quarta-feira, 28 de setembro de 2022

À Deriva (de Alma Welt)

Ser no mundo é estar no mesmo barco,
E não podes simplesmente pular fora;
Não tens como nem pra onde ir embora
Estejas no oceano ou num charco...

Do doutor Victor, o monstro remendado
Afirmou a certa altura ter deixado
Para trás toda a humana sociedade
E incendiou-se em meio à tempestade...

Não podes cair fora sem tragédia.
Cada um que o tenta é um motim:
Condenado no todo ou pela média

Hás de ficar à deriva até o fim...
Se, ao pulares, manter, pensas, a rédea,
Ao sabor ficas, das correntes... vai por mim.
.
28/09/2022

O Início da Poesia (de Alma Welt)

"Quando começaste com a Poesia?"
Enredada estou e isto é um fato:
Lembro, começou em manhã fria
Quando, desperta, calcei o meu sapato.

Não foram pois os chinelos, poetisa?
Sim... sim, é verdade, me desculpem.
Eu ainda me sentia numa nuvem
E ereta como a tal torre de Pisa

E estava em camisola, é bem verdade...
Não tinha nem tomado o meu café
E do Mundo nem lembrava da maldade.

Bem.. onde eu estava? Ah! a Poesia!
Muito boa quando já se está de pé,
Após lavar o rosto com água fria...
.
28/09/2022

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Eco (de Alma Welt)

Por que desses teus sonetos te rodeias
Como se fossem teus espelhos ideais?
Não vês que as pessoas estão "cheias"
E querem redes tão somente sociais?

Assim ouvi do meu tal grilo falante,
Eu que não sou Pinocchio nem Narciso
E não minto nunca, nem preciso
Ter meu próprio rosto como amante...

Mas então me revolto e bato o pé:
Não veem que falo de cada um de vos?
Sou mais o lago do que a flor, e não dais fé!

Alma do Mundo, reflexo preciso,
Cada um encontra em mim a sua voz,
Sou então muito mais Eco que Narciso...
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27/09/2022

As Neves de Antes (de Alma Welt)

A Arte é minha pura água de fonte,
Não o meu rio escuro e derradeiro.
Não pagarei o óbulo ao barqueiro:
Nada devo ao par de remos de Caronte.

Pro céu eu vou, nem que seja mesmo a pau,
Como disse um Matraga das Gerais;
Meu corvo é na verdade um bacurau
E jamais me disse aquele "nunca mais."

Meu escuro é um luzir de pirilampos
Não um céu de estrelas vagas cujos lumes
Da Ursa eu nem me lembro nestes campos,

Que se não jardins paternos cintilantes,
Talvez do meu sonhar maior dos cumes
Onde estão as minhas neves, pois, de antes...
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27/09/2022
Notas
*... rio escuro e derradeiro - o rio Letes que as almas tinham que obrigatóriamente atravessar para entrar no Hades, o reino dos mortos... ( Mitologia grega)

*Não pagarei o óbulo ao barqueiro:
* Nada devo ao par de remos de Caronte- as almas levavam comsigo um óbulo (moeda) para pagar o barqueiro Caronte para que ele as levasse na barca para atravessar o rio Letes e assim entrar no reino de Hades, onde ficariam pela eternidade.

"Pro céu eu vou, nem que seja mesmo a pau,
"Como disse um Matraga das Gerais - alusão à frase: "Pro céu eu vou nem que seja à paulada" do personagem malvado penitente no famoso conto de Guimarães Rosa , "A Hora e A Vez de Augusto Matraga" .

* Meu corvo é na verdade um bacurau
E jamais me disse aquele "nunca mais" - Alusão ao célebre poema The Raven (O Corvo) de Edgar Allan Poe, em que o corvo respondia sempre às perguntas desesperadas do poeta: "Nevermore" (Nunca mais...).
 
*Não um céu de estrelas vagas cujos lumes
*Da Ursa eu nem me lembro nestes campos - alusão ao primeiro verso do famoso poema Ricordanze, do poeta romantico italiano Giacomo Leopardi, que começa assim: "Vaghe stelle de l'Orsa, io non credeva" (Vagas estrelas da Ursa, eu não acreditava...)

*Que se não jardins paternos cintilantes - alusão ao ao terceiro verso do poema Ricordanze, de Leopardi : "Il paterno giardino cintillante..." (O jardim paterno cintilante...)

*Onde estão as minhas neves, pois, de antes - alusão ao refrão interrogativo do famoso poema "Balada das Damas dos Tempos Idos", do poeta medieval francês François Villon : "Mais où sont les neiges dantan?" (Mas donde estão as neves de antanho? "

Princesas (de Alma Welt)

Se eu fui criada, sim, como princesa,
Também mordi o fruto envenenado,
Me perdi em floresta negra, espessa,
Fui acolhida por um bando inusitado.

Toda guria nasce assim, o conto é fato,
Não somos na alma mais que isso,
E isso é muito mais que um relato
Para nos confortar sem compromisso.

A alma nos quer obras de arte,
Não há desdouro nisso, nesse plano,
E ver machismo aqui é puro engano.

Não fosse assim o "Eterno Feminino",
Não mais perduraria em toda parte
Esta nossa silhueta como um sino...
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27/09/2022

Amor, amores (de Alma Welt)

Me pedem pra eu falar do meu amor...
Qual deles? - por minha vez pergunto
Se no fundo terei um outro assunto
Para um ponto final no tema pôr...

Ora- digo- eu e ele estamos quites;
Amor perpassa tudo quanto abordo,
Foi minha condição pra entrar a bordo
E navegar nestas águas sem limites...

Amor de pai, amor de mãe, amor perdido,
E aquele que não ousa dar seu nome
Por eterna carência ou mesmo fome.

E ocultando seu já discreto lume,
Aquele, sim, que já nasce proibido
Mas exala de mim como perfume...
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27/09/2022

domingo, 25 de setembro de 2022

Feminismo moderno (de Alma Welt)

Tantas mulheres eu queria defender
As que de si guardiãs não sabem ser
Mas dou-me conta de que sou inadequada
Eu mesma tantas vezes ultrajada.

Confesso aplaudir como catarse
As atuais heroínas do cinema
Que dão surras nos machos sem disfarce,
Ou de "chilli" lhes aplicam bom enema...

É bem verdade que tais filmes bobos são
E que o buraco é sempre mais embaixo
E dias melhores pode ser que nem virão...

Mas conheci um enorme violinista *
Que não trocava, verdadeiro feminista,
Com sua mulher a cruz de um contrabaixo... *
.
25/09/2022
Nota
" ... um enorme violinista... - Alma faz alusão ao grande violinista alemão Erich Lehninger, homem enorme, que foi spalla de grandes orquestras sinfônicas na Alemanha e no Brasil onde viveu durante muitos anos, e que era casado com uma contrabaixista miudinha e frágil. Entrevistado uma vez na TV Cultura, o entrevistador achando graça no contraste perguntou a Lehninger se, em viagens, ele, por cavalheirimo, trocava com ela os estojos, carregando o enorme estojo do contrabaixo de sua mulher. O violinista respondeu: "De jeito nenhum! " Por quê não? insistiu entre surpreso e divertido o entrevistador. O alemão respondeu: "Porque na vida cada um deve carregar a sua própria cruz". (Gargalhada geral).

Uma breve Teogonia da Alma (de Alma Welt)

O que tenho a dizer é infinito
Porque a alma não tem começo e fim.
Se é poeira ao vento, mesmo assim
É fio de pó na luz, bem melhor dito...

De longe vem o Verbo, antes de tudo
E, então, nada sem Ele se apresenta:
É o Logos que se afirma e não comenta
A Luz que o segue como escudo...

Porém o grego ao olhar à contraluz
Vendo a dança sem fim de filamentos
Que somem e aparecem embora lentos,

Conquanto à bela Psiqué dessem a palma
Pela paixão de Eros que a conduz,
Apontavam o pó que dança: "Eis a alma!"
.
25/09/2022

Estorinha de Amor Bandido (de Alma Welt)

Todos temos um amor, eu acredito,
Alguns, como eu têm muito mais,
Embora um somente já é capaz
De redimir até um mau espírito...

"Não, Alma, tu disseste um absurdo!
Pois falta ao malvado justo o amor
E é isso que o torna cego e surdo
Ao sentido da vida, e à sua dor."

Conheci uma vez um amor bandido
Que era dele o amor, depois eu soube,
E que jaz atrás das grades redimido.

O amor dele, também soube, não o visita.
Essa a pena verdadeira que lhe coube
Mas também saudade única e bendita...
.
25/09/2022

O Coringa (de Alma Welt)

Percebi que não falei senão de amor
Ao abordar quase tudo que há na alma
Não só porque seja o meu pendor
Ou porquê nos sobrevém assim a calma

Mas também porquê estou persuadida
De que a poesia não é senão amor
Mesmo quando está desiludida
E apresenta aquele laivo de rancor

Como o queixoso menestrel de outrora
Que ostentava mesmo na roupagem
O coringa, que no truco fica fora...

Pobre andarilho que as rimas dedicou
Contra o soberbo andar da carruagem
Ou o belo carrocel que não montou...
.
25/09/2022


Auto-crítica (de Alma Welt)

Preciso escutar o meu silêncio,
Eu, que ao só falar de mim me excedo
E acabo confessando o que é segredo,
Que não devia se tornar, assim, intenso.

Sei que me querem nua e devassada
Os pudicos que vestem sobrepele
Mas também que mudariam de calçada
Só para evitar que olhar me rele.

Eu exagero, talvez, de andar sozinha
O parâmetro perdi, ou a medida,
E sintonizo uma voz somente minha.

Mas se assim pago tal preço pela Arte,
Conto ao decifrar-me a dor da vida,
Um pouco de alegria em cada parte...
.
25/09/2022

domingo, 18 de setembro de 2022

Eu, Modelo (de Alma Welt)



Eu que vivo aqui no pampa, fim do mundo,
Da Paulicéia Desvairada, sim, me lembro,
E saudades guardo dela bem no fundo,
Quando posava no frio de Setembro,

Sim, nuinha em pelo, sem arreios,
Para o meu pintor embevecido
Que se esmerava nos meus seios
Ou neste corpo todo reaquecido

Por um olhar agudo e amoroso
E as as carícias dúbias de pincel
Ocultas mas que imaginar já ouso.

Logo, finda a pose, então me erguia
E corria para olhar-me tão sem véu,
Enquanto ele, minha pele conferia...
.
18/09/2022

O perigo do soneto (de Alma Welt)


Quando o teto do soneto está aberto
Ponho-me debaixo e colho versos
Mas mantendo o passo muito perto
Para tê-los bem coesos, não dispersos.

E é assim que os tenho em catadupa
Mordendo os calcanhares do Mattoso *
Ou já cavalgando-lhe a garupa
Sem cópias e igualmente copioso...

E os belos versos já com suas rimas
Caem, pois, nas minhas mãos e na cabeça;
Só não faça isso em casa! A rede teça,

Pois um desastre pode te tirar de cena
Ou te mandar direto para Minas
Mas para uma horrivel Barbacena...
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18/09/2022
Nota
*Alusão ao poeta Glauco Mattoso, que, como a Alma, dizem, escreveu mais de cinco mil sonetos.

A Degredada (de Alma Welt)


Se quereis saber o meu segredo
De como tenho tanta inspiração,
Revelo: decretei o meu degredo,
E escrever é obter comutação.

Escrevo versos numa África de mim
Em nostalgia de minha própria sorte,
E é por isso esse tom saudoso assim
Mesmo quando é outro o meu aporte.

Sabei, sempre achei que a nostalgia,
Se não a filha mais amada da poesia
É no mínimo a única herdeira...

E ao somar tanto assim chaves de ouro
De sonetos ajunto meu tesouro
Pra regressar à Pátria verdadeira...
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18/09/2022

A "levada" do Soneto (de Alma Welt)


A "levada" do Soneto (de Alma Welt)
Tenho tanto o que dizer e mesmo digo
Pois sobre quase tudo me debruço
Menos sobre o fútil e o soluço
Que não de dor, pois qualquer outro não ligo.

Sou humana, quase tudo me concerne
Mas jamais perco tempo em ninharias
Que nunca acalento no meu cerne,
Que me levanto cedo em manhãs frias...

Espartana? Nem tanto, mais pra Atenas
Que de artes marciais não manjo nada
E aprecio mais a pena que a espada...

Com pão, mas sem brioches nem empada,
Por certo sobrevivo a duras penas
Pois é só de soneto minha "levada"...
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18/09/2022

A Travessia (de Alma Welt)



A Poesia me escolheu, não fugi dela
Não me escondi, brincando de "acusado!",
Brinquei foi a Cabra Cega, olho vendado,
Esperando aquele toque que revela.

Brincar é coisa séria, se és criança,
Mas a vida não está pra brincadeiras,
Exceto para a Dança das Cadeiras
Que é do mundo a cruel e dura dança.

Fui ao mundo, voltei, tentei de novo,
Algumas vezes caí da tal cadeira:
Não sabia por de pé meu pobre ovo.

Mas depois, levantei, meio quebrada,
Erguendo velas não sacudi poeira,
Atravessei de mim meu próprio Nada...
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18/09/2022

Resumo da ópera (de Alma Welt)


Quanto eu quis deter o Tempo! Quantas vezes!
Nos momentos felizes, de um segundo
Ou de poucos dias, poucos meses,
De um transcorrer pleno e fecundo...

Aproveitei o pano, o intermezzo,
Fugi da opereta nesse instante;
Não liguei pra aparências que não prezo,
Larguei na platéia o falso amante...

Nunca fui uma Dama das Camélias:
Tenho bons pulmões e pouca voz
E nada da verdade das Amélias...

O que fiz então? Vos perguntais?
Eu que abri o coração pra todos vos,
Sei também que abri os braços muito mais...
.
16/09/2022

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

De pelos e cabelos (de Alma Welt)

Meus amigos lá se foram pela vida
E não houve nenhum meio de retê-los,
Nem pela gratidão talvez a dívida,
Nem por meio de seus cachos de cabelos.

Foram-se todos qual aves arribadas
Buscando aqueles sonhos impossíveis;
Nunca mais lhes ouviria as risadas
Cobrindo as suas dores mais visíveis.

Mas depois de uma década perdida
Ainda me veria enternecida:
Encontrei, naquela tal confeitaria,

Só um deles, de que não guardei cabelos
Mas meia dúzia de pubianos pelos,
Pelos quais eu apostei que voltaria...
.
21/08/2016

Eu e os Poentes (de Alma Welt)

Aqueles que me veem aqui sentada
Nesta arcaica cadeira de balanço
Nem cogitam que me encontro num remanso
De uma vida intensa, atribulada.

Sigam o meu olhar e o quê reflete
Como um cristal, espelho cristalino,
E saberão que minha alma se remete
Àquelas luzes do acenar divino...

Sim, os poentes, a que não irei faltar
Pois jamais salto conta de um rosário,
Que nunca é mera pedra de um colar...

Que eu jamais perca o senso do sagrado
Ou trate como um acidente vário
Este aceno de Deus pra ser lembrado...
.
12/09/2022

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Como capturar a Poesia (de Alma Welt)

A poesia só nos vem quando ela quer,
Não adianta forçares, laborioso,
O poema é um ovo em pé, teimoso,
E que nenhum navegador domou sequer.

É preciso captá-la com antenas,
Porque vem nos ares dissolvida;
Em comodato nos é dada, apenas,
Quando mais nos parece adquirida.

É preciso que te ponhas meio sonso,
Semicerrado o olho, distraído,
Com cara não de André mas só de Afonso; *

A Poesia vem então baixando lenta,
Versos sussurrando ao pé do ouvido,
Visitante tão arisca... que nem senta.
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06/09/2022
Nota
* Com cara, não de André... - alusão à gag nonsense de Mario de Andrade, no seu Macunaima: "...fez uma cara de André (André era um vizinho...) rrrrrssss

sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Montanha Rosa (de Alma Welt)

                                Alma diante da Montanha Rosa - o/s/t , 2021-2022

A Montanha Rosa (de Alma Welt)

A tal Torre era então montanha rosa
A que a minha velha bá se referia
Quando eu era a guria imaginosa
Que viajava em sonhos de coxia:

De mim o palco eu um dia assumiria,
A primeira atriz da trupe inteira,
E como não estou pra brincadeira
Sempre o melhor papel encarnaria.

Mas a vida dá lições de humildade
E na grande Babel de uma cidade
Logo perdi-me em meio à multidão

E da torre as mil linguas já se ouvia
Numa imensa e dolorosa algaravia,
E vi de Deus a decantada maldição...
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27/05/2022

Mares do meu rei (de Alma Welt)



Na Praia - o/s/t de Guilherme de Faria, 2021, 40x50cm 

Mares do meu rei (de Alma Welt)

Eu vi na praia um bote descansando
Pintado, novo, junto a rochas luzidias
E pensei-me logo nele navegando
Para as nobres e encantadas ilhas,

Aquelas da imaginação guria,
Quando ao mirar as ondas da coxilha
Eu sonhava o mar que eu jamais via,
Sendo que de um mar eu era filha.

Então logo quis voltar às pradarias
Onde eu já navegava a sotavento
E avançava bem melhor nas calmarias...

E eu então reconciliada retornei
Àquele mar perdido que acalento,
Onde o velho Minuano é que é o rei...
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27/05/2022

terça-feira, 29 de março de 2022

Me perguntaram (de Alma Welt)

Me perguntaram se tenho algum amor....
Mas amor mesmo, dizem... carne e osso.
Eu respondo: "Não sou "carne de pescoço",
Pois amo tanto que já morri de amor..."

Estou até rimando amor com amor...
Como ousam a mim tal coisa perguntar?
Cada palavra que profiro é uma dor,
De tanto amor, de tanto o amor amar.

"Caramba, Alma, nos estás levando a mal!
Percebemos que tocamos na ferida
Mas veja, és também a nossa vida..."

"Pois o quê é o poeta senão isso?"
Eu então baixo esta "cabeça universal"
E choro por nós todos desde o início...
.
29/03/2022

domingo, 27 de março de 2022

Assum-preto num toco (de Alma Welt)

                                   Assum-preto da tarde - o/s/t de Guilherme de Faria, 2013, 30x40cm 


Assum-preto num toco (de Alma Welt)

Assum-preto num toco observando
A queimada muito longe na chapada
Foi a visão que retive desolada
Nas retinas e que vem de vez em quando...

Então pedi ao meu pintor que registrasse
Esse sonho acordado, numa tela,
Para que de me assombrar logo parasse,
E pra tal acendi até uma vela.

Porém quando a tal telinha ficou pronta
A beleza já a tinha conquistado
E nos apresentava a sua conta.

Assim é sempre a Arte e a Poesia:
Só querias dar apenas um recado,
Mas o "como", não o "quê, o transcendia...
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26/03/2022

A Memória (de Alma Welt)

A memória é tudo que eu possuo.
Nada mais é meu, nem corpo e alma,
Estes a Deus somente eu atribuo,
Mesmo a linha mestra da minha palma.

"O futuro a Deus pertence", mas lembranças
ELE não liga já que são tão pessoais
A não ser quando nos doem, assim, demais
E sugerem uns pecados e lambanças...

Cada folha, seca ou verde Deus comanda:
Nada cai sem Sua ordem, nem farfalha,
E no palheiro Ele está em cada palha.

Mas lembranças? Eu as guardo humildemente.
Pra pecadilhos meio fora de demanda
Meu Senhor faz vista grossa, felizmente...
.
27/03/2022

quinta-feira, 24 de março de 2022

Pequena Fábula Pictórica (de Alma Welt)

                                O Pintor- desenho de Guilherme de Faria, 70x50cm, 1974

Pequena Fábula Pictórica (de Alma Welt)

Como artistas só fazemos o que somos,
Não há como falsear fazendo arte.
Se forçando ou procurando noutra parte
Colheremos simulacros, falsos pomos.

Um pintor cansou de si num certo dia
E a pintar como seu mestre começou.
De tal modo acreditou no que fazia
Que a si mesmo, com agrado, se enganou.

Pelo seu mestre então foi visitado
Que lhe disse: "Estás pintando muito bem.
És um bom imitador, fico encantado... 
"
E o pintor, de repente envergonhado,
Recomeçou a pintar inconformado
Já que a pintura é só terra de ninguém.
.
24/03/2002


quarta-feira, 23 de março de 2022

A Mancha (de Alma Welt)

 

Grande Nu (Alma Welt) - o/s/t de Guilherme de Faria, 1990-2018, 140x120cm


A Mancha (de Alma Welt)

Pro meu pintor posei desnuda a me despir
Em pose improvável e caprichosa,
Jarrão com flores, talvez pra distrair
De uma mancha no tecido, capciosa...

Meu pintor é realista, sem malícia,
Mas cobriu-me sutilmente aquela parte
Mas traiu-se ou me traiu com sua arte:
Uma mancha de carinho ou de sevícia...

Perdoei-o e até ri da sua saída
Com a feminina intimidade captada,
A mais funda numa obra já exibida,

Que vendida afinal foi devolvida,
Por comprador e sua esposa indignada:
"Sua modelo, senhor, tá menstruada!
.
23/03/2022
________________________

Nota
Esta história é absolutamente verdadeira. Esta tela foi vendida e depois de alguns anos foi trocada pelo colecionador por outra tela minha, porque sua esposa não a suportava, porque via nela uma mancha de menstruação, nuns toques vermelhos do panejamento. A tela está comigo até hoje e hesito em apagar o tal vermelho...
(Guilherme de Faria)

A Náufraga (de Alma Welt)

Naufrágio - o/s/t de Guilherme de Faria, 2021 50x40cm


A Náufraga (de Alma Welt)

Como barca que a tempestade encalha
Estive desolada algumas vezes,
A esperar dos ventos e revezes
Qualquer areia que afinal me valha...

Não me queixo, estou apenas recordando,
Sobrevivente orgulhosa de remar,
Embora exausta depois sair andando
Como uma Crusoé de outro lugar...

Pois como aquele refiz a trajetória
De toda humanidade passo a passo
Dentro em mim, que me dei tal moratória.

E afinal o meu percurso culminei
Com a tal liberdade de um abraço
Em mim, que fui fiel e me encontrei...
.
23/03/2022

Oroborus (de Alma Welt)

Se tudo na minha vida foi retorno,
Para isso tive então que andar pra frente
Mas não só mordi a cauda qual serpente:
O caminho me fazia olhar em torno...

Báh! E como foi belo o meu caminho,
Que, artista, para ele tive olhar...
Mas olhar desvelador do comezinho,
E até de reis que eu soube desnudar...

Mas não fui palmatória do universo,
Que moderei-me o crítico severo
Optando escolher o bom e o vero

Como quem deixa o resto, displicente,
Ou sílabas que excedem no meu verso,
Busquei rimar a vida, simplesmente...
.
23/03/2022

terça-feira, 22 de março de 2022

Nem Narcisa nem Medusa (de Alma Welt)

                      Alma Welt como Perséfone - o/s/t de Guilherme de Faria, 2020, 60 cm de diâmetro

Nem Narcisa nem Medusa (de Alma Welt)

Vivo e durmo qual se o mundo fosse bom
E desperto nas manhãs espreguiçando,
Quero dizer que a manter o mesmo tom,
Se não apaixonada, muito amando.

Na verdade meu amor é por mim mesma
Mas lhes peço não me acusem de "narcisa",
Refletida não sou minha abantesma,
Meu espelho é ser esta poetisa...

Na verdade minha beleza foi percalço
Confundindo alguns leitores pelo olhar:
É com ela que nas mentes eu me alço?

Meus cabelos são de fogo, não serpentes,
Sim, sou boa, embora cheia de repentes,
Os que me amarem não irei petrificar...
.
22/03/2022


Mito e coragem (de Alma Welt)

"Pra viver é só preciso ter coragem",
E meu pai a teria como um ogro,
Reconhecendo porém a desvantagem
Da mulher, que a necessita em dobro.

Pois saí com a cara e a tal coragem,
Fui ao mundo que nos livros eu amava
Mas que ao vivo era só sede e voragem
(é verdade que a cara me ajudava...)

Olhos cinzas de uma doce nostalgia,
Cabelos ruivos que não herdei de Ana *
Mas de uma estirpe de região mais fria,

Meio caminho andado, eu admito,
Rosto branco de fina porcelana,
E portas já se abriam para o mito...
.
21/03/2022
Nota
*Cabelos ruivos que não herdei de Ana - Alma se refere {a sua mãe Ana Morgado Welt, de estirpe açoriana, de cabelos negros. Os cabelos ruivos da poetisa vem dos Welt, germânicos...
Neste soneto, Alma admite que sua beleza física a ajudou a conquistar um público e a criar seu mito, o que me parece válido num mundo em que a beleza agora corre perigo...

segunda-feira, 21 de março de 2022

O Poeta (de Alma Welt)

Pensar a vida e a morte é meu mister:
M'o arroguei quando ainda era guria
Que com as outras contar o mal-me-quer
Era só o que esperavam e eu devia...

O Poeta tem estranhos fortes ombros
Para arcar com o peso deste mundo
Sendo escriba à margem dos escombros
Com, dos anjos, o coral soando ao fundo.

Então penso que me alego vãos poderes,
Que o poeta é um simples serviçal
Que só entrava pela porta do quintal

E nos castelos comia com os criados;
Ah! Bebia e farreava sem deveres,
Com os versos e os dias seus contados...
.
21/03/2022

domingo, 20 de março de 2022

A Porteira (de Alma Welt)

"Dar conselhos eu me esforço para evitar
Embora o tenha feito alguma vez;
Uma palavra solta ou fora do lugar
É uma porteira aberta e vai-se a rês..."

Assim me disse meu pai fazendo gênero
De "galtcho" estancieiro de bombacha
(este seu, na verdade, lado efêmero),
Sendo mais para Tolstoi na sua "dacha".

De muito poucas reses mas mil livros
E um negro e caudaloso Steinway,
Era um último romântico entre os vivos.

E eu que o tinha entre os sábios,
Conselhos mesmo, de verdade, nunca dei:
A porteira com que Deus selou meus lábios...
.
20/03/2022

domingo, 6 de março de 2022

Anima Mundi (II) (de Alma Welt)

Pensar muito estraga a pele - ela dizia-
Minha mãe, alta, bela e elegante,
Embora com a ponta de ironia
Que me deixava ainda mais distante.

Já meu pai, me queria inteligente,
Não de língua afiada de comadre
Ou pontificante como um padre,
Mas trocando as lentilhas pela lente.

Conquanto sem menosprezar a prosa,
Pondo o saber a serviço da poesia,
Sem falsear os espinhos de uma rosa...

Ao trocar a superfície pelo fundo,
Eu já estava em minha própria Economia:
Alma de mim, também Alma do Mundo...
.
06/03/2022

quinta-feira, 3 de março de 2022

O Espéculo (de Alma Welt)


                                    Alma Welt - o/s/t de Guilherme de Faria, 2020, 60cm diam.

O Espéculo (de Alma Welt)

Contra a tal nostalgia me rebelo,
A saudade irmã dileta da tristeza,
A prisioneira da torre do castelo
Apesar de toda a sua beleza..

Báh! Alma, tuas figuras de linguagem
Traem todo romantismo que há em ti,
Responsável por te colocar à margem
Como o salgueiro mais choroso que já vi.

Chega! Para! Retorna ao nosso século!
Pensas que o Mal, olhando-se no espelho
Sabe de ti por aquele franco espéculo?

Bem... o contraste do cabelo tão vermelho
Com a brancura impossível de tua pele...
Não admira que fatal destino sele.
.
03/03/2002

terça-feira, 1 de março de 2022

A Eremita (de Alma Welt)

Há muito, onde quer que eu pouse olhares
Nasce um verso, sonetos, um artigo...
"Báh! Lá vens tu de novo a te gabares",
Suponho exclamar logo um inimigo

Ou amigo, não sei, faltam-me as provas
De sucesso verdadeiro ou de fracasso:
A solidão só me fornece novas trovas,
Seu faro pro prestígio é meio escasso.

Eis a sina de eremita do poeta,
Repetindo sua oração dileta
Mas com vocabulário à saciedade.

Sim, sei que até me alcançam no deserto,
E enquanto ouço uns aplausos da cidade,
Mastigo um gafanhoto pouco esperto...
.
01/03/2022

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Anima Mundi ( Alma Welt)

Confesso, não há nada mais extremo
Que viver a vida em liberdade;
Um passo aquém dela, na verdade,
E uma falsa paz será teu prêmio.

Ora, Alma, lá vens tu com mais dilema!
Não consegues deixar de questionar?
Não consegues só levar a vida amena,
Escrever teus belos versos e os mostrar?

Talvez tenha perdido minha inocência
E nem mais consigo simples colher flores
Sem lembrar Ofélia em sua demência...

Já que eu carrego o mundo no meu nome, *
Não dou um passo que não contenha dores:
Guerra e paz, abundância e também fome.
.
28/02/2022

Nota
"... carrego o mundo no meu nome - pra quem não sabe, a palavra Welt (pronuncia-se Velt) é alemã significa Mundo. Alma Welt quer dizer Alma do Mundo, "Anima Mundi" em latim, é arquetípica, representa a alma feminina que perpassa o mundo, o regenera e redime.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Orgulho e sinceridade (de Alma Welt)

Nunca tive pena de mim mesma,
Tive é que me livrar do meu orgulho,
Coisa fácil de seguir até no entulho
Luminoso como rastro de uma lesma.

Entulho? Ora, sim... de pecadilhos
E alguns outros defeitos desprezados,
Mas que quando assim acumulados
Parecem os coelhos tendo filhos.

Alma, vê: não desças tanto lá de cima
Não estás sendo sincera em demasia?
Não confundas humildade e baixa estima.

Deus sabe o tanto que a ti mesma burilas,
Não o rosto no cristal da tua pia
Mas sincera em cada verso que desfilas...
.
26/02/2022

Olhai as flores (de Alma Welt)


                                      Fantasia floral (ou As flores da avó Frida) -o/s/t 2022,70x50cm 


Olhai as flores (de Alma Welt)

Vivo, sim, em eterna vigilância,
No que for concernente à minha alma,
Que me foi dada, eu sei, em confiança,
Para levá-la de volta sem um trauma.

Mas "trauma" é sonho, dizia minha avó *
Se referindo da palavra a própria origem
Na sua aldeia, de onde saiu só
Pra encontrar com meu avô, ainda virgem.

E zelaria por mim muito mais tarde,
Preservando não a minha inocência
Mas a própria chama que em mim arde.

"Minha Alma"- ela dizia- "olhai as flores
E mantenha como elas vossas cores
Até o fim, tudo mais é excrecência"...
.
23/02/2018




A bronquinha de Deus (de Alma Welt)

Se demais penso na vida fico triste...
Proibido foi o Fruto e não à toa;
Ainda vejo Deus de dedo em riste
E rezo pra que a culpa não me roa.

Digo assim: "Senhor Deus, releve aquilo,
Não nos guarde rancor, deixa pra lá!
Não filo mais maçãs, mudei de estilo,
Plantei mesmo um lindo pé de manacá."

"Mesmo assim Deus um dia me deu bronca,
Ou só ralhou, mas como quem acalma:
"Alma,"- (rima falsa... ai!)- "és mesmo tonta,"

"Tu me cobras todo dia esse teu trauma...
De meus Mistérios, não paro pra dar conta,
Mas não vês como acalento a tua alma?"
.
26;02/2022

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Traduttore-traditori (de Alma Welt)

Para viver só preciso de beleza.
(não falarei pois de água nem comida),
Mas só daquilo que, dizem, não põe mesa
E que é a só razão da minha vida.

A Beleza é a Verdade e vice-versa, *
Melhor dito o grande Keats decretou
E não contente no final acrescentou
Que é tudo pra saber, sem mais conversa. *

Sei que estou trocando a libra por reais
Nem sequer da realeza da rainha
Ou monarca de outros tempos ideais..
.
"Bah! Alma, estás trocando é em miúdos!
Sabemos bem que preservas conteúdos,
Mas a beleza só o original continha..."
.
25/02/2022

Nota
*A Beleza é a Verdade e vice-versa, *
*Que é tudo pra saber, sem mais conversa - Alma propositalmente popularizou em português os famosos versos finais da célebre "Ode A Uma Urna Grega" do poeta romântico John Keats, de maneira um pouco gaiata, para fins de demonstração da diminuição da beleza com a perda de forma original na tradução.
No original os versos são assim: "Beuty is truth, truth beauty"- that is all/
Ye know on earth, and all ye need to know."
Mas, na verdade, a Alma reconhece a beleza da tradução primorosa de Péricles Eugênio da Silva Ramos:
" A beleza é a verdade, a verdade a beleza"- é tudo
O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber.

Puro amor (de Alma Welt)

Quando guria eu era puro amor,
Assim, a esmo, amava todo mundo,
E me magoava também, com igual candor
Que perdurava menos de um segundo.

Sintonizada então no "modo" amor
(como se diz das coisas hoje em dia),
Alegre e inocente persistia
Deixando para trás mágoa e rancor...

Ah! Estais esperando uma catarse,
Uma revelação ou uma vingança?
Pensais que meu amor era um disfarce?

"Não sei vocês" (como, aliás, o povo diz)
Mas não pus o meu amor numa balança,
E nem teve um voo curto de perdiz...
.
25/02/2022

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Retorno ao Ninho ( de Alma Welt)

Sempre quis voltar para o meu ninho
Que não é somente a estância, o casarão,
Mas o interior da alma e o coração
Do poeta que nem deixarei sozinho...

Eu disse: olha, eu sei quanto me gostas.
Me arrancaste do interior, não das alturas,
Sou tua anima, me vias só de costas *
Nesses teus belos desenhos e gravuras...

Me devolva e continuo dentro em ti.
Inventa-me um acidente pros leitores,
Mas, te peço, não capriches nos horrores...

E afogaste-me naquele poço, a sério, *
Acrescentando a mim mais um mistério,
De meu desejo o desfecho não previ...
.
23/02/2002
__________________________

Notas

* Sou tua anima, me vias só de costas
Nesses teus belos desenhos e gravuras -
Na sua obra completa , volume 18, página 412, CARL JUNG escreveu:
"No topo da gravura está a personificação do inconsciente, uma figura de anima nua que se vira de costas. Esta é uma posição típica: no princípio da objetificação destas imagens, a figura de anima frequentemente vira-se de costas. " CW 18, §412

*E afogaste-me naquele poço, a sério
- em 210 de Janeiro de 2007, depois de uma série de sonetos em que angústia da Alma parecia estar crescendo dia a dia, eu recebi dela o soneto intitulado "A Carruagem", uma nítida despedida da vida, uma perceptível vontade de ir embora. Fiquei deprimido, senti que a Alma ia morrer e , veio-me a seguir a visão dramática de seu afogamento no "poço da cascata" de sua estância. Postei como sua irmã Lucia Welt a notícia trágica pormenorizada em detalhes romanescos na página da Alma no Recanto das Letras, o que motivou um grande choque (a Alma já era uma da estrelas daquele portal) e em seguida, com o desmentido indignado do Editor, um escândalo, culminando com a expulsão póstuma (!!!) da Alma, e minha, daquele portal (episódio incrível que já narrei aqui no face há tempos atrás).
 
*Acrescentando a mim mais um mistério- Na narrativa da Lucia Welt, fica uma ambiguidade, uma dúvida até hoje não solucionada, se se trata de suicídio ou assassinato, pois a Alma estava nua, com uma corda no pescoço amarrada a uma grande pedra ancorada no fundo do laguinho cristalino ( o "poço"), Como ela tinha a parte inferior dos braços, esfolados, poderia tanto ser ferimentos de defesa ou da pedra áspera amparada ali, escorregando para as águas.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

"Les Feuilles Mortes" * ou O Último Outono (de Alma Welt)

Chego a pensar que construo minha vida
Soneto por soneto, não o oposto...
Mas, pensando bem, quem não duvida
Das Memórias que tão bem caem no gosto?

Eu realmente não sei onde começa
Ou acaba minha vida verdadeira.
Acaso, existe mesmo essa fronteira,
Estarei para mim mentindo à beça?

Não, não creio... é sempre a alma
Que dita o rumo até por linhas tortas
E não há como falsear linhas da palma...

Tudo aquilo que o coração aborda
Como outono que mais ninguém recorda,
Permanece, até mesmo as folhas mortas...
.
21/02/2022

Nota
*Les Feuilles Mortes - titulo da célebre canção francesa composta em 1945 por Jacques Prévert e Joseph Kosma, e que foi interpretada por Edith Piaf nos anos 50 e revivida nos anos 60 pelo cantor-ator Yves Montand. Na verdade, a canção é tão célebre que foi interpretada em francês e na sua versão inglesa, por todos os grandes cantores desde então.
Entretanto a Alma a homenageia com o título mas se refere às "folhas mortas" em outra acepção bem diferente.



Nem raposa, nem as uvas (de Alma Welt)

Sei bem que para pouca gente escrevo,
Não me iludo pois tenho os pés na terra;
Sou "da" pampa onde tanto gado berra,
Mas até pra um só leitor sinto que devo.

Que me importa se a plateia é reduzida!
Mas não sou como a raposa sob as uvas
E não pauto por despeito minha vida,
Nem saudosa, demais, como as viúvas.

Do sucesso que eu tinha com os meus,
Guardo dos bons momentos mesmo o cheiro,
Estão comigo e não preciso dar adeus.

Um passarinho canta porque existe
Não é preciso seduzi-lo com alpiste...
Vou cantando nem que seja no chuveiro.
.
21/02/2022

Autoajuda (de Alma Welt)

Ando muito só e triste, Deus me cuide...
Foram-se todos os que me eram caros,
E daqueles bons amigos, muito raros,
Vi pequenas traições, mas amiúde.

Ora, Alma- digo então para mim mesma-
Estás aí a te queixares, que vergonha!
Agora és para ti tua abantesma,
Em vez de só molhares a tua fronha.

Mas Rodo, meu irmão que é meu esteio,
Meu coração perdido de si mesmo,
Caiu no mundo a jogar dados a esmo...

Mas Alma! - a resposta a mim me veio...
Não há dados novos, te dás conta?
Tua vida é tão rica... e nasceu pronta.
.
21/02/2022

domingo, 20 de fevereiro de 2022

A Estrada Sem Fim (de Alma Welt)

Se é difícil viver em sociedade,
Viver sozinha a vida é mais ainda.
É como andar numa estrada que não finda
Se no fim não chega a uma cidade...

"Não, Alma"- disse o Mestre- "é ilusão.
A vida é muito mais o caminhar,
Chegar a uma cidade é que é parar.
Até morrer pra quem andar na contramão..."

Então olhei o mestre assim de esguelha
E notei que sua lábia consistia
Em dizer o que lhe vinha assim na telha.

E convencer meu solitário coração
Foi fácil para o mestre que me ouvia:
O seu aval pra eu voltar à solidão...
.
20/02/2022

Expressionismo alemão (de Alma Welt)

Meu pai cobria as paredes de pinturas,
Belos quadros de pintores excelentes
Que nos davam, na abordagem das figuras,
O real visto bem sob outras lentes.

"Expressionistas"- didático dizia,
Apontado as expressivas distorções
Conquanto a diferença eu já não via
Entre aquilo e meu mundo de emoções.

Então ao escrever os meus versinhos
Eu olhava para dentro com um olho,
O outro olho voltado pros vizinhos...

E meu pai aprovava admirado,
Confirmando que o sabor vinha do molho
Naquele meu versejar de pé quebrado...
.
20/02/2022

sábado, 19 de fevereiro de 2022

O Flagrante (de Alma Welt)

Sempre tive muito medo de morrer...
"Tanatofóbica", diria, mas nem tanto.
Observo, com alegria e não espanto,
Um velho tronco desgalhado florescer.

Tenho uma pontinha de esperança
De merecer de novo um Paraíso
Desde que seja igual à minha infância
Sem mais sofrer de novo um mau juízo.

Confesso sofri muito o tal flagrante
De sermos pegos peladinhos no Jardim
E aquela dor me volta a todo instante...

Pela orelha arrastada ao casarão,
Chorando e me cobrindo com a mão,
Ai Me! (diria o grego)... Ai de mim !
.
19/02/2022


De volta ao Jardim (de Alma Welt)

Retornar ao meu Jardim como inocente,
E garanto estar ainda pura e igual,
Pois ao contrário de tanta boa gente,
Nem aceito o tal "pecado original"...

Tão previsível... Quê raio de pecado?
Eu em minha candura virginal,
Junto a mim meu belo irmão pelado,
Em simples brincadeiras de quintal...

"Ora, Alma, estás pegando no concreto,
É tudo alegoria, não percebes?
Não deves tanto assim olhar de perto.

Ao violar o Fruto da Ciência,
Iguais parcelas de Bem e Mal recebes;
Agora é tarde, Inês é morta... Paciência..."
.
19/02/2022

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

A Fugitiva de Babel (de Alma Welt)


                                       A torre no prado - o/s/t de Guilherme de Faria, 2017, 30x40cm

A Fugitiva de Babel (de Alma Welt)

Eu jamais fui trabalhar em Babilônia,
E acho a tal torre um grande porre.
Minha língua é portuguesa, de colônia,
E só com a da matriz, talvez, concorre.

Meus horizontes são vastos, infinitos
E permito meu olhar ir com o vento;
Sou tão afeita às lendas e aos mitos
Que, por isso, o meu passo é meio lento.

E porque a minha memória é o dia a dia,
Eu carrego este peso redobrado
De um presente eivado de passado...

No entanto, sou jovem... quem diria?
Não somente para efeito de poesia
Esta minha brancura ao sol do prado...
.
18/02/2022

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Crônica (de Alma Welt)

Meu soneto é minha crônica diária
E espero se surpreendam como eu:
Serei Callas em reconhecida ária
Ou o fogo roubarei, qual Prometeu?

Mas que nada! Em geral sou simplesinha
E falando só das coisas que conheço...
Só não sou fútil, banal e comezinha
Pois ao gosto da massa não obedeço.

Só não falo do Amor, seu nome em vão,
Pois que ao jovem poeta ou escrivão,
As Cartas de Rilke ainda me movem. *

Não sabemos o que aconteceu ao jovem:
Se foi escrever sonetos que comovem
Ou carimbar numa fatal repartição...
.
15/02/2022

Nota
* Nas famosas "Cartas a um Jovem Poeta", o grande Rainer Maria Rilke o aconselhava a não escrever poemas de amor, sem explicar porquê. Suponho porque o Amor, como tema, se deve deixar para os poetas que atingiram o ápice de sua arte, do contrário se cai inevitavelmente na pieguice e na banalidade dos lugares-comuns...

Divagações sobre o Tempo (II) (de Alma Welt)

A trilogia do Tempo me domina
(já que eu devo falar por mim somente)
Pois vivo em dois mundos minha sina
E acredito ficar para semente...

O passado (dizem) sempre nos condena...
Eu que nada sou sem minha memória,
Se não posso contar a minha história,
Que história vou contar que valha a pena?

Presente e passado, duplo jogo
Pois o futuro é mistura surpreendente
Como a cara do rebento do Diogo

(Diogo é o meu vizinho e sofre um logro
pois não consegue ver que a mulher mente)...
Mas eu não estava a falar de mim somente?
.
15/02/2022

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Devaneios (de Alma Welt)

                                    Devaneios da Alma - o/s/t de Guilherme de Faria, 2021, 40x50cm

Devaneios (de Alma Welt)

Sabeis que sou chegada a devaneios,
Assim crio panoramas e poentes
Refazendo o real por outros meios
E tentando oferecer às outras mentes.

Para isso me amparo em meu pintor
Que me dá suporte me ilustrando;
Às vezes o contrário, e é quando
Eu é que ilustro suas pinturas sem a cor.

Mas de um jeito ou outro, dadivosos
Oferecemos beleza, assim, de graça,
Como quem apenas brinda e ergue a taça.

E se ao formar assim campos e flores
Nada tenho além de versos ociosos,
Distribuo em versos mesmo minhas cores...
.
14/02/2022

O pó e o pólen (de Alma Welt)

Não há nada que me cause mais prazer
Que um soneto novo a cada hora.
"Quê exagero! Assim vais até morrer!
Cada verso te leva um pouco embora!"

Mas faço versos assim como respiro
E não tentem me conter ou distrair
Se estou a contar sílabas, que piro
Ou poderei em pleno ar até sumir.

O soneto me compõe, me configura
E assim como tu mesmo sou real,
Já que a vida material bem pouco dura...

E iremos todos no fim sumir no ar
Ou mais densos, grãos num areal,
Mas, poetisa, pólen sou, pra fecundar...
.
14/02/2022




                          Guirlanda (A Infância da Alma) - o/s/t de Guilherme de Faria, 2022, 50x70cm
 
De coroas e guirlandas (de Alma Welt)

"De tua infância lá vens com a cantilena!"
Disse alguém já cortando-me o discurso.
E quase achei que estava em selva plena,
Sozinha e acuada por um urso...

Isso era sonho mau, não acontece,
Geralmente não sou mal recebida.
Quem com tais flores coroas tristes tece
Conhece o medo de as receber em vida.

Solidão, herança bela de meu pai,
E de seus conselhos lembro muito,
Que diziam como o homem sobe e cai.

Tenho flores de entretecer guirlandas
E não aprecio cravos de defunto:
Cordões quero, cantos, festas e cirandas...
.
14/02/2022

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Espelho, espelho meu (de Alma Welt) *

                                        Alma ao espelho - o/s/t de Guilherme de Faria, 70x70cm

Espelho, espelho meu (de Alma Welt)

"Bela Alma, como tens tanto a dizer
E o fazes em milhares de sonetos
Que sem nunca os repetir ou aborrecer
Em ouro fechas nos últimos tercetos?"

Era eu que ao espelho perguntava
Mirando minha beleza duvidosa
Enquanto o espelho franco retrucava:
"És bela... mas há quem lhe dê sova."

"Tens aqui mesmo a Cecília inconfidente; *
Além-mar tens a Florbela, que te espanca, *
Ambas mortas porém ainda na rinha. "

Baixei minha cabeça humildemente,
Mas fui cantar "My Way" como o Paul Anka, *
Pra não perder majestade de rainha...
.
13/02/2022

Notas
* Espelho, espelho meu... - Não preciso, talvez, esclarecer que se trata de uma paródia da Alma da cena do espelho mágico da rainha má, na história da Branca de Neve.

*...a Cecília inconfidente - a grande poetisa brasileira Cecília Meirelles, autora do genial "Romanceiro da Inconfidência", mas que era também sonetista (na verdade, nem de longe comparável à Alma Welt, que neste gênero específico é muito superior).

*...a Florbela, que te espanca - Florbela Espanca, maravilhosa poetisa portuguesa, que a Alma muito admira como sonetista intensa e sublime.
 
"...cantar "My Way" como o Paul Anka - embora esta notável música e letra tenha sido celebrada na voz do Frank Sinatra, a autoria se deve ao Paul Anka, roqueiro que se destacou somente no final dos anos 50 e começo dos anos 60, mas será imortal pela autoria tardia da canção My Way, cuja letra afirma a maneira própria e individual de uma pessoa criar, agir e vencer na vida.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Alma Caravaggio (de Alma Welt)

Alguém me disse: "Alma, não és feliz.
Na poesia tua angústia é bem visível,
Se não nas entrelinhas, por um triz,
Mas por tua produção vasta e incrível."

"Ninguém lança mão de tanto verso
Se estiver bem a gosto em sua pele,
Sem sentir o mundo mau e adverso,
Sem juntar tanta beleza que o sele..."

Diante disso comparei asas e cruzes,
E para reavaliar sombras e luzes
Me tornei de mim meu Caravaggio:

A luz que me ilumina, minha amiga,
Certamente não é de graça, tem um ágio,
Que a sombra a ressalte é que me intriga...
.
12/02/2022

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

As doze sílabas fatais (de Alma Welt)

De mim mesma permaneço vigilante
Ou estarei então aqui ao Deus-dará?
Mero arbusto sou, pouco instigante
Ou um carvalho que enorme sombra dá?

Penso dar frutos, não bolotas de Natal,
Que, acho eu, serve apenas para esquilo
Ou tudo mais que quer que seja aquilo
Se não fosse outro carvalho como tal...

Está bem... então acolho à minha sombra
Se não puderem digerir estranhos versos
Num formato que o rigor ainda assombra.

Doze silabas contadas como favas
De algum dos Alexandres controversos,
Alma, semeias ou tua cova cavas?
.
11/02/2022


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Sereias (de Alma Welt)

 

Sereias - o/s/t de Guilherme de Faria, 2022, 40x50cm


Sereias (de Alma Welt)

De guria, acreditava nas sereias,
Sonhando ver o mar para avistá-las
Malgrado aqueles truques, cantos, teias
Colhendo marinheiros para amá-las.

Mas pensando bem sobre as histórias
Percebi de repente e com espanto
Que quase tudo emite aquele canto,
Que sem perigo as coisas são inglórias

E que a vida mais comum é Odisseia,
Pois sempre o risco corremos da paixão,
Só aos outros evidente má ideia...

Vida correu, então, pros meus amores
Eu vi trocar-se a ordem dos fatores,
Que sereia fui eu mesma e ilusão...
.
10/02/2022





terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A voz do carvalho (de Alma Welt)

                                     Alma e o Carvalho - o/s/t de Guilherme de Faria, 2022, 40x40cm

A voz do carvalho (de Alma Welt)


Houve tempo em que tateei nas trevas
Porque não acreditava nos meus olhos.
Como eu, maré de gente, havia levas,
Por si mesmas, só barreiras e escolhos.

Onde é que estou? Em vão eu perguntava,
Pois as repostas eram tantas a dispor
Como de vagas o uníssono fragor,
Que, perdida ia eu, e tateava...

Então cheguei à sombra de um carvalho
Que no meio das trevas era luz
E num mar de secura, era o orvalho.

E então do imenso tronco ouvi a voz:
"Teu olhar, somente ele, te conduz,
Já que na multidão estás a sós..."
.
(sem data)

_____________________

Nota
Alma Welt, como sempre simbolista, me fez lembrar da anedota relembrada pelo Olavo de Carvalho sobre Groucho Marx (dos Irmãos Marx, comediantes da Era de Ouro de Hollywood) que disse a um interlocutor num filme: "Então, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?"

domingo, 30 de janeiro de 2022

O poeta como vidente (de Alma Welt)

Pensar a vida ao mesmo tempo que vivê-la,
Prerrogativa é nossa, de poetas;
E se ao morrer viramos uma estrela,
Em vida alguns de nós somos profetas.

Rimbaud o disse com bem outras palavras
Na Lettre du Voyant, sua, famosa.
As pessoas, do presente são escravas,
Mas, vidente, o poeta, sofre e goza.

Ele viu homem e mulher dadas as mãos
E juntos caminhando lado a lado,
Não só como parceiros, mas irmãos.

Quanto a mim, não postergo meu encanto:
Lhes doo meu presente já encantado,
Eu, Alma, solitária, de amor tanto...
.
30/01/2022

sábado, 29 de janeiro de 2022

Por quê escrevo versos (de Alma Welt)

Escrevo um verso se quero ver mais fundo,
E a vida ante meus olhos flui e corre
Como, dizem, ao moribundo ocorre
No espantoso e último segundo...

E o mundo começa a tomar forma
Numa espécie de gênese modesta
No ventre da mulher que, simples, gesta
À espera do trem na plataforma...

Mas enquanto espero que o trem passe
Continuo a criar o meu cenário
De um pequeno universo rico e vário,

A esperar que configure uma visão
Que, se não revelar-me a Grande Face,
Deixe ao menos ver dos anjos o roldão...
.
29/01/2022