificava um certo mestre
Que não foi levado muito a sério
Porque antes de tudo era pedestre
E adorava passear no cemitério...

Mas como vivemos no absurdo
É preciso peneirar nossos conceitos
Pois há sempre um rumor de fundo, surdo.

Então voltemos à nossa Liberdade,
Que felizmente, pra todos efeitos,
É mulher e há quem diga, uma beldade...

.
11/08/2016

Nosso Mistério (de Alma Welt)

Algum dia saberemos finalmente
Quem somos, de onde viemos, ir pra onde?
A que vem tudo isso em nossa mente,
Em que momento perdemos nosso bonde?

Haverá secreto horror em nossa alma
Para nossa memória estar perdida?
Quiçá um lapso causado por um trauma,
O fio perdemos na entrada ou na saída...

Talvez reste uma chave do mistério
Um parafuso na caixa só de pregos,
Ou lenda que ninguém levou a sério...

Não sabemos quase nada, na verdade,
No que respeita à nossa humanidade,
Orgulhosos tateando feito cegos...

.
11/08/2016

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Os caminhos (de Alma Welt)

Não vim ao mundo pra me deixar levar
Ou para acompanhar gostos alheios,
Mas com vela ao vento-contra me singrar
Levada avante por meus próprios meios.

Ascendendo rumo ao sol do meio-dia
Sem frágil cera asas grandes fixadas,
Escapar do labirinto eu só queria
Para atingir novos planos e alçadas...

Mas então me vi perdida numa selva,
E como Dante encontrando o meu portal
Na clareira se erguendo sobre a relva.

Mas ao entrar depois de tanta andança,
Bem ao contrário do meu bardo imortal
Meu portal seria a porta da Esperança...

.
10/08/2016

Nossa vida secreta (de Alma Welt)

Nossa vida secreta é a verdadeira
Embora a neguemos em juízo.
Trazemos nosso lobo na coleira
Ou o nosso gato com o guiso.

Ninguém de nós quer dar a cara a tapa
A não ser para fazer boa figura.
Se essa foto jamais for sair na capa
Negamos tudo até sob tortura...

Nossa andorinha nunca fez verão sozinha
Mesmo sem distinguir qual ela é qual
Como através de uma cortina de voal.

Nossos gatos são pardos à distância
E não sabemos ler nossa entrelinha
Porque nosso normal é nossa ânsia...

.
10/08/2016

Sabedoria simples (de Alma Welt)

Difícil é viver bem, ninguém o nega,
A não ser pra um ou outro amalucado,
Se a vida nos surpreende ou nos pega
Sem vocação pra ser ou criar gado.

Para estarmos à vontade nesta vida,
E andarmos por aí como se em casa
É preciso dar aos outros acolhida
E nunca ser hostil como um fantasma.

Viver no olho da tormenta é para poucos
Mas podemos ter a calma do andarilho
Que prefere andar na trilha e não no trilho.

Para isso é necessário estar liberto
Das tais camisas feitas para os loucos
E termos decretado o hospício aberto...


.
10/08/2016

Marionetes (de Alma Welt)

Que a vida seja drama e não tragédia,
É quase tudo o que podemos esperar.
Há quem diga que ela é tragicomédia
Amargas gotas entre os risos de chorar...

Quanto a mim choro e rio amiúde
De alegria e de beleza o mais das vezes.
A tristeza evitei o quanto pude,
Conta somada de três ou quatro meses.

Tal é a nossa vida sobre a Terra,
Marionetes penduradas do Destino
Se esfalfando enquanto a turma berra.

E herdeira da Verdade em verso e prosa
Cantando num tom alto muito fino,
Eu mesma, Alma Pinocchio, mentirosa...

.
09/08/2016

Vanitas (de Alma Welt)

A força da vaidade move o mundo
Quase tanto quanto a força da cobiça
O dinheiro leva tudo mais a fundo
E dele só escapa a boa preguiça...

Dois desses pilares fazem o artista
Desde que haja o mistério do talento,
Também que escape ele da preguiça
Pois arte é um constante movimento...

Não me citem o Vanitas vanitatis
Com aquele triste tom pejorativo
Como o vemos no Eclesiastes.

A vaidade move o mundo, eu reitero,
"É um fluido dinâmico psicoativo"
Falei científico e bonito, assim espero...

.
08/08/2106

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A Festa (de Alma Welt)

Bem diante de nós se estende o Mundo,
E certamente está tudo por fazer
Pois o poço a cavar está mais fundo
E a esperança foi a última a nascer...

Sim, com meus irmãos herdei a Terra,
Dever e honra maior não poderia...
Então de pronto aposentei a serra
E para efeito de desmate a serraria...

Nosso gado também, já era tempo
De total acabarmos com a matança;
Haja festa, haja vinho e haja dança!

E nova ninfa coroada de parreiras
Erguerei a minha taça de faiança,
À queda pessoal de minhas barreiras...

.
08/08/2016

O último encontro (de Alma Welt)


Sempre tive muito medo de morrer
E nem por isso vou me envergonhar.
Covardia é esse medo não encarar
E negá-lo, se já estamos a tremer.

Na hora em que cair o nosso pano
Saberemos talvez o que é o fim.
Com a Moira, no papo mano a mano,
Possa eu esquecer tudo de mim

Mas não esqueça do lenhador a lenda
Em que o pobre velho enfraquecido
Pede à Morte a liberdade,e logo emenda

Tremendo diante da sinistra aparição
(Chamaste-me, senhor, terei ouvido?):
“-Só queria com esta lenha sua mão”...
.
07/08/2016

Às rosas do Cartola (de Alma Welt)


É necessário, sim, cantar o amor
Embora esteja tão banalizado,
Em canções pífias, feias e sem cor
Ou muitas vezes até vulgarizado...

Assim dizia minha avó, colhendo rosas
E exaltando a obra-prima do Cartola
Que supera do assunto quaisquer glosas
Pela delicadeza plena e sem esmola.

E revejo estas cenas como um filme,
Encantada com a letra tão sublime
Que haveria de ser minha inspiração,

Pois me lembro da velhinha com voz fina
Cantarolando à capela essa canção
Quando eu era somente uma menina...

.
04/08/2016

O que pode a Poesia (de Alma Welt)


O que pode a poesia contra o Mal?
Foi um dia por alguém me perguntado...
Mas à vontade me vi, o que é normal,
Já que adoro um bom campo minado.

A boa poesia não faz proselitismo
Conquanto tenha dentro a liberdade
Que por si só é inimiga da maldade
Mas também da instalação de qualquer "ismo".

A poesia, sim, nos serve pra sonhar
Bem como para a vida sublimar.
Mas também pra colocar os pés na terra.

Uma coisa sempre e seu contrário,
Só o Mal não deverá sair do armário,
Porque o Mal em nós sobra e aberra...

.
04/08/2016

As Pantufas (de Alma Welt)


"Eu precisarei mais de uma vida
Para o meu sonho imenso completar,
Trazer à baila a essência concebida
De um soneto puro e exemplar,"

"Algo de inefável e indizível
Que poderá o meu reflexo mudar,
Fazendo-me subir a um outro nível
Quando nesse espelho eu me mirar.

Assim dizia eu para os doutores
Quando todos me queriam internar
Naquele pavilhão dos sem amores...

Mas fugi logo dali em camisola
E nos pés pantufas feias de matar,
Um detalhe que até hoje me desola...


.
04/08/2016

Angústia (de Alma Welt)

              A equilibrista - desenho de Guilherme de Faria para série de poemas O Circo, de Alma Welt

Angústia (de Alma Welt)

A angústia da morte estraga a vida
Conquanto universal e tão difusa
A ponto de passar despercebida
A alguns de mente fútil ou obtusa.

Quanto a nós, que a morte vigiamos
Por excesso talvez de lucidez,
Sabemos que na corda bamba andamos
Mas repletos de orgulho e altivez.

Tudo é vão, pois todos despencamos
E para o fundo abismo já nos vamos.
Mesmo os que habitam o rés do chão.

Portanto se me reste muito ou pouco
A pensar se o mundo é belo ou muito louco,
Eu me ponho a mirar minha própria mão...

.
03/08/2016

Amor e arte (III) (de Alma Welt)



"Viver um grande amor, é o que importa,
O resto são apenas circunstâncias."
Mas terá ele que bater à tua porta
Ou deves percorrer outras estâncias?

Assim me perguntava quando jovem,
Isolada neste pampa de lonjuras
Olhando nuvens lentas que se movem,
Ou só a observar as tanajuras...

Bem mais tarde eu haveria de sofrer
As tais dores da paixão desenganada
De que Werther haveria de morrer. *

Mas agarrei-me à arte e à poesia
Coisa que pra ele não era nada
Pois ele não amava o que escrevia...

.
03/08/2016

Nota
* ... de que Werther haveria de morrer - Alma se refere ao ao grande livro de Goethe, "Os Sofrimentos do Jovem Werther", livro magistral que provocou uma onda de suicídios de jovens românticos na Europa, na época de seu lançamento. O livro é um romance epistolar, isto é na forma de cartas belíssimas, verdadeiras obras de arte, que descrevem um processo de adoecimento psíquico gradativo, produzido por um amor impossível, uma paixão dolorosa que leva ao suicídio do jovem poeta que as escreve.

Percalços literários (de Alma Welt)


"Fora escrever passaste a vida a passear
Com o teu cachorro pelos pastos...
Isso é pouco e a ninguém vai interessar,"
Disse um crítico daqueles mais nefastos.

Folheara um livro meu recém lançado
Que ele lera de viés, em diagonal,
Sem perceber as entrelinhas e o velado,
Nem o ouro que encontrei em meu quintal.

Mas eu autografara uma centena...
Não que isso represente coisa alguma
Pois o livro entrou depois em quarentena.

Não faz mal, o segredo do fracasso
É lançar perolas a esmo, uma a uma,
O ouro do sucesso é mais escasso...

.
03/08/2016

Lições de minha avó (de Alma Welt)


"Amar o que se tem e o que se é.
Eis o segredo de uma vida em plenitude,
A providência que substitui a fé
Caso não se a tenha ou ela mude."

Assim dizia minha avó colhendo rosas,
E ela as colheu a vida inteira,
Pois estas floresciam poderosas
Como a fé que brota na poeira.

Não sei se minha avó era devota
De um santo milagroso ou coisa assim,
Se mais alguém cuidou de sua horta...

Quanto a mim, observando-a aprendi
Em mim a distinguir o não do sim,
Mas rosas como as dela jamais vi...


.
03/08/2016

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Penélope-Ulisses (de Alma Welt)

                                    A nave de Ulisses - desenho de Guilherme de Faria ( anos 80)

Penélope-Ulisses (de Alma Welt)

Quisera celebrar um imenso amor
E muitos versos só a ele dedicar.
Mas fêmea não sou de uma só cor
Para machos multicores cortejar.

Tantos são os mares de minh'alma,
Também os amores e lembranças
Com que voltarei à falsa calma
Depois de aventuras e lambanças...

Penélope de mim, mista de Ulisses
Ao mesmo tempo fui daqui e me fiquei
Soñando besos, baci, even kisses...

Mendiga de mim mesma disfarçada
Voltei à teia dos amores que tramei
Para em versos refazer cada laçada...
.
02/08/2106

O voo da perdiz (de Alma Welt)


O voo da perdiz (de Alma Welt)

Um desconforto estranho me desola
E me impede afinal de ser feliz.
Sinto que o meu voo sempre estola
Ou é só um voo baixo de perdiz...

Camões se comparou ao perdigão *
Que perdeu a pena e despencou...
Assim também voou meu coração,
Quis levar-me à alta torre e desabou.

Cacos são o material a que recorro,
E aparentemente laboriosos,
Meus sonetos são um mato sem cachorro.

Vivo então no limbo dos fracassos
Recompondo os voos grandiosos,
Coletando dos meus sonhos os pedaços...

.
02/08/2016


Nota
Consta que o grande poeta Luis Vaz de Camões, que perdera um olho na batalha de Ceuta, tendo escrito Os Lusíadas e já famoso foi chamado a viver na corte do rei de Portugal, onde era mal aceito por alguns nobres que por ser caolho e plebeu, puseram lhe o apelido de "Perdigão", porque sabiam que ele jamais ascenderia à nobreza. O poeta se apaixonou por uma nobre dama da corte, e rejeitado por ela, ficou deprimido e melancólico e incapaz de escrever por um tempo. Então aqueles nobres para zombar dele, numa festa na corte o desafiaram em voz alta com um mote para testar seu talento no improviso. O mote era: "Perdigão perdeu a pena" . Camões assimilou a zombaria e no mesmo tom auto-irrisório, imediatamente continuou:


"Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha

Quis voar à alta torre

mas achou-se desasado

e vendo-se depenado

de puro penado morre..."


"Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha..."
.


Tristeza (de Alma Welt)

Às vezes sento na varanda e fico triste
De uma tristeza de imobilizar. *
A cadeira de balanço fica em riste
Pois que nem mesmo a ponho a balançar.

Então minha irmã Lucia chega junto
E faz doces carinhos na minha face
Como se no rosto de um defunto
Que ao seu belo enterro preparasse.

Ela já sabe que não quero palavras...
Não suporto dos consolos a pieguice,
Que nunca os plantei em minhas lavras.

Deixem-me quieta aqui nesta fonteira
Do sonho e da morte. Ah! quem me visse!
Aqui, de um outro mundo na soleira...


.
01/08/2016


Nota
*Alma foi uma vez diagnosticada como bipolar. Mas isso são coisas da modernidade. Alma transcendia esses diagnósticos. Ela vivia no tempo da poesia...

Derivando (de Alma Welt)

A vida não é mais que um grande "imbroglio",
Uma espécie de comédia à italiana
Mesmo vista daqui de onde a olho,
Uma imensa pradaria toda plana...

Não vai nisso, veja bem, nenhum desdouro
Pois adoro o cinema de Fellini
Que em Cannes ganhou Palma de Ouro
Quando desgrudou do Rosselini...

Mas por quê, eu mesma me pergunto
Estive a Dolce Vitta a envolver
Pondo vida e cinema tudo junto?

Estou mesmo à deriva nestes versos,
Esqueci do que queria discorrer...
Bah! A vida e seus muitos universos...

.
01/08/2016

Anima Mundi (de Alma Welt)


Como é belo ser anima ou mulher,
Porque assim a alma sou do mundo
Segundo Mestre Jung assim o quer
E não como quis o Sigmundo...

Corpo e espírito, geral, dentro de todos
Mesmo de alguns machos renitentes,
Com seus mamilos róseos e alguns modos
Delicados, mais ou menos persistentes.

Mas Mestre Carl apontou uma questão,
Que é a projeção dessa abantesma
A razão louca do delírio da paixão:

Impedidos de ver a quem se ama
Senão a nossa própria alma mesma,
Sobre a qual nosso ego se derrama...

.
31/07/2016

Receita do humano (de Alma Welt)


Tenho tido tanta pena deste mundo
Que como um todo não sabe ser feliz.
Também certa tendência pra ir fundo,
Contra o que o vulgo pensa e diz....

Mas não me leve em conta, quem sou eu
Para julgar ou só mesmo ter piedade?
Um infeliz temperamento meio ateu
Com mescla de cinismo e ingenuidade.

Como todos ao redor, amores, ódios,
Um fascínio misturado com o horror
E a latente violência dos primórdios...

E no final, chacoalhando em coquetel,
Amor e um travo, ou só leve amargor,
Que é a especialidade deste Hotel...


.
31/07/2016

Considerações (de Alma Welt)


Como é fútil nossa humana condição!
Carregamos a nossa vã mortalidade
Sem garantias, que não tola presunção
De chegar ao paraíso da bondade.

Da bondade que nem temos, bem se diga...
E imortalidade é o que almejamos
Porque do ego ninguém fácil se desliga,
Enquanto em mil cabeças nós pisamos.

Há quem pense somente em diversão
E poucos a concebem sem bebida
Com o fim de produzir mais confusão.

Enquanto eu, cuja família tem vinhedo,
Tenho de culpa e remorsos arremedo
Mas tendo que ganhar a minha vida...

.
29/07/20016


Considerations (Alma Welt)

As our human condition is futile!
We carry our vain mortality
No guarantees, only foolish presumption
To reach the paradise of kindness.

Kindness that we not have, this is the truth..
And immortality is what we aim
Because the ego no one easy to turn off,
While a thousand heads we step.

Some people think only in fun
And few conceive without drink
In order to produce more confusion.

While I, whose family has vineyard,
I have guilt and false remorse
But having to earn my living ...
.
29/07/20016

Meio (de Alma Welt)


Nós todos temos nossos medos, afinal.
Se não escrevo um soneto, ai de mim,
Me sinto incompleta e meio mal!
Tudo é "meio", hoje em dia, sem um fim...

Nossos costumes estão meio vulgares
Mas não quero parecer blasée ou snob.
Preciso urgente, talvez, de novos ares,
Já tem gente nisso a fazer lobby...

Há uma amiga que a Paris me convidou
Pra ficar em sua casa e ver o Louvre
E eu, medrosa, meio assim: vou e não vou...

A fim de dar-me rima ou incentivo
Ela diz: "Ouvre ta porte! Allons nous, ouvre!
Eu sorrio, meio assim... vivo, não vivo...

.
29/07/2016

A Maldade (de Alma Welt)


Maldade humana vem dos tempos de Noé,
Melhor dito: antes mesmo do Dilúvio.
Após milênios vem Jesus de Nazaré
O primeiro a o Mal tratar como distúrbio 

Foi necessário então mais dois mil anos
Para o Freud, Sigmund, aparecer
E atribuir o Mal aos nossos anus.
Claro, estou simplificando pra valer...

Se temos dentro em nós um matador,
Édipo ou Electra de emboscada,
Não terminará nunca o nosso horror.

O Mal não tem ainda quem o esponje
Mas na renúncia à vingança anunciada
Foram Gandhi e Mandela bem mais longe...

.
30/07/2016

Cartas de Amor (de Alma Welt)

Prometi nunca escrever cartas de amor,
Que são só o ridículo dos poetas.
As da Ofelinha do Pessoa causam dor,*
Me perdoe o mestre as minhas setas...

Podia bem passar o Fernandinho
Sem escrever em cartas tais pieguices *
Que fariam corar mestre Alvarinho,
O Campos, das odes como mísseis...

Modesto, não sabia o grande Vate
Que o mundo iria ler aquilo tudo?
Báh! Pobre coração que bate bate...

Dorme, meu poeta, e não me leves
A sério, já que em parte estás mudo,
E teu amor de antanho, como as neves... *

.
29/07/2016


Notas
* As da Ofelinha do Pessoa... - alusão as cartas de amor que Fernando Pessoa escreveu para sua namorada Ofélia, cartas terrivelmente piegas, às raias do ridículo, de tal maneira que manchariam sua reputação de grande poeta se elas fossem mais divulgadas. Entretanto o próprio poeta escreveu mais tarde um conhecido poema sobre "cartas de amor ridículas", talvez como autocrítica. Entretando não devemos esquecer que cartas de amor não são necessariamente ridículas se nos lembrarmos dos grandes exemplos como as Cartas de Heloisa para Abelardo (Helois de Argenteuil e Pierre Abélard, amantes reais, da Idade Média) grandiosas e comoventes às raias do heroísmo, e também as chamadas "Cartas Portuguesas de Sóror Mariana Alcoforado, uma freira da cidade do Porto, para o seu amante, um oficial francês.

*Que fariam corar o Alvarinho - Alma chama assim ( no estilo piegas das cartas do Pessoa à Ofélia) o poeta Álvaro de Campos, o maior heterônimo de Pessoa e poeta fortíssimo.

* teu amor de antanho, como as neves - alusão ao célebre verso da "Balada das Damas dos Tempos Idos", do poeta francês medieval, François Villon: "Mais où sont les neiges d'antan"" (" Mas onde estão as neves de antanho?")

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Depoimento (de Alma Welt)


Uns remorsos relativos, bem os tenho,
Se é possível que alguém os tenha assim.
Preservei-me somente, e me contenho
Pra não invadir ou ir muito além de mim.

Quis sempre manter meu território
Que por dentro é vasto como o pampa
Mas por fora é uma mesa de escritório,
Só espero ser maior que a minha campa.

Nunca invadi o espaço de ninguém
E evitei até mesmo dar conselhos
Que nunca deram ou darão um só vintém...

Jamais como Narciso, alheia aos fatos,
Me abismei na água fria dos espelhos,
Nem lavei as minhas mãos como Pilatos...

.
28/07/2016

Aos amores passados (de Alma Welt)


Onde estão as aflições e os amores
Que passaram por minh'alma e coração
E se foram, descorados esplendores
Como as rosas quando finda a estação?

Villon, poeta, outrora perguntava *
Por longínquas neves e de antanho,
Inverno da alma que o assombrava,
Que seu amor do Mito era tamanho...

Quanto a mim, os tenho na memória
Do próprio coração envelhecido
Querendo reviver a antiga glória.

Amores meus de antanho, eu sinto tanto
Que tenhamos como as rosas fenecido
E caia nossa neve como um manto...

.
27/07/2016

Nota
* Villon, poeta, outrora perguntava - François Villon, poeta medieval francês no seu célebre poema "Balada das Damas dos Tempos Idos", pergunta: "Mais où sont les neiges d'antain?" (Mas onde estão as neves de antanho?

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O Unicórnio (de Alma Welt)

                                                    Alma e o Unicórnio - litografia de Guilherme de Faria, P.A. 1979

O Unicórnio (de Alma Welt)

Andarilha solitária de mim mesma
Percorro o coração desconhecido,
Também minha alma, essa abantesma
Que teima em sussurrar em meu ouvido.

Se alguém pode dizer: "Bem me conheço",
Faça bom proveito em seu engano.
Outros dizem: "Eu faço e aconteço! "
A mim nada acontece faz um ano...

Mas amo meu mistério e o confesso,
E adentro de mim a noite escura
Como um caçador louco ou possesso,

E enquanto desvendar-me não consigo,
Devaneio que em mim em vão perdura,
Meu belo unicórnio ainda persigo...
.
27/ 07/2016

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Reminiscências (de Alma Welt)


"A hora do poente me é sagrada
Com sua natureza melancólica,
Mas do sol é alegre a escalada!
Queridos, como hoje estou bucólica!"

Assim, pedante, dizia minha tia,
A Irmã de minha mãe, se bem me lembro,
Enquanto, nauseada de poesia,
Me encontrava no meio de Setembro.

Pois era no absurdo que eu lastreava
Do meu estro a rebelde natureza
Que minha dura mãe castrar buscava...

Ah! Meu verso não viria da doçura
Com que eu ainda punha a minha mesa,
Mesmo sendo bela e talvez pura...

.
24/07/2016

sábado, 23 de julho de 2016

Dias de vinhos e de rosas" III (de Alma Welt)

Foram-se os dias de vinhos e de rosas,
A juventude também foi-se, e o martelo
Das perdidas ilusões, tão dolorosas
Ao canto melancólico de um cello...

Que belos fomos nós, tão iludidos,
Correndo pelas ruas, e agredidos,
Sonhando estar salvando o nosso mundo
De um certo monstro cruel e iracundo...

Mas também nos divertíamos, como não?
Em grandes festas de sexo e poesia,
Embriaguez, amor, tolice e confusão...

Hoje mais brancos, céticos, mordazes
Suspiramos o fervor que nos movia,
Moços bobos a colar do Che cartazes...


.
21/07/2016

Metáforas (de Alma Welt)

                                              O estancieiro (o avô da Alma)- água-forte de Guilherme de Faria, 1968

Metáforas (de Alma Welt)

"Não te vejo como parte da manada",
Disse um dia meu avô estancieiro
Dando na própria perna uma lambada,
De chibata na mão o dia inteiro...

"Mas que manada?" Pensava eu, guria
Solitária, saltitando na coxilha
Com as sílabas nos dedos da poesia,
Minhas únicas reses numa milha...

Mas então percebi o duplo mundo
Que uma simples metáfora destampa,
Comigo num espelho mais ao fundo.

As reses, na verdade, eram as uvas,
Eu, a vinha solitária neste Pampa,
Que meu avô podava, mas com luvas...

.
22/07/2016

quinta-feira, 21 de julho de 2016

"The Tell-Tale Heart" (de Alma Welt) *


Vai mal o mundo embora já o saibamos
Desde os tempos de Noé e sua Arca
Pois que bebia muito o patriarca
E seu pendor alcoólico herdamos.

Como então a violência cultuamos!
Com que prazer os "trillers" assistimos
E armamentos eficazes fabricamos
Para a outros armamentos resistirmos!

Tudo está em nós desde os primórdios!
Com que prazer li Homero sobre Tróia
E admirei de Aquiles grandes ódios!

Vamos pois encarar a hipocrisia
Que mascara nosso ódio e o apoia
Contra o próprio coração que o denuncia...

.
20/07/2016


Nota
*The Tell-Tale Heart (O coração delator)- Título do célebre conto de terror de Edgar Allan Poe.

Divagando (de Alma Welt)


Manter a integridade está difícil
Pra quem quer a sintonia com o mundo.
isso outrora ideal foi, muito civil,
Tal sintonia lhe deixa agora imundo.

Eu prefiro andar sozinha em meu jardim,
Conquanto vulnerável à vã tristeza
E à uma certa pena ilícita de mim
Da qual posso nem, talvez, sair ilesa...

Mas de que estou falando? Eu já nem sei...
Comecei com uma nota de censura
E me vejo então perdida em minha lei.

Então percebo que é melhor a aceitação
Do mundo como é, mesmo sem cura
Em ti nasce e há de voltar, ó coração!...

.
19/07/2016

Rostos (de Alma Welt)

                                       Rostos - desenho de Guilherme de Faria, 2011, 35x50cm

Rostos (de Alma Welt)

Nosso rosto é o retrato essencial,
Já que revela o que nos vai por dentro
Embora digam que não é assim cabal
Pois nos pode ocultar o pensamento.

"Quem vê cara... " conhecem o ditado,
E há bandidos com o rosto angelical
Nunca os vi e tenho disso duvidado,
Os olhos, creio, da alma são o vitral.

O problema consiste em nossa pressa
Que nos faz ser outrossim tão desatentos
Sem tempo pra mirar uma outra peça.

Olhemos pois nos olhos o vizinho
Se toparmos com ele por momentos
Enquanto desce o elevador devagarinho...

. 19/07/2016

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O Imaginário (de Alma Welt)


Ser poeta é ter o dom de admirar
O minuto que passa e que é tão belo, *
Sem jamais fazer sua alma pactuar
Com miragens do poder e seu castelo.

O mundo, já o tenho em minha palma
E bem posso desfrutar de seus prazeres
Pelos próprios recursos de minha alma,
E esta, sim, tem quase todos os poderes...

Um recurso nos foi dado já, de graça,
Para usufruirmos do universo
Sem por isso correr risco de desgraça,

O Imaginário é essa luz sagrada
Que compensa uma vida fracassada
Com a simples maravilha de um só verso...

.
18/ 07;2016

Nota
*O minuto que passa e que é tão belo - Alusão aos termos do pacto de Fausto com Mefistófeles (no poema de Goethe): Fausto, o grande entediado, perderia a sua alma no momento que capitulasse diante das dádivas milagrosas oferecidas pelo diabo, e dissesse "ao minuto que passa": "Pára, és tão belo!"

domingo, 17 de julho de 2016

Plano para transformar o Mundo (de Alma Welt)


                                        O Ministro ( Mefisto) - litografia de Guilherme de Faria

Plano para transformar o Mundo (de Alma Welt)

Bem queria a vida toda transformar
Retirando todo o mal, raiz do mundo,
E deixando só o amor, pra começar,
E a morte esquecida lá no fundo...

Que imensa pretensão, bem reconheço,
A de querer melhorar o que Deus fez,
Mesmo sem a rebeldia do começo
Que incluía rancor e insensatez...

Fui visitada por um senhor sinistro
Me propondo sociedade no projeto
Ou então ser uma espécie de ministro.

Então logo percebi a armadilha
De que meu próprio plano era objeto:
A do primeiro anjo e sua quadrilha...

.
11/07/2016

A vã prudência (de Alma Welt)


Busquei dentro de mim mesma o meu amor,
Pra que não me confundisse com Narciso
Que amava só o que mirava e virou flor,
Enquanto eu procurei o que é preciso

Pois logo armada do que encontrei em mim
Fui aonde está vagando o ser humano
Para agora lhe dizer o não e o sim
Já que amar não exclui erro ou engano.

Mas não fui poupada em minha prudência
E malgrado as providências que tomei
Pra superar a ancestral e vã carência

Sofreria o mal de amor como as princesas,
Tão perdidas nos castelos de tristezas
Quanto eu que de mim mesma tanto sei...

.
17/07/2016

A viajante (de Alma Welt)


Vivo tão mais curiosa que perplexa
Pois não sei o que virá em um segundo.
Que palavra, qual o alvo, qual a flecha?
A vida é uma aventura em cada mundo.

Na verdade não preciso ir por aí
Ao sabor de ambições que nunca tive,
Meu quintal vai por certo até o Chuí
E o pampa é meu olhar de detetive.

Quantos mundos nesta casa e meu jardim
De onde descortino estas coxilhas,
Cuja planura ondulada está em mim!...

E se quero descansar das aventuras,
Vou na varanda acumulando milhas
De ir ao sol poente e suas lonjuras...

.
16/07/2016

Parnaso (de Alma Welt)


Aventurei-me nas águas de minha alma
Com risco de afogar-me em seus meandros
E no limite, levantando a minha palma,
Faltando o ar implorei por escafandros.

"Exagero" - direis- "quanta eloquência!
Fazes do versejar uma tragédia
Pra dos novos afastar a concorrência
Ou ao estro dos mais velhos fazer média..."

"És romântica, isso sim, e demodée,
Agora ninguém sofre ao fazer verso,
Estás então mitificando, já se vê..."

Mas eu, humildemente imploro à Musa,
De um Parnaso, por aí ora disperso:
"Quero ir pra casa, perdão, estou confusa..."
.
15/07/2016

O Jogo (de Alma Welt)


Diante da folha em branco titubeio:
Não sei o que virá se nela verto
Uma primeira gota do meu seio
E em verso límpido a converto.

O mistério do reino das palavras,
Claras sejam, ou escuras, mas lançadas,
Revelando minhas verdadeiras lavras,
Feição plena das coisas semeadas...

Não há total controle, aqui, da mente,
Neste jogo de cartas duvidoso
Pois o blefe não terá um oponente.

Mas, por fim, cartas baixadas, mão exposta,
Fichas não recolherei, mas só o gozo
Da beleza, que é só o que a alma gosta...

.
13/07/2016

Velho tema (de Alma Welt)


Tenho tudo o que quero e nada tenho
Que a pouco me agarro, simplesmente,
Pois persigo apenas versos, vão empenho,
Que sempre estão um pouco à minha frente...

"-Isso é só mania"- alguns me alertam
Pois já me vêm perder a cor e o viço;
Já outros a inveja em si despertam
Pelo verso conquistado e submisso.

Quanto mais me completo mais me isolo
Pois construo com areia sobre a areia,
E com fração do eterno me consolo...

E no final verei meu rosto num relance
No alto d'uma torre, em sua ameia,
Antes que o próprio castelo se desmanche...

.
12/07/2016

O Figo (de Alma Welt)



O Figo (de Alma Welt)

Há coisas misteriosas, meu amigo,
Que não sabemos mais se é fruto ou flor,
Como ocorre, por exemplo, com o figo,
Flor voltada para dentro por pudor.

Há também quem na falta de uma escolta
Prefere a toca de modo permanente
Pelo horror que é o mundo à sua volta,
Lugar não recomendável à boa gente...

Mas se escolhes a Arte e a Poesia
Em vez de simplesmente estar e ser,
Abrirás o coração que se anuncia

Como o cerne de nossa plena dor
Que dá sentido ao mistério de viver,
Trazendo para a luz o mel e a cor...

.
13/07/2016

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A Espera (de Alma Welt)


Intensamente vivermos nosso brilho,
Brilhar, brilhar, brilhar como as estrelas,
É o que querem de nós o Pai e o Filho,
Também a Pomba branca entre centelhas.

Não nascemos para o caos e escuridão
Nem pro desperdício da Maldade.
Outrora fomos anjos de verdade,
Por aí alguns de nós ainda o são.

O orgulho foi a perda e nosso dote
E se descendemos de algum símio,
O coitado nem quer ser nosso mascote.

Mas se pura mantenhamos nossa alma
Como antes do tal fruto e seu fascínio,
Precisamos esperar mantendo a calma...

.
09/07/2016

Revendo o mundo (de Alma Welt)


Venham ver comigo estes prodígios!
Olhem ali aquela flor, aquele ninho,
Esqueçam diferenças, vãos litígios,
E recomecem a olhar devagarinho.

Está tudo por se ver com novos olhos
Depois de tanta luta em terra e mar
Para se separar águas de óleos,
Que um no outro só fizemos derramar...

Nem falo das ambientais catástrofes
Mas aos vícios do cotidiano olhar
Incapaz de apreciar velhas estrofes.

Ora vamo-nos daqui pra Trás-os-Montes,*
Que um frescor recuperamos do pensar
Ao voltarmos a beber nas velhas fontes...
.

10/07/2016

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Esperando o bonde (de Alma Welt)


Tantas vezes por um lapso ou um triz
Perdemos por descuido nosso bonde,
Aquele mesmo que achávamos feliz
E que então nos levaria a não sei onde.

"Desejo" ele é chamado pelos gringos,
Mas aqui nesta terra modorrenta
Ele existe mas só passa nos domingos
E com aquela eterna marcha lenta.

Quisera o resultado dessa espera
Ser um salto do olhar, acuidade
Que desfaz o bonde e sua quimera,

Eu não mais nesta varanda-plataforma
Esperando o viajor de uma cidade
Que me leve daqui de alguma forma...

.
08/07/2016

Mais preceitos (de Alma Welt)


Sejamos simples, claros e diretos
E nunca falsamente nebulosos,
Mas guardemos nossos ricos objetos
Como pérolas, mistérios mais gozosos,

Pra não sermos corpo nu ou tão despido
Que nos venha aparecer o vão trazeiro
Ou aquele cofrinho intrometido
Às vezes feito para colocar dinheiro.

Intimidade é bom e até eu gosto,
E escolho o angulo e o perfil
Pra dar ao fotógrafo em que aposto.

Cuidarei se o resultado é belo ou triste
Mas que não seja jamais visto como vil
Nem por um ninguém com o dedo em riste.

.
08/07/2016

Crescer (de Alma Welt)


                                   Alma e a  árvore - óleo s/tela de Guilherme de Faria, 2014


        Crescer (de Alma Welt)

Crescer como uma árvore para o alto
Às vezes retorcida no elevar-se
Em função do nosso ser incauto
Que produz um nó, se não catarse.

Quantos erros na afoita juventude!
Sobreviventes heroicos de nós mesmos
Não cheguemos afinal na completude
Cobertos de farrapos ou enfermos

Mas como os tais guerreiros de outrora
Perdoando nossos crimes sob a aurora,
Por muitas cicatrizes, poucas glórias,

Ou então, tão humildes como monjes
Daqueles que habitavam antigos longes
Dos livros de figuras e de histórias...

.
08/07/2016

A escolha da Poesia (Alma Welt)



Para viver neste duvidoso mundo
Onde as respostas beiram o enganoso
E temos que encontrar, não nosso gozo,
Mas a própria razão de ir mais fundo,

Optei pela poesia, não resposta,
Mas viés universal, um certo olhar
Que é um pouco mais que mera aposta
No jeito de uma coisa se encantar.

Perdida a esperança de certeza
Tenho um mundo em forma de pergunta
Que traz nela mesma sua clareza.

Assim percorro minha vida como trilha
Que só eu vejo no meio da coxilha,
Vasto plaino que com céu azul se junta...

.

08/07/2016

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Prece da sem fé (de Alma Welt)


Um só Deus ou muitos deuses, não importa,
Pois revela quanto ainda somos reses
A pastar aqui na Terra, nossa horta,
Ao sabor das horas, dias e meses...

Desamparo astral, carência imensa,
De pé ou ajoelhados frente ao Sol,
Nosso verdadeiro deus iluminado
Que comanda dos deuses todo o rol...

São palavras do orgulho, bem o sei
E que se Deus houver serei punida,
Sobre isso de antemão já concordei.

Pois sabei quanto espero estar errada,
Se de todas a mais desamparada
Criatura dele sou, tão presumida...

.
30/06/2016

Preceitos populares (de Alma Welt)


Repassemos todo dia, ao acordar,
Nossa vida inteira em um segundo,
Nesse breve momento, ao bocejar,
Que refaz a vida e encara o mundo.

Fomos claros, límpidos e honestos?
Não pisamos na cabeça de ninguém?
Não precisamos pois limpar os restos
Deixados por aqui ou mais além?

A coerência é o minimo que se pede
Quando vamos simplesmente abrir a boca,
E é o bom padrão com que se mede...

Não precisamos tirar o pai da forca
Mas pelo menos não façamos feio.
A nós o nosso reino, não o alheio...

.
26/06/2016

sábado, 25 de junho de 2016

O rosto do mundo (de Alma Welt)





                  Perfil de Alma Welt - litografia de Guilherme de Faria

O rosto do mundo (de Alma Welt)

Procurei o mundo inteiro nos meus versos,
Pouco nele mesmo ao vivo, em cores,
Sabendo dentro em mim os universos
Sem descartar-me alguns de seus horrores.

Quanta descoberta e alguns conflitos!
Saga imensa já inscrita no meu peito;
Queda, às vezes, no Vale dos Aflitos,
Subidas súbitas, a meu próprio despeito...

Mas nada lamento do percurso
Que tenho feito menos pela escolha
Que um belo rio tem do próprio curso...

E no final, espero, sem desgosto,
Como disse Borges, nessa folha
Desenhado reverei meu próprio rosto....

.
25/06/2016


Nota
"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto."

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. In: Obras completas (volume II).


O mundo e os longes (de Alma Welt)


"A vida nos requer muita prudência
Já que um passo errado é desastroso
E nos leva à morte ou à demência,
E é até meio sábio ser medroso.

"Mas se o homem levasse isso à palma
Ganharia só um palmo de seu chão,
Perderia da vida a sua alma,
Não iria muito além do seu colchão."

Assim dizia o meu irmão aventureiro
Que por amor de perder muito dinheiro
Foi-se ao mundo jogar pelos cassinos.

Mas como aqueles lusos velhos monges
Aqui permaneci a olhar os longes,
E a me comover ouvindo os sinos...
.
24/06/2016

A sina de escrever (de Alma Welt)


Escrever versos é minha ação no mundo
E maneira de evitar a inveja
Daqueles, sim, que talvez vão mais a fundo
Derramando-se em gesto que se veja.

Mas invejar o bem que o outro faça
É ambíguo, senão puro despeito,
E visto desse modo é só pirraça
Ou requer que eu refaça meu conceito.

Mas escrever é sina e compromisso
Com aquele outro que há de vir
Sedento de saber um pouco disso...

Tais seriam meus conflitos sobre o tema
De escrever somente e não agir
Se eu pudesse pousar a minha pena...

.
 25/06/2016

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Anti-pacto (de Alma Welt)


Tenho o Infinito à minha frente
E convido o Tempo à minha sala.
Hei de lançar um soneto competente
Pra não temer a tumba, cova ou vala.

Mas já sou imortal no que registro
Inspirada ou não pelas tais Musas,
As palavras tão logo administro
Despeço algumas torpes e abstrusas.

Como Fausto, vivo entre alfarrábios
Mas não penso em vender a minha alma
E quanto a isso cerrarei meus lábios.

Percebo o mundo aí fora, como anda,
Mas para tê-lo aqui na minha palma,
Recebo-o pro chá na minha varanda...

.
24/06/2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Ariadne ou O Meta-labirinto (de Alma Welt)



Ariadne ou O Meta-labirinto (de Alma Welt)

Tem dias em que acordo e sou heroica,
Muito antiga, me vejo num palácio,
Da grande e remota Era Minoica
E sair do labirinto não é fácil...

Trago comigo longo fio em molinete
Para entrar e sair num leva e traz;
O Minotauro pra mim não é verbete
Mas minha própria sombra e não me apraz.

Ariadne sou eu eternamente
Esperando o herói em sua investida
Mas falta um certo elo na corrente,

Pois sendo de mim mesma o labirinto
Tenho tudo em mim, e sem saída,
Sou a missão perdida... e me ressinto.

.
23/06/2016

Alma em processo (de Alma Welt)


"Vai, dedica-te aos outros", disse alguém.
E eu fiquei perplexa de imediato.
Ainda não sei bem de mim também
E preciso me formar pra ser de fato!

Ser um rio ou estender a minha mão,
"Mas não serei (disse Nietzsche), sua muleta". *
Inacabada, estou só e em construção
E ainda hoje a coisa ficou preta...

Mantenho minha cabeça fora d'água ,
Mas com sério perigo de afundar.
Se cuido mal da alma, a perco, estrago-a

E só meu ego é que me ergue de manhã.
Minha luta está somente a começar,
Nem sei se é fecunda ou quanto é vã...

.
23/06/2016

Nota
* a frase completa de Nietzsche é assim: "Eu posso ser um anteparo na margem de um rio para quem quiser agarrar-me. Mas não serei sua muleta". ( Assim falava Zaratustra, F. Nietzsche)

terça-feira, 21 de junho de 2016

A Ampulheta e o Labirinto (de Alma Welt)

Em imaginação vivi minha vida,
Os melhores momentos de invenção;
E os tormentos com que a alma lida
Me foram consequência ou extensão.

Não sei se fui um ser grato ao real
Ou consto no seu rol de aparecidos
Nesse pequeno e ávido areal
De nossa existência sob os vidros,

Dessa antiga ampulheta dos destinos
Que é todo o Tempo que nos cabe
No infausto labirinto do rei Minos...

Ter sido ou não ter sido, eis a questão
Que o pensamento aprisionado abre
Para, sem asas, voltar do Sol ao chão...

.
21/06/2016

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Viagens (de Alma Welt)


Então fui para o mundo, a meu despeito
Porque é aqui de casa o coração,
A sala e o jardim dentro do peito
E a varanda, horizonte e chimarrão.

Com toda uma planura para olhar
E as nuvens, infinita descoberta,
Que algo mais eu poderia precisar,
Para ter a alma assim desperta?

Mas uma inquietação viria um dia
E tive medo de morrer sem ver Paris,
Que na verdade, por Hug(ô), já conhecia... *

E fui a Portugal, França e Holanda
Tão somente pra voltar, como se diz,
A ver o mundo aqui desta varanda...

.
20/06/2016

Nota
* por Hug(ô)- Alma indica aqui a pronúncia francesa para o nome de Victor Hugo que produz a cadência certa para o verso. E ela certamente evoca indiretamente as obras "Notre Dame de Paris" (conhecida popularmente como "O Corcunda de Notre Dame"), e "Les Misérables", que capturaram a essência daquela cidade...

O poeta e o aventureiro (de Alma Welt)

                                     Tempestade - óleo s/ tela de Guilherme de Faria,1999

O poeta e o aventureiro (de Alma Welt)

Jamais se conformar com o dia-a-dia
E procurar um viés audacioso
É um dos atributos da poesia
E produz, em sintonia, extremo gozo.

Mas o preço a pagar é muito grande:
Um caminho de espanto e solidão,
Conhecido só de alguém que nele ande
E não recomendável a um irmão...

Bem melhor é o dom do aventureiro
Que acredita apenas neste mundo
E faz dele o seu maior desfiladeiro.

Reconheço superior sua coragem:
A ela os versos prestam vassalagem,
Assim como ao seu mar, bem mais profundo...
.
19/06/2016

domingo, 19 de junho de 2016

Eu e as Árvores (de Alma Welt)

                                     Alma no pampa - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2015

Eu e as Árvores (de Alma Welt)

Sempre fui pelas árvores atraída,
Que são para mim entes sagrados
Que pronto me oferecem sua guarida
Se me encontro perdida pelos prados.

E então eu as invoco como deusas
Recebendo o seu séquito de flores
Formando um desfile de belezas
Dos milhares de lampejos multicores.

"Isso é ter os pés na terra?"- me perguntas.
"És uma fantasista incorrigível
E de cunho romanesco, como muitas... "

Mas eu não me distingo desses seres
Não por ser tão bela ou ser sensível,
Mas pelo dom da Vida e seus poderes...
.
19/06/2016

sábado, 18 de junho de 2016

Sonetos (de Alma Welt)



O soneto é minha maneira de pensar
Malgrado enclausurada em duas quadras
E dois tercetos, poucos versos pra rimar,
Suficientes prisões pra algumas ladras.

Então por quê não jogas para o alto
Estas cruéis imposições da tradição?
Já me perguntam alguns fiéis do asfalto
Que não podem compreender minha opção.

Pois pra quem tem do Pampa sua lonjura
Que já faz sua visão mais alargada
Catorze versos cada vez é quase nada...

E eu respondo que é por liberdade pura
Minha escolha de tal prisão dourada
Em que a chave de ouro é minha soltura...

.
18/06/2016

sexta-feira, 17 de junho de 2016

De mares e memórias (de Alma Welt)

                                                     Litografia de Guilherme de Faria

De mares e memórias (de Alma Welt)

Quê imensa aventura é o viver,
Pois simplesmente me sentir e estar viva
Me faz antigos oceanos percorrer,
Ou em mares de memórias à deriva...

As vetustas travessias experimento
Já que sinto aquele impulso da corrente
Que vem dar em mim, com ou sem vento,
E Odisseu, por certo, é meu parente...

Então nada do que foi me é estranho,
E conheço aquelas naus e fortalezas,
Assim também as tais "neves de antanho"...

Por isso sofro as graves agonias
Daquelas damas e suas incertezas,
E, mais raros, seus amores e alegrias...

.
17/06/2016



Nota
* as tais "neves de antanho" - alusão ao célebre verso interrogativo do poeta medieval francês François Villon: "Où sont les neiges d'antan?" (Onde estão as neves de antanho?) do poema "Balada das damas dos tempos idos", em que o poeta cita nostalgicamente grandes personagens femininas da História, inclusive Joana D'Arc.

O Réquiem (de Alma Welt)

                                       Assum-preto- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2013


O Réquiem (de Alma Welt)

"A vida é e foi sempre experimental
Malgrado as tentativas de sistema..."
Dizia Fulano, o último De Tal
Sem jamais abandonar o grande tema.

E eu me perguntava: "Onde estamos?
Acaso o Cabo que viramos é o Não?"
"Somos gregos afinal ou só troianos,
Perdido o jogo na derradeira mão?"

"Se nosso fim é a tal macabra dança
Tudo mais é solidão morte e tristeza,
Para quê insistirmos na esperança?"

Mas Deus é a persistência da Beleza,
O réquiem triunfal da Natureza,
Que se faz ver enquanto a Sombra avança...

.
17/06/2016

quinta-feira, 16 de junho de 2016

A flauta mágica (de Alma Welt)


         O Flautista de Hamelin - desenho de Guilherme de Faria, anos 80

A flauta mágica (de Alma Welt)

Então fui ver o mundo além do Pampa
Embora o conhecesse bem dos livros
Que refletem o real como uma estampa
De Debret ou Daumier quando eram vivos.

E vi que a Arte quando pura e de verdade
Reflete o Mundo de modo condensado
Mesmo mais real que a realidade
Seja num timbre cruel ou encantado...

Pobres daqueles detratores do saber,
Apedeutas que um livro nunca abriram
E logo aos povos se metem a reger!

Ao desastre nos conduzem qual ratinhos
Que se leva ao abismo onde caíram,
De uma flauta ao som dos descaminhos...
.
16/6/2016

terça-feira, 14 de junho de 2016

O Ninho e o Devir (de Alma Welt)

                                 Alma no Pampa- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 30x40cm

O Ninho e o Devir (de Alma Welt)

Num certo dia acordei e vi o mundo
Como se apresenta em seu cinismo,
Em violência e interesse imundo
Em nome do comum e do civismo.

E disse: "Pai, não é isto que me deste
Ao me apresentar esta planície
Onde bate o gelado vento oeste *
Mas puro, sem maldade e imundície."

E o velho respondeu: "Eis o segredo,
De chegar audaz na vida e persistir
Pois o ninho é que perpetua o medo."

"O Paraíso foi perdido bem lá atrás
Mas a nós foi dado o tempo do devir *
Que toma a forma que a nossa mente faz..."

.
14/06/2016

Notas :

" vento oeste - o Minuano, vento gelado que sopra no pampa, do Pacífico para o leste.

*devir - termo filosófico, equivalente ao "dasein" alemão, que pode ser traduzido como "o vir a ser", impulso de transformação do espírito que se opõe ao conceito fatalista de destino...

Divagando (Alma Welt)


Tenho uma certo pudor de ser assim
Tão dependente de me pôr em verso
Para me sentir completa em mim
Pois bem sei que sem poesia me disperso.

Talvez me falte a verdadeira integridade,
"Ai de mim!" Como diziam os antigos
No meio da tragédia sem idade
Com ou sem a existência de inimigos.

Viver é ter a espada sobre a fronte
E coragem é rir, mas conscientes,
Que com riso de bobo também conte.

A consciência faz mulher e homem
Não cuspir naquele prato em que comem,
Derradeira lucidez de nossas mentes...

.
12/06/2016

A boa mão (de Alma Welt)




"Alma, tens boa mão para o soneto,"
(dizia o bom meu pai, churrasqueando)
"Assim como a Matilde no cloreto
De sódio, nossa janta cozinhando."

E ria, o arguto pai, com intenção
De assim talvez "baixar a minha bola"
Sem do orgulho precisar fazer menção
E mostrar que não estava na minha cola.

Mas um dia, sobre sua escrivaninha
Vi um álbum grosso, assim, jogado,
E abri pra ver alguma foto minha...

E era uma recolha dos meus versos
Em que reconheci o meu legado,
E meus sais ali estavam, não dispersos...

.
12/06/2016

Mais uma prece (de Alma Welt)



Mais uma prece (de Alma Welt)

Senhor Deus, livrai-me do meu ódio
Que o dos outros eu mesma me livrei.
Sabeis que nunca quis subir num pódio
Apenas porque ao chão me acomodei.

Quero colher flores, quem não quer,
Quando se é plena, bela ou só mulher?
Versejar e passear pela coxilha
Como se o mundo fosse bela ilha...

Que o mundo não é bom, eu sempre soube,
Mas meus desejos cercam-me de muros
Como falsa fortaleza que me coube.

Então o meu egoismo me envergonha
Pois minhas defesas apresentam muitos furos:
As mágoas que confio à minha fronha...
.
12/06/2016

sábado, 11 de junho de 2016

O Labirinto (de Alma Welt)



O Labirinto (de Alma Welt)

Em sonetos cantarei tudo o que sinto
Até o extremo fim desta jornada
Pois sem eles perco o fio do labirinto
E perdida de mim mesma não sou nada.

No centro o Minotauro espera em breve,
Eu temerosa, ele ardente de luxúria,
E sou eu mesma em minha face espúria
Que devo vencer ou que me leve.

Tal é a saga humana do poeta
Que me coube apesar de ser mulher,
Que filhos não foram minha meta.

Minha obscura saga é só por dentro
Sou a que tudo perde e tudo quer
E morrerei de mim bem no meu centro...

.
11/06/2016

Oração (de Alma Welt)



Oração (de Alma Welt)

Perdoai-me Senhor, a incoerência
Que tanto à hipocrisia se assemelha.
Perdoai-me o meu ferrão de abelha,
Pelo mel, somente, da inocência...

Ao ver a hecatombe da manada,
E nas minúsculas gaiolas de arame
O sacrifício das aves, tão infame,
Eu prometi abstinência, e não fiz nada.

A lógica, Senhor, é um bom começo,
Para evitar o mal já conhecido
E afastar o mal que não conheço.

Mas, Senhor da Lucidez, dai-me bondade
Pois coerência é só tempo perdido
Se a alma não quiser a santidade...


.
11/06/2016

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O Sonho (de Alma Welt)

                                  A fuga de Caim e sua família para o Leste do Éden - Fernand Cormon ( 1845-1924)

O Sonho (de Alma Welt)

Sonhei quando guria ser poeta,
A coisa mais difícil desde então,
Ambição desmedida como meta,
Cujo rol, cabe nos dedos desta mão,

Contém os nomes daqueles mais descrentes
Que nem sabemos na verdade onde estão:
Se no limbo infantil dos inocentes
Ou na terra do exílio, como Adão.

A leste do Éden ainda habitamos
E ostentamos a tal marca de Caim
Sem que nós, afinal, nada devamos,

Mas por simples simpatia de desvio
Ou pelo nosso protesto contra o Fim
Pois o curso eterno é nosso rio...

.
10/06/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Profissão de Fé (de Alma Welt)


Escolhi o antigo culto da beleza,
Mas nada deverei à fútil moda
Que assenta no vazio a realeza
E no falso perene se acomoda.

Creio num eterno inconfundível
Que habita na alma e é comum
A todo ser divino e perecível,
Já que nesse nível somos "um".

Um pequeno verso ou uma linha,
Mistério gráfico ou comezinha imagem
Que na origem já era tua e minha

E se perde na universal memória
Onde nascem os Mitos e a contagem
Do Tempo que embala a nossa história...

.
03/06/2016