terça-feira, 13 de outubro de 2020

Até o Fim (de Alma Welt)

"O que faz essa velha em minha cama?
Não conheço essa senhora, assim velha...
Então corro ao espelho que me ama
E revejo a bela jovem que ele espelha."

O que dizes, meu amigo, "velha amiga"?
As roseiras que diariamente podo
Com seus espinhos propensos à intriga
Não me tratam irreverentes desse modo.

Assim falou a amiga de meu mano,
E eu ria com ligeira dor no peito,
Ao pensar: Será humor ou só insano?

Então corri pra minha cama de dossel
Para ver se havia velha no meu leito,
Se meu espelho ainda era fiel...
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13/10/2020

A Volta ao Jardim (de Alma Welt)

Antes do desjejum, logo soneto,
Por trazer fresca a dimensão do sonho
Que embora conserve um tom bisonho
Nada deve aos erros que cometo.

Mas não se trata do meu mundo falsear,
Ou tentar alardear o que não tenho
Como a compensação de desempenho
Desde aquela expulsão do meu pomar.

Eu fui expulsa, sim, mas bom poeta
Já tinha mordido o fruto mágico
Que era na verdade a minha meta...

Com o "amargo", retorno ao meu Jardim
Tratando de tirar o timbre trágico,
Que daqui veio o melhor que há em mim...
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12/10/2020

domingo, 11 de outubro de 2020

O Bom Deus do Acaso (de Alma Welt)

Eu acordo de manhã sem um roteiro,
Quero como aventureira entrar no dia.
O acaso é meu curioso companheiro
E me ajuda nos trabalhos de poesia.

Curiosidade é também meu elemento,
Mas somente a posteriori é que perscruto
Os sinais semi-ocultos do momento:
Não roubarei de mim meu próprio fruto...

Há quem possa achar-me impertinente
Ao querer me renovar diariamente,
Ou por sem dor e sem suor parir meu pão.

Mas confesso que ao chegar o fim do dia,
Previsível então faço a oração
A Deus, que no Acaso eu mal O via...
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11/10/2020

sábado, 10 de outubro de 2020

Lenda de boêmia (de Alma Welt)

Eu te visito, amigo, e tu me dizes
Que estás nos teus últimos pincéis
E as últimas tintas que ainda alises
Já se vão como foram teus anéis...

Mas ficaram os teus dedos? Te pergunto.
Mas me falas de uma fibromialgia
E eu que com o amigo já ri muito,
Olho as tuas mãos, e me angustia...

Tudo acaba lentamente, lentamente...
Talvez lento de mais pra ser sentido
Pois me pedes que eu jamais lamente.

Mas saio das tuas ruínas de pintor
Com aquela sensação de ter vivido
Uma lenda de boêmia, um velho amor...
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10/10/2020

A gaúcha universal (de Alma Welt)

Vem de perene fonte o meu soneto
Pois do universal brota direto
E nunca de um determinado gueto
Ou mesmo pra agradar grupo seleto.

Muito poucos me acessam, como luxo
Feito para um leitor talvez mais raro.
Meu verso é menos doce, mais "amaro"
Como o mate na cuia do gaúcho.

Gaúcha, sim, mas de cunho universal,
Só pode desfrutar da minha fonte
Quem conhece a vastidão do meu quintal.

E convido a quem vier para esta banda
Bah! Que se sente comigo na varanda,
O olhar "galopeando" no horizonte...
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10/10/2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Conversas com o Anjo (de Alma Welt)

"Dizem, Alma, que já avistaste um anjo
E com ele conversaste de verdade.
Mas perdoe se acaso te constranjo,
Não podes ocultar da humanidade!"

Disse uma senhora aqui na estância
Acompanhada do pároco da aldeia
(conforme me recordo em minha infância)
Por meu pai convidados para a ceia.

Mas respondi com a maior candura,
Olhando as mastigantes bocas cheias:
"O anjo me exigiu que fosse pura

E jamais fofocasse com as tias
Na conversa durante as nossas ceias,
"Que santas devem ser desde o Messias."
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09/10/2020

"Pentimento" (de Alma Welt)

Se não logro o meu soneto da manhã
Meu dia foi perdido, isto é certo.
E se uma comparação feliz acerto,
Foi de um pintor a pincelada vã...

Na pintura há um poético recurso
Que se se denomina "pentimento",
Praticado também no humano curso
Mas com dor que requer esquecimento.

Na tentativa e erro construída
A arquitetura do poema corresponde,
De Babel, à grande torre demolida. 

Eu poderia criar novos universos
(Quantos 'pentimenti" o verso esconde!)
Com a história oculta sob os versos...
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09/10/2020

Diálogo imaginário (de Alma Welt)

Alma, conheceste o mundo e a vida?
Presenciaste, acaso, a dor das gentes?
Ajudaste a parir parturientes,
E deste aos nascituros acolhida?

Não, eu reconheço, ou muito pouco.
Mas não preciso ter visto Jesus Cristo
(que nem sou jamais digna disto)
Para saber de Deus preso num toco.

Longe de mim, blasfêmia ou desrespeito.
E só quis enfatizar os absurdos
Que nos cercam a torto e a direito...

Como poeta, eu sei, grande é minha boca
Mas poesia é também feita para surdos
E nem por isso gesticulo feito louca...
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09/10/2020

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A carta na garrafa (de Alma Welt)

Por quê escreves sonetos aos milhares,
Que mal os dá à luz e logo postas?
Acaso aguardas a garrafa de outros mares
Com uma carta dentro com as respostas?

Escrevo tanto, mas por maior razão:
Para que num momento inesperado
Que deixe o poeta iluminado,
Talvez atinja do soneto a perfeição...

"Mas, por quê?" (na pergunta alguns insistem)
"Não é deste nosso mundo a perfeição:
É orgulho, é vaidade, é pretensão..."

O poeta, do desprezo mal se safa,
Mas no final, quando os anjos o revistem
Encontrarão uma carta na garrafa...
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08/10/2020

A nova expulsão (de Alma Welt)

Meus amigos mascarados, que saudade
Do tempo que mostrávamos nosso rosto;
O nosso vinho da Verdade tinha o mosto
E a Beleza não nos era só metade.

A solidão já existia, é bem verdade,
Mas não era essa sentença capital
Que pesa sobre a nossa humanidade
E não estava na expulsão primordial.

Adão e Eva usaram folhas raras
De uva, em suas belas genitálias,
Mas mostravam altivos suas caras. 

E eu, que da minha face sinto falta,
Alva, lisa, sem remorsos de mais falhas,
Eis-me nua, com a folha bem mais alta...

08/10/2020
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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O Jardim da Complacência (de Alma Welt)

Longe de mim olhar o mundo e a vida
Num sistema de moral ou de valores;
O poeta em mim enxerga as cores
E não julga as formas com que lida. 

Ser poeta é estar em outro diapasão,
E se não for o rei da complacência,
Exerce sua imensa aceitação
No reino profundo da aparência.

Não procures aqui o Bem e o Mal
Mas poderás procurar pela Verdade
Que à Beleza é exatamente igual...

E se ao leres um poema com este fim
Não voltas à maçã ou sua metade,
Não valeu o furto antigo no Jardim...
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07/10/2020

A Quiromante (de Alma Welt)

Uma peona rude aqui da estância
Instou-me a ler nas mãos a sorte sua
Pois me imaginava desde a infância
Como quem preza tal arte ou a cultua.

Logo pensei desmentir tal fantasia
Ou demonstrar seu ledo engano,
Pois se de fato possuo algum arcano
É meu mistério suficiente de Poesia.

Mas diante de um inútil arrazoado,
Lendo palma que quase nada encerra
E onde mal se distinguia o seu traçado,

Uma onda de insólita ternura
Diante da bela e tosca criatura
Me fez beijar suas mãos sujas de terra...
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07/10/2020

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Questão de Métrica (de Alma Welt)

Tem uma hora, bem sei, que em nossa vida
A própria vida entra em desarranjo...
Digo isso até meio constrangida,
Que, confesso, raramente me constranjo...

Tendo perdido o manual e o freio
Da minha alma no meio da ladeira,
Não se tratava mais de brincadeira:
A vida ficou séria e ficou feio...

Disse Deus (que me conhece de sobejo
E colocou-me neste Leito de Procusto):
"Alma, contes doze e assim te rejo"...

Mantendo as doze sílabas a custo
(que do soneto não perdi o meu rigor)
Então clamei: "Valha-me Deus, Nosso Senhor!"
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06/10/2020

Meu encontro com o Anjo rebelde (de Alma Welt)

Porque conheço meu viés de orgulho,
Peço a Deus que a humildade me conceda.
Minha natureza guarda o entulho
Da antiga rebelião mesquinha e leda.

O Anjo rebelde, decaído, apareceu
Aqui na minha estância, e muito belo
Procurou minha aliança e prometeu
Coisas que por pudor eu nem revelo. 

Mas quando o Anjo voltou pra me cobrar
Minha resposta adiada por prudência
Encontrou-me de volta em meu lugar.

Não sou santa, mas com o Demo não me meto
Sou poeta, de seus truques tenho ciência.
Traição? Tenho orgulho e não cometo...
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06/10/2020

Argumentos jurídicos (de Alma Welt)

Deus não nos condenou ao exílio só.
Sabemos bem a nossa pena capital.
A sentença de nos reverter ao pó
Parece louca e desproporcional...

Direito não cursei, e poeta das coxilhas
Sei que muitos estudaram nas Arcadas *
Para depois com o apoio das famílias
Escreverem seus versos de enxurradas.

Mas eis-me aqui a julgar por outro lado,
Ainda revoltada com a sentença,
Nosso juízo final antecipado...

Pois num galho, ao alcance pendurado
(se foi crime, foi demais facilitado),
O fruto, responsável por quem pensa...
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06/10/2020

Nota
*Sei que muitos estudaram nas Arcadas - No final do século XIX e começo do Século XX, era costume os rapazes "de boas famílias" da elite, com vocação literária, principalmente os poetas, estudarem Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, também chamada de "Arcadas " por essa peculiaridade de sua arquitetura.

O passeio da Alma (de Alma Welt)



O passeio da Alma - o/s/t de Guilherme de Faria, 2018, 100x150cm



O passeio da Alma (de Alma Welt)

A criança que eu fui está comigo
E eu passeio com ela de mãos dadas.
Mas supondo que estejamos encantadas
Não nos verás, que por aí não sigo...

Tudo se passa num jardim que cultivei
Com tal esmero dentro da minha alma
Que nisto reside a estranha calma
E este límpido olhar que conservei.

"Ora, Alma" (me dirás), "todos nós temos
A lembrança da criança que já fomos...
Isto é simples demais, e compreendemos."

Mas não! Em mim tudo é concreto e literal,
E o Jardim do pomo que repomos,
Me protegeu até aqui de todo o Mal...
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06/10/2020

Nosso Trem (de Alma Welt)

Desesperada, confesso, às vezes fico
Com o trem da nossa humana condição,
A ponto de eu pensar pedir penico
Ou tentar descer na próxima estação.

Sinto como quem tomou o trem errado
Entre suspeitos e dúbios passageiros
Com os seus sorrisos só de um lado,
Tristes não pela metade, mas inteiros.

Este trem é noturno, certamente,
Mesmo quando viajando sob o sol
E é isso que o deixa deprimente...

Então vem o sinistro bilheteiro
Empertigado como se fosse de escol,
Caronte é seu nome, e foi barqueiro...
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06/10/2020

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O "kit" de Primeira Comunhão (de Alma Welt)

Deus me poupe dessa sensação de nojo
Que o contrário é, bem sei, da compaixão
Que muitos guardamos num estojo
Desde o tempo da "primeira comunhão".

Ainda ontem encontrei-o como um kit,
Com o livrinho de capa nacarada
Num pequeno rosário enroscada,
E com um amarelado... sim, convite.

E folheando vi de novo as imagens
Da Via Crucis do Senhor dos Passos,
Com a minha letrinha pelas margens... 

Então chorei de pena Dele e de mim,
Que ainda guardo talvez os mesmos traços
Da ingênua pecadora... até o fim.
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04/10/2020

Dos deuses caídos (de Alma Welt)

Deus tem sido de tal modo generoso
Que me deixa cultuar menores deuses
Para efeito poético-verboso,
Rindo dos "mistérios" meus, de Elêusis...

ELE me disse: "Tolerei parnasianos
Com seus carros de Apolo (o meu sol)
Mais as luas de Diana... muitos anos,
E as Auroras do meu simples arrebol." 

"Aquele tal de Bilac renomado
Que dizia escutar minhas estrelas,
Fez que Eu quase nem mais quisesse vê-las."

"Agora tu, Alma, me vens com teu capricho
E me pedes retomar o descartado
E tirar esses deusinhos do meu lixo..."
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05/10/2020



A cada verso (de Alma Welt)

O meu mundo interior possui facetas,
Vários modos diferentes de expressão
Tomando às vezes uma épica feição
Outras vezes, só rápidos cometas...

E eu percebo como cresço a cada verso
Como tijolo dia a dia acrescentado
Num templo de meu próprio universo
Ou no meu túmulo, talvez, mais limitado.

E eu me encanto de poder me construir
No território mágico da Alma
Que é o único que pretendo dividir.

Mas se algo mais palpável não divido,
Ambígua entre dádiva e pedido,
Ao bom leitor estendo a minha palma...
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05/10/2020

domingo, 4 de outubro de 2020

O toque de magia (de Alma Welt)

Na verdade, ser inútil eu nunca quis,
Embora saiba que o soneto é um capricho
Que nas artes tem o seu modesto nicho
Conquanto o centro da minha vida dele fiz.

O que me vai no peito com ele digo
O que não pode ser dito de outra forma
E que de modo mágico transforma
Em realeza o trapo do mendigo...

Entretanto já aqui nas cercanias
Uns me apontam o dedo em derrisão
E me retiram as derradeiras companhias.

Mas, ai! Temo que o toque de magia
Que existe no soneto em minha mão,
Me fez suspeita do mal de bruxaria...
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04/10/2020

A luta (de Alma Welt)

Uma luta intermitente co'a tristeza
Da qual saio vitoriosa, e até feliz,
Bem... não sei vocês (como se diz),
A mim, bem me descreve, com certeza.

Ninguém mais suporta choradeira.
Aquela mesma, da dor de cotovelo,
Ou de quem ao subir desce a ladeira,
E que de um certo "kitsch" tem o apelo.

Já não tenho mais a nota dominante
De um romantismo tardio e lacrimoso
De um século cada dia mais distante...

Mas, ai! de repente vem um engulho
Que me sobe do íntimo orgulhoso,
Trazendo aquela sombra em que mergulho...
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04/10/2020

Queixa (de Alma Welt)

Uma das coisas mais tristes que concebo
É a solidão de um ser não compreendido,
E com frequência isto em mim percebo,
Conquanto o que sou tenha escolhido...

O soneto é a minha forma de pensar,
E talvez tenha escolhido um labirinto
De que as pessoas têm medo por instinto
E evitam, com razão, se aventurar. 

Meu encanto da cadência musical
E da rimas, quem sabe insuficiente
Para lograr um grande quorum natural,

Me fazem uma Ariadne sem fio
Depois do labirinto o expediente,
Abandonada por Teseu e seu navio...
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04/10/2020

sábado, 3 de outubro de 2020

Ariadne, Ícaro (de Alma Welt)

No labirinto de mim, mas não perdida,
Mas atada a este fio condutor meu,
Deixei lá fora o meu próprio Teseu,
Tendo invertido os polos da partida. 

E tateio, não no escuro (tocha tenho),
As úmidas parentes da memória,
Apenas refazendo o fio da história,
Que por meu Minotauro jamais venho...

Como passar pelas câmaras secretas,
Os atalhos e desvios de percurso
Com esta mesma dor de antigas setas?

Uma alegria me resguarda o curso:
Mantida a duras penas a auto-estima,
Como asas com que irei sair por cima...
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02/10/2020

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O voo para trás (de Alma Welt)

Vivi sempre gravitando a minha casa
E nesse item não sou nada original.
Se a casa paterna me deu asa,
Orbito presa a um cordão umbilical.

Li num livro de animais imaginários
Que existe a ave que só voa para trás,
Porque a ela, entre mil itinerários,
Só interessa onde seu ninho mesmo jaz.

Se no meu próprio pomar colhi o fruto,
De um desconto desde então desfruto,
Pois do pecado original já condenada.

Mas malgrado tal primordial desfeita,
Permaneço sob a égide perfeita
De uma infância magnífica e dourada...
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02/10/2020

A carruagem ( de Alma Welt)

Nossas novas propostas são irrisórias
Ante a fatalidade do destino;
Ainda valem as tolas promissórias
Que assinamos, enganados, de menino. 

Fomos enganados? Podes crer...
O destino vem com juros nos cobrar
Suas dádivas a nós dadas ao nascer,
Quando já não conseguimos negociar.

Sobram só as dores e as memórias.
Pelo menos alguma coisa sobra:
Para a nossa faxineira, as histórias...

A ver navios em secos e molhados
Ficamos nós, velhinhos enrugados,
E a carruagem, sim, era uma abóbora... 

.
 
02/10/2020

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Minhas noites (de Alma Welt)

Minhas noites são plenas de mistérios...
Mas de quem, acaso, as noites não o são?
De sonhos feitos para a invocação
De mundos sob bem outros critérios...

Entro na noite, esse mar desconhecido,
Solene, com a postura de uma amante
Sob a égide fugaz de um tempo ido,
Que a saudade é a nota dominante...

Sei que não falo por todos, nestes versos.
Pois quem dorme como rito e não atalho
Tendo que ir de manhã para o trabalho?

Só comungo com aqueles que, ociosos,
Longe dos mundanos temas tergiversos,
Acendem velas aos deuses silenciosos...
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01/10/20200



Paolo e Francesca (de Alma Welt)

Se não olhas teu amor como sagrado,
Não estás diante do amor, isso é certo,
Se por dentro não estás prostrado
Quando o miras, tremendo, mais de perto...

Ora, Alma, estás sempre no limite;
És radical demais no amor, isso é paixão!
Não recomendes aos outros e até evite
Pra ti mesma esse horrível turbilhão.

Mas me lembro do Paolo e da Francesca
Que lançados no eterno minuano
Não ficaram enganchados numa cerca...

Eternamente abraçados, como viste,
A voar sobre este pampa, todo o ano,
O seu destino não me parece triste...
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01/10/2020
Nota
Paolo e Francesca - De maneira muito original e graciosa, a gaúcha Alma Welt incorpora ao seu pampa gaúcho com seu famoso vento minuano, neste soneto, a história real de Paolo e Francesca da Rimini, da Idade Média italiana, na cidade de Rimini, que revelada ao mundo de maneira magistral no segundo círculo do Inferno na Divina Comédia de Dante Alighieri, quando este na sua jornada subterrânea guiado pelo poeta romano Virgílio, avista o casal famoso enlaçado num abraço sem pouso no "turbilhão eterno". De algum modo Dante consegue uma pausa naquele voo do casal, para ela, Francesca, narrar a sua trágica morte atravessada com seu amante secreto Paolo Malatesta, pelo mesmo golpe de espada de outro rival Malatesta, Giovanni (Gianciotto, mais velho deformado e feio), quando flagrados em conluio amoroso. Dante os colocou no Inferno no "bolge" dos amantes clandestinos, condenados ao turbilhão. O curioso no poema dantesco é que Dante fica tão emocionado com a narrativa da tragédia feita pela própria protagonista, que desmaia e o episódio termina como o verso: "E cade como corpo morto cade." (E caí como corpo morto cai.)
Um curiosidade: a cidade de Rimini ainda veria o nascimento do grande cineasta Federico Fellini. Ele e Francesca são os mais ilustres nativos daquela cidade.


quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Dos Mundos (de Alma Welt)

Sim, há infinitos mundos nesta vida
Pois Deus nos dá um "modo" alternativo
Já que criou o destino do ser vivo,
E podemos escolher uma saída...

É verdade que às vezes nosso escape
Corresponde ao simples "modo" covardia
De que lançamos mão no dia dia
Ou diante da pistola ou do tacape... 

Quanto a mim, refugiei-me na Poesia
O que pra uns é outro lado da euforia,
E pra outros uma espécie de ilusão.

Mas se soubesse o que há de solidão
No pobre ser que a beleza ama e cria,
O mundo ainda mais sós nos deixaria...
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30/09/2020

Eu, Anima Mundi (de Alma Welt)

Ainda criança, em casa, eu intuía
Que havia livros misteriosos e secretos ,
Nas estantes, que meu pai não proibia,
Mas que não imaginava em meus projetos.

E do leito, assim, de noite levantava
E como sombra furtiva, pé ante pé
Até o escritório eu caminhava
Com uma vela na mão, tremendo até...

E então horas ficava, insone e atenta,
Virando páginas de um grande volume
De artes obscuras, de outro lume...

E delirando não mais que de costume,
Eis que vejo um rosto que me alenta:
"Anima Mundi", eu mesma era meu nume...
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29/09/2020








terça-feira, 29 de setembro de 2020

O mundo que eu herdei (de Alma Welt)

Há um certo teor de insanidade
Latente ou aflorada neste mundo
Que meu pai me fez ver em tenra idade
Ao menos como um pano de fundo.

Mas ríamos! Como junto a gente ria
Com a insensatez da humanidade
Cuja História nesta clave perfaria
Cem volumes, e mais um só da Maldade...

Já não era engraçado, era demais...
De ficar triste, de repente ameacei,
Senti vergonha de ser gente e tudo mais...

Então meu pai que aquilo percebeu,
Disse: Alma, este mundo que eu amei,
Sim, herdarás, mas só não sinta como teu...
.
29/09/2020


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A Beleza (de Alma Welt)

Exige um certo esforço, reconheço,
Em se viver em verdade e em beleza,
Mesmo tendo a favor sua natureza
E uns preciosos dons que vêm de berço.

Entretanto a beleza é duradoura
Pois se escora num olhar universal;
Seu mistério vem de modo natural
E não como quem o chumbo doura.

Resumindo: a beleza é uma virtude
Que implica numa alma quase pura
E que não seja só pura atitude.

Mas da carne uma sutil sabedoria:
No arremedo é que a beleza dura,
Ouro puro, tinta, mármore, poesia...
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28/09/2020

"Noblesse oblige" ou "A princesa das potrancas" (de Alma Welt)

Meu propósito é enaltecer a Vida
Mesmo que não possa defini-la,
Muito menos desprezar sua acolhida
Já que nunca me pôs no fim da fila. 

Sempre soube perceber meus privilégios:
Nascida muito bela e na abastança,
Aceitei com humildade os tratos régios
Que me cercaram, pois, desde criança.

Assim, recusei fechar as trancas,
Apelidada de "princesa das potrancas"
Na escolinha rural em que me vi.

E a manter-me no alto das tamancas,
"Noblesse oblige" bem cedo aprendi,
Quando estreitas ainda as minhas ancas...
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28/09/2020

De amor-e-ódio (de Alma Welt)

Do amor em mim jamais descuidarei
Mas dirigido somente a quem merece.
Se desprezar não sei, amar não saberei,
Mas amor com outras fibras se entretece...

Pois há de amor um certo tipo estranho,
Que, pasmem, com o ódio se combina
O que quase toda a lógica elimina
E que por soma aumenta de tamanho.

É este que se torna logo um monstro
Que chega a dar inveja ao puro ódio,
O que só ao citá-lo, já o demonstro.

Pois no centro mais alto de algum pódio
Dos paradoxos, está este vencedor
Que só por doping vence o puro amor.


28/09/2020

O Oráculo (de Alma Welt)

O soneto é minha maneira de pensar,
E digna de crédito é a única,
Pois daquilo que não posso nem rimar
Não vestirei camisa, nem a túnica.

O verso descobre as realidades
Que ficam encobertas de outro modo.
É como uma consulta às deidades
Sobre o que mantenho e o que podo.

Uma espécie de oráculo de Apolo
Ao qual apelo todo dia de manhã
Quando desço do sonho para o solo.

Por processo puro e próprio da poesia,
Refaço a teia que se viu tornada vã,
Ao lançar os versos meus de cada dia...
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28/09/2020

domingo, 27 de setembro de 2020

Os ventríloquos (de Alma Welt)

Os poetas são ventríloquos de Deus,
E portanto levemente caricatos.
Os bonecos sem os belos traços Seus
Fazem-nos rir até nos entreatos.

Alma, é blasfêmia o que tu dizes:
Descreves Deus como cômico de feiras
A divertir o povo com os deslizes,
De Sua própria criatura... as besteiras?

Demasiado humano! Apaguem tudo!
O humor de Deus é surdo mudo:
Nunca pude na verdade compreendê-lo.

Bonecos de Deus, por Seus conselhos
Conservamos entretanto o mesmo selo
De quando nos tirou de Seus joelhos...
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27/09/2020

Sem instruções (de Alma Welt)

Viver é uma aventura temerária,
Mais arriscado do que isso nada é.
E não precisas ser o rei da área,
Podes mesmo estar andando a pé

Que haverá quem de ti inveja tenha
E só queira vislumbrar a tua caveira
Ou que pra tua fogueira traga lenha
Como uma Sancta Simplicitas de feira. *

Mas não quero, na verdade, te alarmar
Recebemos a nossa cruz portátil
Sem instruções para abrir e para armar.

Estamos todos, afinal, no mesmo barco,
Nossa rota continua a ser volátil
Mas o farol de Deus é o nosso marco...
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27/09/2020

Nota
Sancta Simplicitas - Santa Simplicidade! (ou Santa Ignorância), foi a exclamação de John Huss (dissidente suíço da Igreja condenado pela Inquisição) quando amarrado ao poste de cremação em praça pública, viu no meio do povo uma velhinha arcada sobre um feixe de lenha para vir colocar na sua fogueira (!!!).



O Sísifo e a noz ( de Alma Welt)

Reerguer o mundo a cada dia
Eis a missão do Sísifo em nós
Que de suplício, só, não chamaria
Já que o mundo também é casca de noz.

Na verdade estamos nele encerrados,
Como o pequeno cérebro das nozes;
Nossos crânios, uma vez esfacelados
Sabemos de onde vêm as nossas vozes.

Pequenina encarando os Universos,
Quase tão atrevida quanto Ulisses
A quem gregos dedicaram tantos versos,

No meu pequeno berço navegante,
Ó Deus, me permitindo ir adiante
Só queria que assim também me visses...
.
27/09]2020

sábado, 26 de setembro de 2020

Visitas à minha tia (de Alma Welt)

"Pela janela, não adianta olhar a vida.
Veja as senhorinhas "janelando"
Com os cotovelos engrossando,
De aparência, assim, meio encardida..."

Dizia a nossa tia em Novo Hamburgo
Ou quando íamos com ela a Alegrete
E comíamos delicioso capeletti
Num molho de tomate, sim, "al sugo".

A gente se esbaldava e divertia
Com aquelas tiradas da minha tia
Quase esquecendo ela ser jovem e bela.

Mas meu pai é que fazia questão dela,
De nos levar para ver sua cunhada
De dois lindos cotovelos, como fada...
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26/09/2020

Conselho de amor (de Alma Welt)

Por que não cantas teu amor, ó Alma triste?
Não te cansas de tanto arrazoado?
Escreves sobre a vida um tratado
E esqueces do teu pássaro o alpiste...

Nas coisas pequeninas está o amor;
É ele que embeleza o comezinho
Do nosso dia a dia, como a flor
Num vazo de lata "leite Ninho"...

Vá passear no parque de mãos dadas
Para veres as crianças ocupadas
Em brincar de um mundo ainda mais vivo...

Se a flor secar, não tem mais jeito:
Poderás trocar a água sem proveito,
Não a porás entre as páginas de um livro...
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26/09/2020

A Exceção (de Alma Welt)

"Do nosso olhar, no seu ponto focal
Um deslocamento, assim, pequeno,
Já muda tudo, e passa a ser fatal
O que seria apenas morno e ameno."

"Nosso ponto de vista é tão sensível
Que até mesmo a flor do amor-perfeito
Se transforma e se revela horrível
Como um caleidoscópio com defeito."

"É preciso uma tendência da visão
Para um enfoque, assim, intencionado,
Que embeleze as feições do ser amado."

Do que estás falando, ó alma louca?
Tais manobras são apenas a exceção:
O amor é cego e até dorme de touca!
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26/09/2020

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

O Pente Fino (de Alma Welt)

O sentido da beleza é um consolo...
Eu diria muito mais: é um presente
A nós dado pelo pai, ao homem tolo
Que grita, esbraveja e se ressente.

Como podemos deixar de agradecer,
Assim cercados por essa natureza
Que se esmera em brotar e florescer
E que ainda nos põe o pão na mesa?

Mas não! Temos que sempre reclamar...
"Bom cabrito não berra", disse alguém
Para um outro que não pára de chorar.

Seja homem, enfrenta o teu destino!
Tens um Pai severo, tudo bem...
Então procures passar no pente fino.
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25/09/2020

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quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Ressentimentos (de Alma Welt)

Penso que Deus levou a mal nossa Babel,
Destruindo e trazendo a algaravia,
Pois só queríamos chegar perto do Céu,
Mais junto Dele, que não nos permitia...

Ele já tinha do Jardim nos expulsado
Por uma simples intriga da serpente.
Sem ao menos ouvir o nosso lado
Nos jogou na rua nus e de repente...

Depois Ele os nossos filhos instigou,
Os dois, um contra o outro, por fumaças
Que escolhidas, um morreu, outro matou.

Depois tome Dilúvio, chuva e enchente;
Por mais uma das Celestiais pirraças
Salvamos ratos, mosquitos e... a serpente.
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24/09/2020

A Argamassa (de Alma Welt)

O que em poesia não puder ser dito
Já não o poderá ser por outro meio;
O inefável não pertence ao Mito
Mas a Deus, e Dele mesmo cheio. 

Não haverá linguagem mais capaz,
Que da torre de Babel foi outra via
Quando um raio fulminou o capataz
E ninguém mais falando se entendia.

Foi quando um operário mais esperto
Começou a divagar como quem canta,
Que da fala de Deus chegava perto...

E então a Torre mais alto já subia,
Com a liga que ao Arquiteto encanta
Permitindo a argamassa da Poesia...
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24/09/2020

O Contrato (de Alma Welt)

"Como posso preservar meu pensamento?"
E meu pai respondeu-me de imediato:
"Minha filha isso depende do contrato
Que firmaste com Deus nalgum momento".

"O contrato que de dá a prosa e o verso 
Te foi assegurado nas maiúsculas,
Só não leste as cláusulas minúsculas
Que são do trato o lado mais perverso:

A solidão por companheira, só, terás,
Pois como arauto serás quase invisível,
Apenas voz de algo maior que há por trás.

E tudo que contares de ti mesma
Será um mero encanto, intransferível
Como o rastro prateado de uma lesma..."
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24/09/2020

 Nota 
 Um segundo quarteto alternativo seria este, descartado:

"Se queres expressá-lo um pouco acima
Das palavras que estão no teu estoque,
Use o verso, a métrica e a rima,
Mas poesia é carro-chefe, não reboque."

 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A Trajetória (de Alma Welt)

A maioria de nós já vem zerada...
Uns vêm tocando Mozart ao piano,
Mas são tão poucos no meio da manada
Que só anjos formariam tal arcano...

Temos que aprender desde os começos
Passando pelo estágio das cavernas
E através de inúmeros tropeços
Beber da água pura das cisternas...

Só aos poucos chegar a estar na moda
Tendo saltado na verdade alguns degraus
Sem ao menos ter inventado a roda.

E então quando quase lá chegamos,
Tendo vivido com os bons e com os maus,
Diante da Morte trememos e choramos...
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23/09/2020

O Retorno (de Alma Welt)

Pensando bem, não se trata de outra lida.
Se trata, sim, de voltar pra nossa casa
Após nossa jornada, mesmo rasa,
Pois somos todos desterrados de saída...

Há quem possa discordar de tal conceito
Desprezando a ideia do Retorno.
Quanto a mim dela tirei muito proveito
Pra não chegar, assim, olhando em torno...

Como tolos filhos pródigos que somos,
Vagamos nossa teimosia reincidente,
Roubando e devorando novos pomos.

Mas creio, sim, que o Pai já acalmado
Abrirá pra nós os braços, de contente,
Aos anjos ordenando grande assado...
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22/09/2020






terça-feira, 22 de setembro de 2020

Meu Castelo (de Alma Welt)

Cada verso é a surpresa matinal
Que antes mesmo de tomar o meu café,
No papel de modo antigo, ou digital,
No ar eu lanço como profissão de fé.

"És doida, Alma, ninguém mais isso faz!
O soneto é uma coisa muito antiga...
Se o velas, a velhice é que verás
Bem antes da primeira ruga amiga."

Assim, todos, mais ou menos, me diziam,
Esses bem intencionados que me viam
Contando sílabas, cinco em cada mão...

Mas eu, que meu próprio céu constelo,
Continuo construindo o meu castelo
Todo de cartas, feito pra que vá ao chão...

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22/09/2020

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O Factotum (de Alma Welt)

O poeta em mim é um compassivo
Aplicando-me um respiro boca a boca,
Ou então um analista, que passivo,
Consegue evitar que eu fique louca;

É um piromaníaco que é bombeiro
Que pra mostrar serviço o fogo ateia,
E entra nele de alma e corpo inteiro,
Que uma vez apagado se chateia...

É um cobrador de dívidas ferrenho,
Aquelas, enterradas, do passado,
Que ressuscita e cobra entusiasmado.

Será, por fim, o funerário agente
Que colocará talento e engenho
Maquiando o meu cadáver sorridente...

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21/09/2020

O Topo (de Alma Welt)

Nunca eu quis ser mais do que um poeta,
Que ambição mais alta não concebo
Da montanha no topo é que se espeta
A bandeira, e não num pau de sebo.

Perguntaram-me uma vez, pra meu espanto,
Qual status era o mais ambicioso,
Se o era o general todo garboso
Ou do Juiz o corvino e negro manto...

Mas logo transformava a tal questão
Em saber qual era, pois, a grande meta,
Na escala da alma nua o coração...

O aventureiro escalador era o poeta,
Mas o Santo, ele mesmo uma poesia,
Bem no alto da montanha já vivia...

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21/09/2020

domingo, 20 de setembro de 2020

Prece 45 (de Alma Welt)

Que eu não precise ser salva de mim mesma
Por meu louco entusiasmo pela vida,
Ou, ao contrário, por estar tão deprimida
Parecendo de mim meu abantesma;

Que a minha sobriedade sobreviva
Ao desafio da solidão ou tédio;
Que do amor o desencanto jamais sirva
De pretexto para eu pular do prédio;

Que nunca me envergonhe da bondade
De um momento frágil de pieguice
Que me faça perder a acuidade...

E se esta prece vos digneis ouvir,
Senhor, peço-vos, poupai-me da velhice
Que me daria isso tudo sem pedir...

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20/09/2020

sábado, 19 de setembro de 2020

Epopeias (de Alma Welt)

Minhas Termópilas lutei dentro de mim,
Que tive também dentro os meus "trezentos".
Batalhas dessas que geram monumentos
Mas que na alma humana não têm fim.

Também minha Odisséia é desfiada
Pelas noites como teia de rainha
Quando lembro os percalços da jornada
E desfaço mais um ponto desta linha.

Tendo a inclinação de ouvir sereias,
Já que limpo qualquer cera de ouvido.
Saberás o que disseram, se me leias.

Mas de Troia fui de mim o meu cavalo,
Meu presente de grego introduzido
Nestes muros que no coração abalo...

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19/09/2020

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Nós, nossa história... (de Alma Welt)

Nossa história, um romance, é o que somos;
Um capítulo escrevemos cada dia,
Logo precisamos de dois tomos.
Quanto a mim, já me vejo em trilogia.

Aquele que assim não se percebe
É árido, infrutífero, vazio...
Quem sua vida em livro não concebe,
Só verá de si a poça e não o rio.

Quantas vezes, relendo a minha saga
Me sinto heroína, com direito,
Ou no mínimo faço um bom proveito

Pois há partes impagáveis: não se paga,
Picaresca que me vejo, bem me olhando...
Como é bom poder dormir de mim zombando!

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18/09/2020

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O como, não oquê (de Alma Welt)

Quando vejo uma pintura entro nela;
Pode ser, como se diz, pintura pura.
É somente essencial que seja bela,
E me refiro às cores e à fatura.

Não é nem preciso ser uma paisagem,
"Ritratto di famiglia in un interno",
Ou Adão com a maçã vestindo terno *,
Ou de um apocalipse a voragem.

O olho sabe bem o que ele vê
Distingue o bom piloto do pedestre
E é um crítico que julga sem maldade.

O importante é o como e não oquê.
Preciso estar nas tintas à vontade,
Levada pelas mãos de um vero mestre...

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17/09/2020

Notas
*Ritratto di famiglia in un interno - denominação técnica italiana de um certo tipo de pintura de gênero muito colecionável a julgar pelo maravilhoso último filme de Luchino Visconti que leva esse título (com Burt Lancater no papel principal.)

* Adão com a maçã vestindo terno - a Alma se refere talvez a um tema recorrentes nos quadros de René Magritte, que ela assim curiosamente interpretou...

A Intérprete (de Alma Welt)

O real requer que o interpretemos.
Como água de fonte nada é claro,
Um véu de dubiedade é o que temos,
E por não saber pagamos caro...

A Poesia é o necessário tradutor,
Não é ela que devemos traduzir
Se nos parece difícil decompor
Seus signos, para então a inteligir.

De nada adianta analisar a Arte
Porque ela, sim, é o analista,
E a temos à mão em toda parte.

Entregue-se, somente, a essa mestra
Que te dará a necessária pista...
Um verso vale mais que uma palestra.

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17/09/2020

Na grande "masquerade" (de Alma Welt)

Neste baile os horrores são demais
Quando a face do Amor está ausente,
Mas isso é impossível, felizmente,
Já que a máscara do Amor é eficaz.

O amor veste e se insinua diferente
Na grande "masquerade" universal
E se desvela mais ou menos no final
Quando a festa está ficando quente.

Estive nessa festa e, pois, vi tudo.
O Amor encantava toda gente
Com aquela cabeleira e o veludo.

Mas quiseram expulsá-lo na metade
Pois foi considerado inconveniente:
Sua máscara era o rosto da Verdade...

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17/09/2020

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A Manhã, o Dia e a Noite (de Alma Welt)

Quando me encontro aqui na estância,
Neste pampa que me é começo e fim,
Onde de manhã estou na infância
E no poente já estou plena de mim,

As estrelas que então soam um tric-trac,
Não posso entendê-las ao ouvi-las,
Que nada me pareço com Bilac
E do tal Parnaso evito as filas...

Mas como sonho à noite, acordada,
E viajo nela a dentro pelos mundos
Que se vão de mim na madrugada!

E então recomeço com a Aurora
Que emerge dos nossos submundos
Como virgem que, intocada, ainda cora...
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16/09/2020

A dor e o peso (de Alma Welt)

O terrível da vida é o agravamento
De todos os erros do passado
Mas transformados em tormento
De aparente nova face, disfarçado.

Na há paz na velhice quando erramos
Naquela nossa soberba juventude,
Erros graves que por vezes nem notamos.
Pensando estar vivendo em plenitude.

Longe de mim detratar nossa velhice
Com a sua experiência acumulada
E um pouco de ternura sem pieguice.

Mas quando o corpo, finalmente, todo dói,
Nunca nossa dor nasce do nada,
Mas da culpa inconsciente que o corrói.

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16/09/2020

O Prelúdio (de Alma Welt)

Os amigos que a gente nunca via
Mas confortava-nos sabe-los por aí,
Todos vivinhos e cuidando bem de si
Como também aquela nossa velha tia...

Todos foram se calando na distância
E o mundo foi ficando mais vazio
Pois até dos mais presentes a constância
Baixava lenta como seca um rio.

Sabemos que a Morte nos vigia
E parece deixar-nos para o fim,
Sim, por último de todos, Mamma mia!

Eis que a solidão é seu prelúdio,
Justo ela que tinha o meu repúdio,
Ou era só pano de fundo para mim...

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16/09/2020

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Ditados e guardados (de Alma Welt)

Quando tudo deu errado, não adianta
"Chorares pelo leite derramado"
"Ou trocares o almoço pela janta",
Se a tua fome passas a melado. *

Não adianta desvestir sequer o santo
Para vestir o peladinho ao lado. *
Apenas podes tentar comprar fiado
No armazém ao qual já deves tanto.

Das avós essa era toda a sapiência,
E eu me divertia com os ditados
Que apenas ensinavam paciência.

Guardo muita saudade da minha avó,
Que, me lembro, mantinha em seus guardados
Lindo frasquinho com o meu avô em pó...

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15/09/2020

sábado, 12 de setembro de 2020

A fé (de Alma Welt)

Nascemos sob o signo da esperança.
Eis porquê nos vem sempre essa certeza
De que o sol renascerá como criança
E depois morrerá em mais beleza...

Esperaríamos na Noite sem fiança,
Depois do nosso primeiro anoitecer
Que nos voltasse a luz do alvorecer
Se a fé não fosse nossa herança?

A vida toda vivemos sem seguro,
O qual morreu de velho, não no berço,
Mas o sol... este é firme e não dá furo.

Mas tudo é baseado no palpite,
"Pois da missa não sabemos nem um terço".
O sentido? Esse... Deus não nos permite.

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12/09/2020

O Degrau (de Alma Welt)

Não me venham dizer o que disseram
Até mesmo o que a mim respeita ou tange.
Prefiro os elogios que fizeram
Mesmo quando falsidade neles manje...

Por quê? Porque sei que a hipocrisia,
A homenagem à virtude, pelo vício, *
Embora não me traga benefício
É pro ego ferido, anestesia...

Melhor que a mesquinhez do diz-que-disse
É o engano de não conter o mal
Se o propósito a respeito o acompanha:

Queria que minha alma se cumprisse,
Sim, ainda que não fosse por façanha
Mas somente por subir um só degrau...

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12/09/2020

Nota
* Porque sei que a hipocrisia,
A homenagem à virtude, pelo vício - menção à frase famosa de François de La Rochefoucauld (1613–1680) : "Hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude."

Sob o Olhar da Sacada (de Alma Welt)

Que fosse a vida uma forma de rezar
E rezar fosse somente agradecer,
Estivesse eu na sorte ou no azar,
E a alma num perpétuo vir-a-ser...

De mim mesma esperei com minha força
Fazer deste propósito a verdade,
Combinando paciência e sobriedade
Dissolvidas na ternura de uma corsa.

Na verdade, não logrei sair da ideia,
Pois a minha natureza rebelada
Contava com os aplausos da platéia...

Entre a aprovação dos meus iguais
E o Olhar lá de cima da sacada,
Fraquejei pensando ser forte demais...

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12/09/2020

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O Cisne (de Alma Welt)

Da Infância os risos cristalinos
Já me chegam aos ouvidos, amiúde,
E, talvez, entre eles todos, os mais finos,
São os meus, que os conservei enquanto pude.

Esta saudade que guardo da pureza
Me conserva em grande parte a limpidez
Apesar dos efeitos da incerteza,
Das mágoas e da pura insensatez.

Se uma sombra a nossa alma tisne
(já que a pobre era perfeita quando veio)
Tenderá a ofuscar o nosso cisne.

Um mau moinho mais as mágoas moem...
Quanto a mim que não fui patinho feio,
Tenho lembranças tão felizes que me doem.

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11/09/2020

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

El forastero (de Alma Welt)

Muito falei dos meus pobres descaminhos
Que tendo a julgar grandes por soberba
E fazer deles jornada entre os espinhos
Pra tornar a narrativa mais acerba.

Na verdade não passo de uma prenda
Deste pampa, mas um tanto desviada,
Que, por rebelde, não quis seguir a senda
E então se recusou se ver casada.

"Pero, ès sola?"- diz o "gaucho" forasteiro,
"Yo escuché los ecos de una saga
Y monté mi cavallo el día entero."

Mas não sei por quê, ao defrontar-me,
A chama do "gaucho" não se apaga,
Mas amansa sem que eu precise dar-me...

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10/09/2020

"No meio do caminho da minha vida" (de Alma Welt)

Então me vi trilhando em falsa senda
Que a rigor não era em selva escura,
Mas, sim aqui, neste pampa de planura
Onde eu já criara a minha lenda.

Diziam os gaúchos: "Ela é a Alma,
Ela sabe de si, de seus momentos;
A coxilha a embala, dê a palma
E a deixe ao sabor dos quatro ventos".

Então clamei, braços abertos, de aflição:
"Nada sei, amigos, peonada... na verdade
Estou perdida como o pobre do tal cão..."

Mas lembrando que o cãozinho Querubim,
Caiu do carroção em tenra idade,
Fiquei mais triste pelo pobre que por mim...

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10/09/2020

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

De puro coração (de Alma Welt)

"El sueño de la razón produces monstruos" ( Goya)

Para mim um mundo só seria pouco,
Foi preciso estar em duas dimensões:
A real, que é um inútil sonho louco,
E a outra, onde moram os corações.

Na que o mundo considera verdadeira,
Perdemos nosso tempo em ninharias,
Olhar TV a caminhar na esteira,
E imaginar menus de iguarias...

A vida real foi sempre tão mesquinha
Que até mesmo cobrimos a nossa face
Como se o supérfluo ali restasse...

Então fujo para o sonho da razão,
À reserva que a alma já retinha,
Não de monstros, mas do puro coração...

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09/09/2020

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Profissão de fé (de Alma Welt)

Esta delícia imensa me foi dada:
Sentar-me para o sonetar do dia
Ou fazê-lo de pé em caminhada
No exercício diário de poesia...

Sim, porque não posso imaginar
A vida se não trocada em versos
Para bela e razoável se tornar
Entre os seus mil insanos universos.

Do "bom dia, boa noite, como vai?"
Ou de só trocar um "oi" no elevador,
Não quereria viver no prosaísmo...

Mas até disso algum poema sai
Já que acabo de fazê-lo (e indolor),
Quando o pomo refaz o Paraíso...
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07/09/2020





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O soneto (de Alma Welt)

O soneto tem pouquíssimos leitores
Apenas um em um milhão, se tanto;
Apenas rivaliza com o "esperanto"
Que não tem por certo tais rigores...

No meu caso doze sílabas no verso
Rimada duas a duas livremente,
Formando pares ou alternadamente
Seu início na História é controverso.

Mas o essencial é a cadência
Que não deve jamais ser sincopada
Do contrário ir direto pra privada,

Mas que a chave também seja de ouro
Pois o que se espera é excelência
Como a vida, pra evitar o sumidouro...

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07/09/2020

Consolo para quem tudo tem (de Alma Welt)

De céu azul, cheia de sol uma manhã
Torna fútil nossas queixas e reclamos
E de pronto fica claro o quanto é vã
Nossa ciência em seus múltiplos ramos.

Nada mais precisamos para o dia
A não ser um bom café, pão e omelete
E apenas a dose de harmonia
Pra combinarmos quem vai pagar o frete.

Separar o essencial da abastança
É o generoso dom deste céu claro
Que se dá de repente sem cobrança.

Mas se nada tens, com isto paro,
Não tenho para ti nenhum consolo,
Dourado o sol, seria ouro de tolo...

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07/09/2020

domingo, 6 de setembro de 2020

Poemas de amor (de Alma Welt)

Para mim só escrever foi sempre tudo
Não me posso imaginar sem meus cadernos
Onde lanço meus sonetos, às vezes ternos,
A maioria de teor mais cabeludo.

De amor, poemas quase sempre evito
Como preconizava o grande Rilke,
Pois a montanha é mais alta quando a fito
E no topo a bandeira quer que eu finque...

"Mas o que é mais alto que o amor, me diz?
Tudo o mais é mero voo de perdiz..."
Me pergunta alguém que só imagino,

Pois na verdade não me perguntam nada,
A solidão é um sincronismo muito fino
E o amor eu encontrei ao pé da escada...

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06/09/2020

Napoleão de minha parte (de Alma Welt)

Que desmesurados sonhos nós tivemos!
Pequenos napoleões sem Santa Helena,
O dia a dia não nos valia a pena
Mas fizemos quase tudo que pudemos.

Menos, é claro, voltar com passo trôpego,
Mas como em Elba para mera temporada,
Ao lar paterno, sim, pra novo fôlego
Que por nós Waterloo seria vingada.

Mas com os amigos fui conferir pavios
Destes mesmos sonhos desmedidos
E acabei sozinha a ver navios...

Ninguém por mim no fogo pôs a mão,
Todos deram pra mim seus desmentidos,
Fui só eu mesma a brincar de Napoleão...

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06/09/2020

Palavras de uma Sombra (de Alma Welt)

Te alcançará a Vida um dia, Alma,
Em sua face de dura vingadora,
E não poderás senão lhe dar a palma
Pois do castigo serás merecedora.

Brincaste com a dor, fizeste planos
Para viver sem rumo ao Deus dará;
Viveste até de brisa muitos anos
Ou como andarilha, sim, Loba-Guará.

Contaste com a Beleza e tua graça
E devo admitir, também talento,
Mas não foi este que te deu o alimento,

Aceitaste o alheio pão como devido:
Parecias não saber que tudo passa
E jamais se viu o Tempo comovido...

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06/9/2020

sábado, 5 de setembro de 2020

Romeu e Julieta (de Alma Welt)

Romeu clamou ser o "bobo da fortuna"
Que ao coringa no baralho se equivale
E que é manipulado ou nada vale
Ou que a nada de feliz se coaduna.

"As desafio, ó estrelas!", gritou ele,
Pobre jovem alma em desespero,
Remexido o amor em seu vespeiro,
Que sistema de desastres foi o dele!...

Temos do outro lado uma ninfeta
Avant-la-lettre (o conceito não havia)
Era pura e tão somente uma Julieta.

Como amaram, sem saber que não se pode!
Amar assim é só coisa de poesia
Ou presente de Pandora quando explode...

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05/08/2020

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Sempre Doze (de Alma Welt)

Quem passar por aqui meio ao acaso
Me verá contando sílabas nos dedos,
Doze sempre, mesmo, sem atraso
Como as badaladas, mas sem medos.

Tudo é doze em minha vida alexandrina
E gosto de rimar como os antigos
Dois a dois em versos como amigos
E não como Israel e Palestina.

"Nessa dodecafonia sem parar
És absurda, Alma, e anacrônica,
Para somente uma dúzia reparar..."

Respondo: cada qual com sua mania,
E mais: vez por outra escrevo crônica
Mas só pra pausa do soneto ao meio dia.

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02/09/2020

terça-feira, 1 de setembro de 2020

"A Máscara da Morte Rubra" * (de Alma Welt)

 Só confio na face das crianças
Pois não contêm a sombra da malícia,
E o véu que forma as esperanças
Ainda não caiu, como primícia

De algo que o despertar descubra
Quando a gente então máscara veste
P'um baile que terminará em peste
Ao desvelar a infame Morte Rubra.

É aí que o pesadelo então começa
Quando o baile ainda é belo e extasia
E ainda não se vê quem se despeça.

E a cair, um por um, então nos vemos
Sem dar tempo de tirar a fantasia
Para voltar à face que escondemos...

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01/09/2020


Nota
*A Máscara da Morte Rubra - título de um famoso conto de terror de Edgar Allan Poe.

A Neblina (de Alma Welt)

Com a súbita neblina de miasmas
E entrando numa grande calmaria,
De coração opresso vê fantasmas
Meu capitão da nau Santa Maria...

Não tarda a se ouvir a melopeia
Hipnótica, febril e assombrosa
Que bardos referiram em verso e prosa,
E o maior de todos, na Odisseia...

Sim, o canto malicioso das sereias
Que só um homem ouviu e não morreu,
O astuto e hiperbólico Odisseu.

Mas... por que estou eu a falar disso?
Minha mente ociosa tece teias
E o meu amor há muito deu sumiço...
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01/09/2020

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Revisitando o cão e o lobo (de Alma Welt)

É quase tudo tão triste nesta vida,
Já que até o amor nos causa dor
E a beleza é como uma ferida
Causada pelo espinho à própria flor.

Eu sei que o antigo rimar amor e dor
É coisa de poesia meio ingrata,
Mas nem quero mais versos compor,
Estou bem mais pra dizer tudo na lata.

A verdade é que ninguém mais diz
Que é de lágrimas nosso belo Vale
E de vôos baixos, sorrateiros, de perdiz.

Mas como loba ia fazer uma besteira,
É bem melhor, portanto, que eu fale
Que não troco a liberdade por coleira... *
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31/08/2020

Nota
*...não troco a liberdade por coleira - alusão à fabula O cão e o lobo, de La Fontaine.