quarta-feira, 9 de agosto de 2017

As duas fontes (de Alma Wel

Amo, logo existo, diz minha alma
Contra esta minha vontade de pensar,
Originária do tal primeiro trauma
Que haveria do Jardim nos expulsar.

Mas o trauma, bem sabeis, também é sonho *
Na língua ancestral de minha avó
Cujos mitos, então, também proponho,
Da árvore Yggdrasil e Askr, não o pó.

Inconsciente derivado de duas fontes, *
Já que desde minha mãe açoriana
São judaico-cristãos meus horizontes...

Ó Alma, encruzilhada de dois mitos! *
Esta pobre poetisa com seus ritos,
Eis aí porque alguns julgam insana...

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09/08/2017

Notas
*Mas o trauma, bem sabeis, também é sonho - a palavra "trauma", difundida pela psicanálise, deriva do alemão "träum" = sonhar

*Inconsciente derivado de duas fontes- Alma se refere à teoria do "inconsciente coletivo" de Carl Jung, cuja "mitanálise" é feita de acordo com os mitos pertinentes às origens raciais e culturais do analisando. Por exemplo, se o indivíduo é alemão ou descendente de alemães, sua análise deve ser feita baseada nos mitos germânicos (do Valhalla, de Odin, das Valquírias, de Thor, da Árvore Yggdrasil, e do primeiro homem, Askr (não de Adão, criado do pó), etc... Mas se o paciente for de origem latina, sua análise deve ser feita segundo os mitos greco-romanos, mas também judaico-cristãos. Entretanto, curiosamente, se o indivíduo for francês, dependendo da região, a análise pode ser feita com base nos mitos celtas (gauleses) da criação. Os irlandeses, escoceses e mesmo ingleses, idem.

*Ó Alma, encruzilhada de dois mitos! - Alma Welt é descendente de avós alemães por parte de pai, Werner Friedrich Welt e de portugueses açorianos por parte de sua mãe, Ana Morgado.






Comp

domingo, 6 de agosto de 2017

O fruto e a saga (de Alma Welt)

Na mesa éramos seis, por muito anos,
E havia tantos risos, alegria...
Nosso pai e nossa mãe, eu e os manos,
Sim, éramos felizes e eu sabia.

Adviriam logo após as desavenças...
A serpente, o pomo, o anjo, a espada,
Independente ou não de nossas crenças
Também vimos de maneira declarada.

Eis porque carrego dentro em mim
Toda a ancestral herança humana
Em pleno processo rumo ao fim...

Então, se a cada verso reconstruo
Uma saga que através de mim emana,
É porque o sabor do fruto ainda fruo...

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06/08/2017

sábado, 5 de agosto de 2017

Realidade, ficção (de Alma Welt)

Quando colho flores no jardim
A vida se arruma em minha mente
E tudo fica claro dentro em mim,
Qual se tudo fosse igual, eternamente.

Tudo ocupa seu lugar num tabuleiro
E o movimento se torna irrelevante
Num mundo de signos primeiros
Que nada por instantes leva adiante.

Mas então me situo e escolho lances
Que repetem por estranha coincidência
Os melhores ocorridos nos romances.

A vida é a ficção acontecida,
Com ou sem a nossa interferência,
Realidade é crítica não lida...

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05/08/2017

A teia e o mel (de Alma Welt)

Os minutos, pressupostos pretendentes,
Me cercam pressionando-me a cabeça:
Descobriram o meu truque e, exigentes,
Minha teia esperam que eu desteça.

Dizem: Alma, tua mania de soneto
Te afastou de toda sociedade,
Prendendo-te e jogando-te num gueto
Com muros de palavras, na verdade...

Alma, quem se foi ou quem esperas,
A cada verso urdindo a tua trama
Quando fora rolam mundos e esferas?

E eu digo: minha teia é um painel
Da vida, mas que cabe a uma dama
Como abelha destilando o próprio mel...

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05/08/2017

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Imagem e Semelhança (de Alma Welt)

Seremos tão ingratos nos queixando,
Convidados ao banquete do Ocidente
E desde o berço nos empanturrando
Enquanto o povo de fome se ressente?

"Sim, a vida não é justa, tal é o mundo",
Dizia outrora meu antigo confessor.
"Mas a Justiça de Deus está no fundo,
Não questiones Seu infinito amor."

E assim fui pela vida, atarantada,
Falando das coisas que mal sei,
Quando daquele fundo não sei nada...

Mas quando olho a mim na superfície
Do espelho, é que percebo o que ganhei,
E é como se o próprio Deus me visse...

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04;08/2017

A Máfia do Soneto (de Alma Welt)

"Desta água não bebo", diz um dia
Todo aquele que vai ter dia de cão,
E um pássaro voando, eu não sabia,
É melhor do que tê-lo em minha mão.

"Pelo nariz ninguém me leva, não a mim"...
Isto disse um velhote meio tonto
E já levado pelo estranho Stavroguin *
Com dois dedos pela sala, assim de pronto.

"Do soneto não pertencerei à Máfia"
Digo eu, que me acusam já de vício
Por escrevê-los sem dor nem sacrifício...

Mas risíveis sempre soam as bravatas:
Levados, pela língua e pela empáfia,
Pelos narizes ou até pelas gravatas...

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04/08/2017

Nota
*E já levado pelo estranho Stavroguin
Com dois dedos pela sala, assim de pronto - Alma se refere à estranha cena do romance "Os Demônios", de Dostoiévsky, em que o jovem fidalgo Nikolai Vsevolodovitch Stavroguin, personagem central, numa recepção em sua casa se aproxima de um conviva, um velho, ao ouvi-lo dizer aquela frase que era conhecido por repetir, e com os nós de dois dedos de uma mão o arrasta por todo o salão, para escândalo geral, antes dele mesmo ter uma síncope e desmaiar, o que serviria para os amigos como explicação e mesmo absolvição para o seu inusitado gesto de afronta e humilhação a um velho tolo. Na verdade esse tresloucado gesto seria um prenúncio para as coisas terríveis que aquele nobre desencadearia na aldeia.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Insuficiência de fundos (de Alma Welt)

Amores meus, perdidos, sinto tanto
Que as coisas tenham ido pelo ralo.
Nem passaram de volta no gargalo,
Só esmolas demais para o meu santo.

Um espelho trincado, sem conserto,
Fragmenta-se em detalhes o amor,
Perdida a sua integridade e o acerto
Que dois corações pensam compor...

Ser sozinhos é afinal nosso mister
Do qual mal temos plena consciência,
Bocas ávidas a sugar o que vier...

Meus cheques afetivos eram nimbos,
Mas de fundos tinham certa insuficiência
Bateram e já voltaram com carimbos...

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03/08/2017

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Ponderações sobre o tédio (de Alma Welt)

Arauto do diabo é o nosso tédio,
Outrora também chamado spleen, *
E as flores do Mal, falso remédio,
Receitadas foram até pra mim...

Mas de Bach música venha, não florais, *
E o velho Baudelaire que me perdoe, *
Com o Cujo já não se brinca mais,
Disputando-se a alma antes que voe.

Fausto foi longe demais com seu Mefisto:
Nem o tédio justifica tal desmando
Embora o Bem e o Mal formem um misto.

Deus, livrai-me deste tédio insidioso
E mantendo sobre mim Vosso comando,
Não me tente fora dele nenhum gozo...

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02/08/2017

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Na fila (de Alma Welt)

Não serei aquela que se queixa,
Nem tampouco a que espera homenagens,
Aguardarei paciente a minha deixa
Mas também sei que não mais direi bobagens.

Por quê afirmas isso? Me perguntas.
E eu direi que espero ser chamada
Uma vez que estou na fila na calçada
Onde estão as esperanças todas juntas.

Fui honesta, reta, doce, compassiva...
Minha fraqueza era apenas a poesia,
Que é tudo que garante que estou viva.

Existir, privilégio ou contingência,
Não depende tão só da inteligência
Mas de um coração que chore e ria...

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01/08/2017

Sombras (de Alma Welt)

Sombras se acumulam no horizonte
E um clima de ameaça vem da Pérsia;
Se arme cada um, com a guerra conte
O mundo mergulhado em controvérsia...

Os bravos de Esparta eram trezentos,
E o mundo de novo está no fim.
Se miram leste e oeste, odientos,
Nem Semíramis passeia em seu jardim...

As hordas vem em ondas do Oriente,
Tudo reincide, é uma desgraça,
Mas agora a gente em Cristo se ressente.

E eu, no fim do mundo do Poente,
Colho flores enquanto o Tempo passa
Como se nada houvesse, simplesmente...

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01/08/2017

domingo, 30 de julho de 2017

Inocência (de Alma Welt)

É tão cheia de dúvidas minha fé
Que um fiel me aponta ou me acusa
De não tê-la de modo algum, até ,
Uma vez que a fé é cega e obtusa.

Mas meu Deus tolera minha teima
Em não abandonar minha razão
Já que o fruto comi e ele me queima
Produzindo em torno este clarão.

Minha ilusão faz sorrir Deus, divertido,
E Ele parece apreciar minha poesia
Com toda essa aparência de sentido.

Então, Alma, em torno a ti a aura,
Que só a verdadeira fé restaura,
É a da tua inocência à revelia...

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30/07/2017

O brinde (de Alma Welt)

A vida como o vidro é inteiriça,
E não permite restauro se trincada;
Um terço não sabemos de sua missa,
Se continua, ou não, quando acabada.

Não sabemos do Universo o mistério
Na pergunta que mais nos interessa
E diz respeito ao depois do cemitério
Quando vamos pra casa bem depressa

Mas antes passamos nalgum bar
Para tomar um gole de consolo
Ou a patética função arrematar.

Aproveitemos então para um brinde
A este nosso crime sem o dolo
De prosseguir qual se nada nunca finde...

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30/07/2017

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Palavras ao Senhor (de Alma Welt)

Prometo, Senhor, não mais queixar-me,
E também não questionar vossos desígnios.
Fui tola, meu Senhor, pois perdoai-me,
Nem sequer sabia ler os vossos signos.

Demais já perdoaste meus agravos,
Me cobristes de não merecidas bençãos;
Aqui estou novamente a criticar-vos,
Minha boca calarei com as minhas mãos...

Quem sou eu para exibir-me como faço,
Qual fosse portadora de algum lume
Do qual pecando às vezes me desfaço?

Senhor, não passo de guria sem noção
Mas da soberba não cheguei ao cume,
Malgrado o orgulho de ser Vossa criação...

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28/07/2017

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Ariadne em Náxos II (de Alma Welt)

Solto o fio da meada todo dia,
Um pouco mais, na espera de puxá-lo.
Há um duplo de mim que em mim confia,
Quanto ao Minotauro, hei de encontrá-lo.

Serei deixada em Náxos, a tal ilha
E ficarei jogada ao Zeus dará?
Meu labirinto foi mesmo a minha coxilha
Nas trilhas que ninguém mais andará?

E se por mim mesma abandonada
Por culpa de fútil esquecimento
Ou por negra e vã vela quadrada,

Tal foi o destino, não lamento:
Viria resgatar minha poesia,
Dionisos, o humor, minha alegria...
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25/06/2017

domingo, 23 de julho de 2017

Minha terra sem palmeiras (de Alma Welt)

Escrevo pra me situar na vida,
Minha bússola apontando para o sul
Onde está o meu ponto de partida
E onde o céu, por certo, é mais azul.

Minha terra jamais teve palmeiras
E o sabiá por lá é estrangeiro;
As corujas te observam, não te esgueiras,
O descampado te expõe o corpo inteiro.

Aves gorjeiam, sim, mas mais chilreiam
Os densos véus incríveis da andorinha
Que a atmosfera límpida permeiam.

E se descansas sob o ubu pampeiro
Pousas tua vista na longínqua linha
Do horizonte, que também é teu, inteiro...

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23/07/2017

sábado, 22 de julho de 2017

Entusiasmada (Alma Welt)

Nunca esperei que os meus sonhos fossem mais
Que sonhos, sem as vazias esperanças;
Realidade, vigilante capataz,
Pertence a outros nichos, outras instâncias...

Que então queres, pobre Alma, desta vida?
Pergunta-me um amigo, um tanto pasmo.
Eu, sorrindo, como coisa resolvida
Respondo que sou feita de entusiasmo.

Sim, pasme, pela vida e seus mistérios
Que são bem maiores do que o sonho
E tem outros requisitos e critérios.

O entusiamo não é 
naïf nem bisonho,

É engolir um deus, dizia o grego,
E perder, como quem sonha, todo apego...

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22/07/2017

sexta-feira, 21 de julho de 2017

A via verdadeira (de Alma Welt)

   
                                                                                                desenho de Guilherme de Faria, 1973

A via verdadeira (de Alma Welt)

Temos sempre tanto a ver e descobrir
Que uma vida, Senhor, é pouco, perdoai.
Tendo perdido muito cedo mãe e pai
Extraviei-me procurando só partir.

Depois perdida a ponta da meada
E estando a percorrer um labirinto
Que se apresentava como estrada,
Encontrei meu Minotauro e não minto:

Aprendi coisas então, belas demais
E também duras, da nossa natureza
Que, na verdade, Senhor, não revelais.

Recuperada a via verdadeira,
Pra voltar abro, Senhor, mão da beleza:
Tornai branca esta rubra cabeleira...

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21/07/2017


Nota
* Recuperada a via verdadeira,
  Pra voltar abro, Senhor, mão da beleza:
  Tornai branca esta rubra cabeleira... -


Neste terceto-chave está veladamente sugerida uma sutil marotice típica da Alma: Ela, para ganhar mais tempo de vida e se dizendo retornada ao caminho verdadeiro, oferece a Deus sua velhice (a cabeleira rubra que Ele lhe fez e que se tornaria branca).

A máscara do meio (de Alma Welt)

Vivemos controversas odisseias
No decurso comum de nossa sina
No plano da alma e suas idéias,
Nossa comédia, então, pouco divina,

Tragicomédia, eu diria, um tanto bufa...
Modo geral, verdadeira pantomima.
Arlequins somos nós no lufa lufa.
Plenitude? Inatingível colombina...

Palhaço triste, em geral pintura vã, *
Não irei mais uma vez corroborar,
No Inferno até Orfeu virou cancan. *

Tirado o humor sobra a tragédia
E os gregos jamais fizeram média,
Coube o patético a nós inaugurar...

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21/07/2017

Notas
*Palhaço triste, em geral pintura vã - Alma detestava essas pinturas, sempre muito ruins, de palhaços tristes, patéticos, derramando lágrimas, pela banalidade de sua concepção. Entretanto se comovia com a ária "Vesti la giubba", da ópera I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, que pela beleza pungente da música, conseguia transcender o patético e atingir a tragédia .

*No inferno até Orfeu virou cancan -alusão à opereta buffa "Orfeu no Inferno", de Jacques Offenbach, da qual um tema foi usado popularmente na dança do cancan, no começo do século em Paris no Moulin Rouge, e até hoje...

quarta-feira, 19 de julho de 2017

A testemunha (de Alma Welt)

Pra nós "tudo é relativo" enquanto vivos,
Mas não como o pobre Einstein entende
E ficou célebre por alguns motivos,
Sobretudo pelo que ninguém compreende.

No mundo tudo é erro e confusão
E o Caos é nossa herança registrada
Com a assinatura do nosso Pai-patrão
E uma cláusula de usufruto disfarçada

Que se refere à parte boa por um tempo,
A da nossa infância (quem supunha?)
No Jardim antes daquele contratempo.

E a quem possa interessar também assina
Um senhor que serviu de testemunha
Mas ria feio uma risada muito fina...

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19/07/2017

Minha Troia (de Alma Welt)

                                          Laocoonte - cópia romana antiga de um original grego. ( Museu do Vaticano)

Minha Troia (de Alma Welt)

Agora, neste inverno, só me ocorre
"A cruel fuga das horas" dos antigos,
Quando o dia nasce, a tarde morre,
Os anos a nos ter como inimigos...

Os espelhos, nossos falsos aliados,
Há muito se infiltraram em nossos lares
Com mentiras, lisonjas e agrados,
Cavalinhos de Troia como altares ...

E eu me insurjo apenas com palavras,
Impotente perante essa invasão
Que quer roubar e queimar as minhas lavras.

E sob poucos aplausos, umas vaias,
Ainda luto com a serpente da Razão,
Laocoonte de mim mesma, mas de saias.

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19/07/2017

Nota
Laocoonte era filho de Acoetes, irmão de Anquises; ele era um sacerdote de Apolo, mas, contra a vontade de Apolo, se casou e teve filhos, Antífantes e Timbreu. Quando Laocoonte estava fazendo um sacrifício a Netuno, Apolo enviou duas serpentes de Tênedos, que mataram o sacerdote e seus descendentes. Segundo os frígios, isto aconteceu porque Laocoonte havia arremessado sua lança contra o Cavalo de Troia.
Possivelmente a mais antiga referência ao mito seja uma tragédia perdida de Sófocles, que possuía mesmo nome. A lenda seria relembrada por Quinto de Esmirna em seu trabalho Posthomerica, uma continuação da Ilíada. No entanto, o relato é mais popularmente conhecido pela escultura que inspirou e pelo poema épico latino Eneida, de autoria de Virgílio no século I a.C.

Uma das expressões mais importantes da Antiguidade, sobretudo do período helenístico, é a escultura que representa Laocoonte e seus filhos sendo atacados. A obra foi objeto de estudo por vários historiadores da arte após sua redescoberta no século XVI. De datação incerta, as estimativas variam entre 140 a.C. até 37 d.C., época do imperador romano Tito (a mais aceita atualmente é 40 a. C.). Winckelmann, Lessing e outros tentaram avaliar a importância da escultura na estética grega, além de considerar uma possível relação com a Eneida.
( Wikipédia)

terça-feira, 18 de julho de 2017

A Sentença (de Alma Welt)

Sob um certo viés, ponto de vista,
A vida é insensata ou mesmo fútil,
Pois a experiência humana é revista
Como Sísifo, em seu tormento inútil.


Rolamos até o cume um só rochedo
Sem sequer a um outro juntá-lo,
Rolando-o para baixo, e nunca quedo
Podemos só na morte abandoná-lo.

Trabalho forçado, eis a sentença
Dada a nós por Deus, dono do fruto
Que até hoje produz tanta desavença.

Mas não falo por mim, mesmo no mundo,
Que não posso me queixar, porque desfruto
De um regime de ócio, mais fecundo...

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18/07/2017

O conserto (de Alma Welt)

"Ó Alma inconformada!"- disse Deus-
"Não te fiz assim teimosa e escabreante!
Não me obrigues a passar-te para adiante,
Pro ferreiro que conserta os erros Meus."

E eu fiquei quietinha e entrei na fila
Procurando ser boa e obediente,
Com muito medo daquela forja quente,
Eu que não sou de ferro nem de argila.

Mas depois me aproximando bem quietinha
Disse: "Senhor meu, não mais questiono
Quem veio antes: o ovo ou a galinha..."

"Também não vou perguntar pelo conserto,
Mas, Senhor, o tal ferreiro do abandono
Devolveria-me a Vós, após o aperto? "

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18/07/2017

RIP (de Alma Welt)

A gente sofre, Senhor, bem o sabeis...
Nos destes da alegria a alternativa
E a felicidade a uns mais hábeis,
Os virtuosos que ainda a mantêm viva.

Mas para a maioria impera o medo
Por não conhecermos os destinos
Além da porta negra do Segredo
Outrora até domínio de um rei Minos.

Por quê, Senhor, esta mente tão perdida
Se já demos no fruto uma mordida
E devíamos saber de alguma coisa?

Não nos destes tempo de enxergar
O que estamos realmente a esperar,
Além do RIP gravado em nossa lousa...

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18/07/2017

O fio perdido (de Alma Welt)

Estar convosco, Senhor, eu bem queria
Ainda esta madrugada, se possível.
Ainda pouco tive um sonho horrível:
Eu perdera do meu dom a sintonia

E estava sozinha a me queixar,
Tendo perdido o fio da minha poesia
E ao Éden não pudesse mais voltar
Como se eu o fizesse todo dia.

Sem avistar, Senhor a árvore e o fruto
De que eu tinha ao menos usufruto,
Solitária, bem no meio da coxilha...

A poesia é um plano de retorno
E eu ficara tão somente a olhar em torno,
Por um nada perdera a minha trilha...

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18/07/2017

segunda-feira, 17 de julho de 2017

O Livro Aberto (de Alma Welt)

Em versos minha vida é um livro
Do qual me reservei as entrelinhas
Resistentes do olhar ao mero crivo
E às questões mais óbvias, mesquinhas...

Estou naquilo tudo que eu não disse,
Tanto quanto nos versos mais diretos,
Construídos mais à custa dos afetos
Como se o puro Mal não existisse...

"Assim é fácil" -disse alguém- "reivindicar
Profundidade maior no que calaste,
Generosa e obscura como o mar..."

Mas a este respondo (ao fim de tudo)
Como o príncipe falante em seu contraste:
"O resto é silêncio"... e ficou mudo.

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17/07/2017

domingo, 16 de julho de 2017

Para escrever poesia (de Alma Welt)

Para se escrever boa poesia
É necessário se ter cara de pau
Como se antes poetas não havia
E tivesses descoberto o universal.

Esqueça tudo o que aprendeste
E passa a conhecer-te pelo verso
Que te revelará o que soubeste
Ou que em tua mente era disperso.

Se não ficares deveras surpreendido,
Com o queixo caído em puro pasmo
Ou não deres um grito de entusiasmo,

Chutaste para fora ou só na trave,
Não terás nem um soneto recebido,
Que te paga com o ouro de uma chave...

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16/07/2017

Há algo (de Alma Welt)

                            Ophelia - Sir John Everett Millais (Tate Gallery)

Há algo (de Alma Welt)

Tem abutres voando, há algo podre *
Nalgum lugar, por aqui, nesta comarca. *
Os peões, entres goles de um bom odre,
Desenterram um crânio e uma arca: *

Era de um humorista de outra era *
Pois seu sorriso alvar o denuncia, *
Seja ou não seja tudo uma quimera, *
E esteja eu em terras de poesia...

Meu pai morreu de olvido faz semanas *
E tenho medo de ver o seu fantasma; *
Não gostamos do meu tio, eu e as manas... *

Chamei a prima Ofélia pra ajudar *
A colher flores, mas tem crises de asma, *
Estava, coitadinha, a se afogar... *

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16/07/2017



Notas

*...há algo podre
Nalgum lugar, por aqui, nesta comarca - este verso ecoa a famosa frase "Há algo de podre no reino da Dinamarca", que abre a peça Hamlet de Shakespeare

*Desenterraram um crânio...
Era um humorista de outra era - versos alusivos à cena do coveiro e da exumação do antigo e espirituoso bobo da corte, Yorick, que Hamlet amara na infância e a cujo crânio se dirige num monólogo respeitoso.

*Seja ou não seja uma quimera. - alusão ao célebre monólogo "Ser ou não ser... " , de Hamlet.

*Pois seu sorriso alvar o denuncia - se refere ao sorriso branco da caveira.

*Meu pai morreu de olvido faz semanas - ( meu pai morreu de esquecimento) alusão em trocadilho ao assassinato do pai de Hamlet pelo seu irmão com a inoculação durante o sono de um veneno ouvido.

*E tenho medo de ver o seu fantasma - Alusão ao fantasma do pai de Hamlet, cuja cena abre a peça.

*Não gostamos do meu tio, eu e as manas - alusão ao tio de Hamlet assassino do próprio irmão para usurpar-lhe o trono e casar com a viúva sua cunhada a rainha Gertrude (as manas aqui são simplesmente as da Alma mesma, Lucia e Solange). Uma coincidência: a estância da família Welt se chama Santa Gertrude (antiga "Estância Farroupilha")

*Chamei a prima Ofélia pra ajudar
A colher flores, mas tem crises de asma,
Estava, coitadinha, a se afogar...  
  - este terceto é uma paródia da morte por afogamento, de Ofélia (noiva repudiada por Hamlet) enquanto colhia flores...

sábado, 15 de julho de 2017

O anjo no balanço (II) (de Alma Welt)

                                        Anjo no balanço - painel lateral esquerdo do Tríptico dos Anjos da Alma, de Guilherme de Faria

O anjo no balanço (II) (de Alma Welt)

De minha vida breve fiz balanço,
Mas não comum, desses contábeis ou morais,
Mas daqueles a que a cada avanço
Corresponde um mergulho para trás.

Tentei levar na minha vida tudo junto,
O passado o presente e o futuro,
Este não como uma sombra atrás do muro
Mas como o auge de um apuro...

Em resumo, num balanço sou guria
Com aquela pura razão mesma de ser,
Que confere ao balançar sua poesia...

E aquele que me ver cobrando asa
Não se espante de um dia assim me ver,
Já que a tive e a perdi longe de casa...

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15/07/2017

O Eco do Logos (de Alma Welt)

Da Poesia a sintonia fina
É difícil de manter, ou o seu foco.
Por isso mesmo eu pouco me desloco
Do centro rigoroso que a domina.

Por um quase nada ela se perde,
Ela, a palavra em sua essência,
Eco do Logos que um ou outro herde
Por dom que às vezes passa por demência.

Quando guria fiz meu primeiro verso
E como se o mostrasse ao universo,
Correndo pro meu pai eu fui mostrar

E ele sorriu, abraçou-me e me beijou.
Nada disse, mas do jeito que me olhou
Escreveria pra voltar àquele olhar...

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15/07/207

Meus oito anos (de Alma Welt)

Me lembro de brincar na minha rua
Antes de mudar-me para a estância.
Estava no esplendor da minha infância,
Pr'um guri (eu tinha oito) fiquei nua...



Gostava dos patins de chave e roda
E dos carrinhos também, de rolimã,
Os guris os construíam, era moda,
E eles me chamavam de alemã...

E eu ali no meio deles, tão feliz,
Correndo, pegando e até brigando,
Quase perdendo a virgindade por um triz.

Meus oito anos, plenos de alegria
E do que está na raiz da minha poesia:
Um mistério de nudez, de vez em quando...

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15/07/2017

sexta-feira, 14 de julho de 2017

O Tédio e a Alegria (de Alma Welt)

"Toda alegria quer eternidade..."
Lembro bem que assim falava Zaratustra,
Mas exige outrossim simplicidade
E uma certa inocência que a ilustra.

Mas como procurar a sapiência
E ao mesmo tempo inocência resguardar?
Lá estava o Fruto da Ciência,
Lindo, rubro, capcioso, a nos tentar...

Era uma armadilha preparada
E Deus bem contava com o tédio
Que mina a ordem toda da manada...

Ele mesmo inoculou-nos a inquietude
Para a qual só a Morte é Seu remédio,
E contra o qual lutei enquanto pude...

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14/07/201

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Ó meus amados (de Alma Welt)

Ó meus amados, o que de mim esperam?
Já não tenho soluções e nem respostas,
Há muito abandonei também apostas
E nem jogo numa quina que me deram.

Conselhos? Tenho escrúpulos de dar.
Está furado o meu melhor palpite,
Vendê-los não é direito, nem pensar,
Sou barca a que falta um bom rebite...

E eu coço um pouco o cocoruto:
Então para que sirvo? (boa pergunta),
Quero dizer uma besteira mas reluto...

Amados meus, estamos todos à procura,
Quem encontrar primeiro a nós se junta
E então vamos conferir nossa loucura...

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13/07/2017

O anjo atrás do muro (de Alma Welt)




O anjo atrás do muro (de Alma Welt)

Diz a lenda: Deus um gesto fez de tédio,
E então desceu à Terra um anjo escuro
Que se esgueirou por aí atrás de muro
Buscando quem andasse sem remédio.

Solidão, este era o nome do tal anjo
Que abordava devagar algum incauto,
E se agora conto isso é porque manjo
Do assunto, pois também sofri o assalto.

Lembro de um dentre nós, um pintor ruivo
De cabelo espetado meio rente,
Que de lobo solitário tinha o uivo,

Só uma orelha, mas olhar tão apurado
Vagava em tintas por solo indiferente,
Procurando tão somente ser amado...

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13/07/2017

quarta-feira, 12 de julho de 2017

O Duelo (de Alma Welt)

Por fora, na capa, o mundo é neutro
O conteúdo? O livro está no prelo...
Mal saídos de nossa caixa de feltro
Como pistolas carregadas, de duelo,

Atiramos para o alto ou no peito?
Há momento de honra em nossa vida:
Temos de ir ao campo, não tem jeito,
Não há como fugir, não há saída.

Manhã fria, doze passos sem deslizes,
O orvalho é da relva o cobertor,
Mas faltam testemunhas e juízes...

Eis o momento, interior e crucial:
Contemplando então o frio contendor
Vemos seu rosto, que é o nosso, tal e qual...

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12/07/2017

terça-feira, 11 de julho de 2017

O rio e a espada (de Alma Welt)

Nossa vida está suspensa por um fio
Embora não possamos nos dar conta.
Como é frágil nossa vida, não um rio,
Imagem que a si mesma se desmonta.

O rio que os poetas sempre elegem,
Cristalino e correndo para o mar
Levando flores ou corpos que emergem,
Que tanta água nos induz a mais chorar...

Mas a espada de Damocles, velho mito
Me parece bem mais justa e adequada,

Nem é preciso cumprir-se todo o rito.

Se por um fio a vida me pendia,

Amor me sustentava noite e dia,
E a vida assim vivi, rindo por nada...

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11/07/2017

segunda-feira, 10 de julho de 2017

A colecionadora (de Alma Welt)

Vivo cercada de quadros e poemas,
Não há mais um centímetro de parede
E o que do mundo cai na minha rede
Vira crônica, soneto, ou são só temas

Que coleciono assim, ávida, voraz,
Por não levar o mundo muito a sério
Mas com curiosidade contumaz,
Uma vez que quase tudo tem mistério.

Mas não pensem que não sou uma pecadora
Não me envolvo de verdade com o humano,
Que não passo de uma colecionadora...

Tenho um sonho recorrente: era vadia,
Pouco pano e na vida a todo pano,
Justamente porque isso mais doía...

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10/07/2017

A pomba o corvo (de Alma Welt)

Errar é o que produz nossos enredos
E o erro, mais história que os acertos.
Nossa vida é uma crônica de medos
Com momentos de ar entre os apertos.

Báh! Alma, incorrigível pessimista!
Dizem os que ainda esperam a pomba
Chegar com o tal raminho como pista
De que não cairá uma nova tromba...

Mas eu que não esqueço o velho corvo,
Penso que ele está aí no mundo
Mais à cata do que produzindo estorvo.

E me lembro de quanto eu o prezava
Com aquele seu negror profundo,
De como ele "jamais" me enganava...

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10/07/2017

domingo, 9 de julho de 2017

Juízes (de Alma Welt)

Me prometi não julgar outros humanos,
Permanecendo neutra e compassiva.
Mas, Deus meu, como é difícil ser passiva,
E embrulhar a vida em quentes panos!

Se vejo o mal no homem, sem remédio,
Tanto mais fico tentada a condenar,
Como se Deus precisasse de intermédio
Já que tem muito mais pra se ocupar.

Mas me dou conta que isso tudo é Tentação
E o Canhoto quer nos ver como juízes
Pois bem nos sabe o custo da Razão...

Mas como não condenar aquele bando
Que vem os frutos do trabalho nos roubando,
Já que, Senhor,  por um fruto nos maldizes?
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09/07/2017

sábado, 8 de julho de 2017

Belas manhãs de inverno (de Alma Welt)

Belas manhãs de inverno, de sol frio,
Com geada sobre a relva da coxilha...
Saudar a natureza era meu brio
A caminhar, passos largos pela trilha.

Ainda o faço, na verdade, enregelada,
Mas aquelas manhãs me voltam logo,
Em que eu era feliz, tão encantada
Como voltar a se-lo às vezes rogo...

Mas me parece carregar um peso a mais
Que não do corpo esbelto e flexível,
Mas sim do que na mente a gente trás:

Carga de novos pensamentos e a lembrança
Que certo eco devolve em outro nível,
Não o mesmo daquela pura infância...

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08/07/2017

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Oração perplexa (de Alma Welt)

Sabermos tão pouco na vida, do bom Deus,
Tanto mais nos arrogando teologias:
Coisa de rir, como a certeza dos ateus
Ou a crença material das utopias...

Perdoai-me, Senhor Deus desconhecido,
Não ouso nem dizer que Vos conheço;
Pouco sei de onde estou, do acontecido,
Ainda menos de onde vim ou meu começo...

Perplexa numa terra de aventura
Como cega tateando em tiroteio,
Nau faminta, deito sortes à ventura...

Mas, ó Senhor, meu coração se inclina
Pro Vosso lado, jamais me pus no meio,
Sobre o muro, sei, está a pior sina...

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07/07/2017

quinta-feira, 6 de julho de 2017

O tabuleiro (de Alma Welt)

Lentamente preparados para a vida,
Ou jogados no campo de batalha,
Somos seres de dor ou acolhida,
Mas colhidos, afinal, na fina malha.

Então lá vamos nós com toda a armada
Àquele campo onde ovelha vira lobo...
A vida é uma tragédia anunciada
E o mais feliz da Corte é sempre o Bobo.

Ponham cartas, senhores, peças movam,
Tabuleiro é melhor, quadriculado,
Ora no bem, ora no mal, alguns só louvam.

Mas no jogo de xadrez falta o coringa
Pois ele habita as margens, na restinga,
E ri de nós qual seja o resultado...
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06/07/2017

terça-feira, 4 de julho de 2017

A Porta e a fila (de Alma Welt)

Nosso Deus nos mantém na ignorância
Do que verdadeiramente nos importa.
Ele bem conhece a nossa ânsia,
Na fila de entrada ao pé da Porta.

Seguir missa eu tentava no domingo,
Mas já me contorcia em agonia
Pensando mais no tal "pé de cachimbo"
E na sua importância pra a Poesia...

Senhor Deus, perdoai a minha mente
Que só guarda da oração aquela parte
Que fala do que a pobre gente sente,

Nas lágrimas do vale e desta vila,
Que não dá pra eu pensar senão na Arte
E de como ela nos faz furar a fila...

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04/07/2017

O arrebol ou Um grão dos milhos (de Alma Welt)

Ah! meus amigos, que enrascada,
Em que fomos nos meter por esta vida!
Quantos perigos, uns de emboscada,
No meio da floresta anoitecida

Que é a nossa vida surpreendente
Por ser somente, assim, desconhecida,
E que foi jogada qual semente
Do claro para o escuro, e desabrida

De novo à essa luz que nos ofusca...
Não podemos, reparem, olhar o sol
Quando a luz é tudo que o olhar busca.

Deus brilha demais, mas nos deu cílios
Para filtrar a Sua luz, e o arrebol
Que é uma palhinha só, seu grão dos milhos...

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04/07/2017

Os amigos se vão (de Alma Welt)

(para Celina Lima Verde, in memoriam)

Os amigos estão indo, eles se vão,
E não nos pedem licença, simplesmente,
Num piscar de olhos, deixam-nos na mão,
Desaparecem, sem mais, na nossa frente.

Abandonam-nos, os amigos tão queridos,
Como se fosse, assim, algo possível,
Sem saberem que guardamos comovidos
A imagem sempre viva, imperecível

De sua passagem adorável e dos dias
Em que fomos tão felizes, ou nem tanto,
Mas rindo à beça ao escapar das frias...

Já os guris se vão, como se afoitos,
Aventureiros, por quê pro mesmo canto?
Deve haver algo lá mais que biscoitos...

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04/07/2017

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Dentro e fora (de Alma Welt)

Temos muito que fazer, limpar a casa,
Varrer, bater os bons tapetes nos varais,
Espanar, lustrar, lavar, polir os metais,
Cuidar daquele cano que ainda vaza...

Prendas domésticas, Alma, a esta altura?
Bem, desculpem, não me peguem no concreto;
Falo sempre de dentro, ou na mistura
Da alma com a matéria, pra dar certo.

Dentro e fora, a vida é dupla ou dúbia
E vivemos nos dois reinos, na fronteira
Um pé em cada lado, Egito e Núbia.

De um lado, o antigo e grandioso,
Do outro, negro, igualmente belicoso,
Enquanto te preparas pra ir à feira...

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03/07/2017

domingo, 2 de julho de 2017

Não dá assunto (de Alma Welt)

Malgrado de alegria uma vontade,
Báh! Como é triste, senhores, o destino
Comunal de toda a humanidade
Regida pelas regras do intestino...

Animaizinhos somos, e engraçados,
Correndo amiúde ao WC,
Os ricos tanto quanto os despojados,
A realeza tanto quanto eu e você.

"Minha filha,"- meu pai disse-"sinto muito,
Não fale jamais do baixo ventre,
Te asseguro que não deve dar assunto"...

"A nós foi dada também dignidade,
Uma aura a cada um que chegue e entre,
O resto todo é tão só necessidade"...
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02/07/2017

Sem Razão (de Alma Welt)

"No Céu querer entrar, às custas da razão
É como apresentar fruto roubado
Ao proprietário o hóspede ladrão
Como um tolo ainda disfarçado..."

O padre no domingo assim pregava
Na nossa capela lá na estância,
E eu guria, perplexa e em ânsia:
"Como faço para entrar?"( assim pensava).

Então diante do padre me ajoelhei
No confessionário um certo dia.
Candidamente, muito séria, perguntei:

"Senhor padre, eu não mais quero ter razão,
Como faço pra escrever minha poesia
Sem palavras, e tão só com o coração?

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02/07/2017

sábado, 1 de julho de 2017

Palavras ao Senhor (de Alma Welt)

Finalmente haverá segunda chance
E teremos afinal paz alcançado?
Teremos dobrado o nosso alcance,
Entenderemos um pouco do riscado?

Ao Vosso lado finalmente sentarei
À mesa de um banquete. Sóbrio ou lauto?
Minha fome de saber terá cessado?
O banquete é interrompido pelo arauto?

Saberemos afinal a que vem tudo?
Cessará toda a minha inquietação?
Finalmente o coração estará mudo?

Senhor, falo demais, sou falastrona!
Boa fé faz outro tipo de oração?
Mas pelo menos, Senhor, não sou chorona...

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01/07/2017

sexta-feira, 30 de junho de 2017

A Cornucópia (de Alma Welt)

Mil sonetos, e nenhum é uma cópia.
"És uma esganada"- diz um amigo-
"Assim esgotarás a cornucópia,
Se trata de poesia e não de trigo."

Mas se Deus me permitiu o copioso
Não a cópia de mim mesma, mãos à obra.
Só Deus é realmente generoso:
Fez estrelas demais e quem O cobra?

Quanto a mim, sou suspeita até de vício,
Pois se paro de escrever, eu fico louca,
Tenho mais de uma moral, como Vinício. *

Falo sério... escrever é minha missão
Dada por Ele, e por certo não é pouca,
Deus sussurrou-me para carregar na mão...

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30/06/2017

Nota
*Tenho mais de uma moral, como Vinício - perguntado por uma jornalista, como ele podia fazer tantas coisa, como escrever poemas, fazer canções, cantá-las, escrever crônicas, e ainda cultivar os amigos, Vinícius respondeu. " É que eu sou plural, do contrário meu nome seria Vinício de Moral... (rrrrrrss)

Aviso aos navegantes (de Alma Welt)

Repasso muitas vezes no meu íntimo
Inteira a minha vida, num balanço,
Com rigor nos detalhes, desde o ínfimo
Pecadilho, de que ainda sinto o ranço.

A vida é um encadear de circunstâncias,
E sob um olhar assim só há justiça;
A perda é pois um fruto de ganâncias,
Não se amarra cachorro com linguiça.

Pedir perdão a Deus, só resta então
E também a quem tenha machucado
Ou porventura a quem não pude dar a mão.

Bom cabrito não berra, diz o povo,
Pois aviso aos navegantes nos foi dado:
Honestamente não pões de pé um ovo...

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30/06/2017

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A grande lembrança (de Alma Welt)

Bem queria só lembrar dos tempos velhos
E para trás também deixar o atual,
Certamente não como escaravelhos
Rolando bosta, de costas, no terral...

Mas sim ter uma visão mais fidedigna
Do que foi a minha infância, de verdade,
Sem a pílula dourar, ou mais indigna,
Lamentando as perdas com saudade...

Entretanto minha infância está em mim
Bem entranhada na pele que me compõe,
Mas de uma noite o cheiro do jasmim:

Ali estou eu, guria em branca saia,
Já tentada com o que um guri propõe,
Antes que a memória se me esvaia...

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29/06/2017

O argueiro e a trave (de Alma Welt)

Aos idiotas façamos vista grossa
Mas não ao Mal em si, que é muito grave.
No olho deles o argueiro apenas coça,
Mas no teu próprio olho é uma trave.

É o que Jesus dizia (mais ou menos),
E quem somos pra sequer entrar no mérito?
Sua palavra não é problema de somenos
Mas levanta questões para um perito...

Não à toa lancei mão da falsa rima
Pra da minha professora me vingar:
"Guria tola, mude o acento de lugar!"

Mas já estou divagando e me perdi...
Comecei com a melhor matéria prima,
E o argueiro no olho alheio apenas vi...

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29/06/2017

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Politicamente incorreta (de Alma Welt)

Tenho vontade, muitas vezes, de gritar,
Como Pessoa morder a fundo a mão *
De tão cruel insensatez nos rodear
Sem que possamos sair na contramão

Da torrente invasiva da manada
Que se declara correta na política
Contradizendo toda a noção crítica,
Invertendo a razão por Deus nos dada.

Mas não entrar nessa polêmica jurei,
Para ficar naquele plano ingenuo só,
De Amor, que verso a verso semeei.

E se me permitem e me perdoam,
Volto ao jardim maternal de minha avó,
Antes que as minhas mãos meus dentes roam...

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28/06/2017

Nota
*Como Pessoa morder a fundo a mão - Alma se refere a Fernando Pessoa e estes versos do poema Opiário, das Ficções do Interlúdio, do heterônimo Álvaro de Campos:

"Tenho vontade de levar as mãos
E morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos. "

A sabedoria das avós (de Alma Welt)

Talvez eu tenha pouco a acrescentar
Ao saber que o povo simples acumula
E que somente rebaixado vai faltar
Na praça, em rebelião, à turba fula...

Me refiro, sim, àquele comum senso,
E ergo loas ao popular acervo
De ditos, rimas e ditados, já tão denso
Que sem eles um discurso "dá no nervo".

Mas para cair bem uma anedota
É necessário o contador saber o vão
Em que introduzir sua colher torta.

Quão pedante o político ou poeta,
(se o geral entendimento é sua meta),
Que de um dito de sua avó não lança mão...

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28/06/2017

terça-feira, 27 de junho de 2017

Um dia mais (de Alma Welt)

https://youtu.be/rvE7aM66-BM

Um dia mais (de Alma Welt)

Um dia mais, tal como aquele da canção
Dos Miseráveis, no mundo ainda ecoa,
E me põe esperançoso o coração:
Viver um dia mais, nem que me doa.

Nas ruas, pra tirar a tirania
Ou dentro de um quarto em frente à tela
Com aquele entusiasmo que havia
No tempo da candeia ou luz de vela.

Barricadas de clamor, furor sagrado
Na luta que é do povo, por direito
De nunca, nunca mais ser enganado.

Este amor ao povo em seu conjunto
Me comove por ainda o ter no peito
Um dia mais, mais um dia, e canto junto!

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27/06/2017

O sonho do rei nu (de Alma Welt)

Ter um soneto ao menos cada dia,
Que não me falte, Senhor, senão eu morro.
Dodecassílabo, sim, eu preferia,
Uma certa mania em que incorro...

Cada qual com a sua loucura, bem sabemos,
E quem pode me julgar por tal conduta
Se forçados demais há já nos remos
E meu dia é sonho e não labuta?

Não faço mal algum, eu sei que é pouco,
Pros que gostam mais de espinhos que da rosa
E me veem acalentando um sonho louco.

Mas sonhar sonhos é tudo o que eu sei,
Não ideais de origem duvidosa
Mas dos que fazem dum ser nu, um belo rei...

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27/06/2017

Manhã fria ou As botinas de Van Gogh (de Alma Welt)

                                                                     As botinas de Van Gogh

Manhã fria 
ou As botinas de Van Gogh (de Alma Welt)

Não diria, ó manhã fria e enevoada,
Que da desesperança és o inverno, *
Mas acordo feia e estremunhada
Pensando na madeira de um tal terno *

Em vez de meu vestido branco e longo
Em que costumo andar por esse campo
Colhendo ervas, flores e um ditongo
Que usarei num verso oblíquo e manco.

Como parece inútil essa rotina
Em que tudo, cedo ou tarde, se transforma
Não como de Van Gogh a sua botina

Cheia da dignidade da pobreza
Que de palha um acento humilde forma *
Do pobre artista o trono em realeza...

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27/06/2017

Notas
*Que da desesperança és o inverno - alusão ao famoso primeiro verso do monólogo do rei que abre a peça Ricardo III, de Shakespeare; "Este é o inverno da nossa desesperança... "

*Pensando na madeira de um tal terno- Alma alude a um caixão de defunto, isto é, morrer (na imagem popular: "vestir um terno de madeira")

*Que de um velho acento humilde forma
do pobre artista o trono em realeza - alusão a um outro quadro famoso de Van Gogh, o de sua cadeira de acento de palha...


segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Farol (de Alma Welt)

O mundo inteiro está dentro de nós
E saberemos se cessarmos o barulho
Como um rio desaguando em sua foz
Num poder imenso em seu marulho...

Ouçamos o silêncio dessas águas
Como também a sua fúria colossal;
Esqueçam seus fracassos, suas mágoas
Que estas fazem um ruido tão banal...

Mas seremos um farol ou o faroleiro
Se conscientes da nossa utilidade
Fazemos o que é justo e verdadeiro

E acendemos um espelho sob a derme
Que se alimenta do fogo da Verdade
Que a Terra exige ao menor verme...

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26/06/2017

domingo, 25 de junho de 2017

Extremada (de Alma Welt)

A vida guarda nossos passos, mal ou bem.
Não passamos, no geral, em nuvem branca.
Alguns de nós agem só como convém,
Outros dispostos a até quebrar a banca.

O mundo é confuso, heterogêneo,
Mas do caos vez por outra nasce a flor
Que fará a diferença, que é o gênio,
Que nos restaurará a fé e a cor...

Sem Mozart Van Gogh e até Rimbaud
Se eu mesma conseguisse ter vivido,
Sem Beethoven eu preferia ter morrido.

Mas se me dizes: "Chega disso, Alma, pô!
Sempre extremada em teus dizeres!"
Eu então fico bem grata por me leres...

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24/06/2017

sábado, 24 de junho de 2017

Sobre a Luz (de Alma Welt)

O mundo não é só aqui e agora
Mas toda a sua trajetória desde a Luz
Que rompendo as trevas, muito embora
Alguns a evitemos, nos conduz...

Quem não se atrairia por seu brilho
Ao menos como simples mariposa
Ou como as galinhas pelo milho,
Ou então por estas mesmas a raposa?

Efeméridas diante da eternidade
Nossa vida é um piscar vista de longe
E mal chegamos a ser vistos de verdade.

Mas se Amor acrescentarmos à fagulha,
Nosso brilho talvez nem o Tempo esponje
E o camelo então passe pela agulha...

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24/06/2017


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About Light (Alma Welt)

The world is not just here and now
But all his trajectory from the light
That breaking a darkness even though
Some will avoid it, guide us ...

Who would not be attracted by its brilliance
At least as simple butterfly
Or like chickens by the corn,
Or by these same the fox?

Ephemerides in front of eternity
Our life is an intermittent view from afar
And we could barely be seen for real.


But if Love enters the spark,
Our brightness may not even fade
And the camel then goes through the needle ...



____________________________

E agora uma transliteração que acabo de fazer pelo menos com ritmo e rimas

About Light 
(Alma Welt)

The world is not just here and now
But all his trajectory from the light
That breaking the darkness at night
Even Some will avoid it, guide us all ...

Who would not come when light borns
At least as butterfly or even ox
Or like chickens by the corns,
Or in the farm those dumbs, by the fox?

Ephemerides in front of eternal view
Our lifes, whose intermittent spark was made,
May be barely could be seen for real.

But if our Love enters like a fiddle,
Our brightness may not even fade
And the camel even can goes through the needle...
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6/24/2017



Final pós moderno (de Alma Welt)

O suspiro era o nosso último rito,
Agora um bip bip (brincadeira!...)
Que cessa depois virando um apito
Chamando atarefada enfermeira.

Não haverá tuas últimas palavras,
Que ninguém, de qualquer modo, quer ouvi-las,
Nem um único verso de tuas lavras,
Que pra colhê-las já não faziam filas...

Teu nariz antes nobremente erguido
Ostenta agora uns tubos transparentes
Último elo com a vida, conhecido...

Mas junto ao leito, um ou dois parentes
Pensarão em ti por mais um só momento,
Com alívio: fim do seu (deles) tormento...

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24/06/2017

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Sonetinho político (de Alma Welt)

"Esperemos, todavia, mais um dia.
A condená-los não nos precipitemos.
Eles morrem dos seus próprios venenos,
Deus nos dá o livre arbítrio, mas vigia."

Assim disse um mestre pr'um discípulo
Que queria uns traidores condenar,
Mas não pensem que a trama manipulo,
Até usando a rima pobre pra fechar...

Do rei então chegaram os soldados
E cercaram o palácio com canhões,
Esgotadas mil e uma opiniões.

Então disse o mestre para o aluno:
"O problema não é serem malvados
Mas é que o poder muda de turno..."

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23/06/2017

O Poço (de Alma Welt)

De um poço uma vez me vi no fundo
Mas flutuando sem sequer relar o pé.
Então meio descrente deste mundo
Eu pensei em descer um pouco até...

"Senhor Deus, só preciso meu impulso
Para a Vós eu subir rápido e bem."
Mas então fui agarrada pelo pulso
E puxada por um anjo ou por alguém.

Então Deus me disse (creiam ou não):
"Alma o que lhe falta é humildade.
Pensa que subiria sem minha mão?"

"Só com meu consentimento a folha cai...
Quem acha que lhe deu curiosidade
Tamanha, que de um poço ao fundo vai?"

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23/06/2017

quinta-feira, 22 de junho de 2017

A Nova Nau Catarineta * (de Alma Welt)

Navegamos nestas águas obscuras
Das quais só enxergamos superfície
Que não pode refletir nossas figuras
Sem misturá-las com a imundície.

Capitão, ó capitão, mudai o curso,
Sou seu vigia, assim me nomeastes!
O piloto, nomeado por concurso
Não conhece destas águas os contrastes.

Certamente navegamos sobre escolhos,
Invisíveis que estão aos nossos olhos,
Disfarçados seus perigos pelas vagas.

Na vida assim como em sujas águas
Somos dados lançados à ventura,
Nesta Nau Catarineta que perdura...

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22/06/2017

Nota
* Nau Catarineta - é um poema narrativo do tempo do Brasil colônia e que está na raiz do cordel nordestino, sendo talvez uma espécie de precursor do gênero. Conta a história de uma nau de nome catarineta, que perdida no oceano há meses, a tripulação toda em agonia de fome "lança sortes à ventura" , isto é jogam dados para ver quem seria morto para servir de alimento aos outros ( canibalismo mesmo!) . A sorte caiu sobre o próprio capitão, que para ganhar tempo , manda o gajeiro (vigia) subir no "tope real" para ver se avistava "terras de Espanha, areias de Portugal". O gajeiro sim, avista e mais: três donzelas debaixo de um laranjal, "uma na teia a tecer, outra na roca a fiar/a mais bonita das três daqui a ouço cantar" ... "vejo mais: espadas nuas que vêm para te matar ... "No final o capitão , dizendo: " Minha alma entrego a Deus, e o meu corpo eu dou ao mar", se atira às águas. Mas um anjo desce e salva o capitão, retirando-o das águas. A Nau Catarineta chega afinal "a um porto de mar".


quarta-feira, 21 de junho de 2017

Injustiça (de Alma Welt)

Conheci um velho sábio realista
Que tendo ele destrinchado muitos tomos,
Dizia não haver pura injustiça
E que tudo dependia do que somos,

Que sofremos somente por defeitos
De nosso próprio caráter meio tosco
E que as virtudes tem sempre bons efeitos
Como dizia o nosso bom Dom Bosco.

Mas o erro percebi de sua premissa
Pois a imperfeição do mundo só consiste
Justamente na falta de justiça

Quando vejo uma criança esfaimada
Sem nenhum motivo justo vitimada,
Nós, periquitos, a desperdiçar alpiste...

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21/06/2017

Mundo Impressionista (de Alma Welt)

Para entender o mundo e a vida
Precisamos um pouco de distância
Pra enxergar pontos na tela em sua ânsia
De somarem-se pra ser vista e entendida.

Assim, como um quadro, mais ou menos,
Que nós mesmos pintamos apressados
Mas não como coisa de somenos
Ou buscando conquistar interessados.

Muito de perto e à primeira vista,
Vede, o nosso mundo impressionista
Não era o que todo mundo via.

Mas na distância certa, quê beleza,
Se descortina a verdadeira natureza
Do caos que dissimula a harmonia...
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21/06/2017

A Barqueira (de Alma Welt

Temos todos que atravessar o rio,
Não podemos simplesmente aqui ficar.
Sempre há um grande rio a nos cortar
E nesta margem estou que não me fio.

Olhai o sol, vai nascer no outro lado
Onde as grandes pastagens são mais verdes
Como os olhos de alguém que eu tenha amado
Antes de eu me entregar e vós me terdes...

Como poeta, barqueira confiável
O óbulo não cobro e sou afável,
Não sinistra como aquele velho guia,

Um morto a oferecer o seu serviço,
Cobrando de um povo assustadiço,
Fazei, então, comigo, a travessia...

.
21/06/2017

terça-feira, 20 de junho de 2017

Foi-se Martello... (de Alma Welt)

Ser bom poeta é ter os pés na terra,
Ao contrário do que muitos apregoam.
É ser lúcido, condição que aberra,
Numa terra onde os sonhos sobrevoam.

Sonhos de grandeza ou de maldade,
Estes últimos bem mais numerosos
Proliferam no campo e na cidade
Com seus falsos devaneios rumorosos.

Aqui no bairro, uma mulher se despediu
Do marido, o conhecido seu Martello,
E acenando disse "Foi-se! Ele partiu!

Agora chora a viuvez desencantada
Tendo desmoronado o seu castelo,
Sem Martello, já que foi-se, sem mais nada...

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20/06/2017

A Barca do Esquecimento (de Alma Welt)

Se de bajuladores tu não gostas,
Por que Deus gostaria, não é verdade?
Neguinho a toda hora de mãos postas
Os joelhos no chão, falsa piedade...

Mas o momento superior, de contrição,
É uma imensa pena disto tudo,
Do sofrimento real por tua nação,
À dor de quem ainda sofre mudo

Uma vida miserável, de agonia,
Sem real perspectiva de um alívio,
Já caído nas garras da Utopia...

De Deus o Reino quase tudo abarca,
Mas um monte escolhido pelo oblívio
É justamente onde foi pousar a Barca...

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20/06/2017

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Flores falsas (de Alma Welt)

Descontando serem meio interesseiras,
Só as flores são de fato generosas,
Pois dão mais do que cobram, como as rosas
Que os espinhos relevamos, por besteiras.

Existem as carnívoras, entretanto,
Que nos parecem personagens de terror
Que nos causam tanto medo quanto espanto
Com dentes grandes ou somente mau odor.

Até as flores têm seu paradoxo,
Como um crente fiel muito zeloso
Disfarça um fanático ortodoxo.

Por isso precisamos sobriedade
Pra não sermos com a nossa dubiedade
Flores falsas num mundo já enganoso...

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19/06/2017

A cruel harmonia (de Alma Welt)

Para estar em paz com a natureza
É preciso alcançar nossa harmonia.
Vede o voo da coruja, que leveza!
E o macho alfa da alcateia como guia.

O bote da raposa sobre a neve
E o balanço do chita em disparada;
O mergulho da águia após se eleve,
Já quase nas nuvens, sua emboscada.

O sonar do morcego, o olho do lince,
Da cascavel o chocalho generoso
Para dar um aviso ao presunçoso...

Mas dou-me conta de que tudo é predação,
E o homem com seu "veni, vidi, vinci"
Teve tanto a quem puxar na Criação...

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19/06/2017

Cartas marcadas (de Alma Welt)

O Tempo nos conjuga o tempo todo,
Brincando, báh, conosco nos três tempos,
Dando às vezes com a gente nalgum lodo
Ou somente inventando uns contratempos.

Um cozinheiro gentil que nos cozinha
A fogo lento com temperos de ironia;
Falso vidente o final nos advinha,
Que em cartas marcadas já o sabia.

Aquele bobo da fortuna, ou coringa,
É carta descartada em nosso truco,
Que o gaúcho bebe mate e pouca pinga.

Mas sabemos, nada adianta nosso zelo
Se tivermos que morrer por um trabuco
Ou rezando a Deus no leito e quase a vê-Lo...

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19/06/2017

domingo, 18 de junho de 2017

Oração espertinha (de Alma Welt)

Deitei-me sob o meu umbu pampeiro
Após ter muito andado na coxilha,
Das gramíneas sentindo o doce cheiro
E ouvindo o som da vida que fervilha.

Então pensei: isto tudo é um presente
Da Natura que é Deus disseminado,
E é assim que Ele se faz onipresente
Pois em cada segmento unificado.

Assim aconchegada em vasto colo
Eu estive por momentos tão completa
Que nem mesmo pousava sobre o solo.

Não me solte, Senhor, vos peço, nunca mais!
Já estou no Céu, que é a Vossa meta,
Morrer agora seria andar pra trás...

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18/06/2017

sábado, 17 de junho de 2017

Receita para um feriado prolongado (de Alma Welt)

Temos muito o que fazer dentro de nós,
A começar: tirar teias de aranha
E espanando esse nosso pó, após,
Polir pratas se isso não as arranha.

Depois dentro enfeitar com bandeirola
Senão com nosso estandarte da paixão;
Então botar um bom disco na vitrola,
De preferência a nona, aí à mão.

Sim, a Ode à Alegria de Beethoven
Parceria com o Schilller, mas bem alto
Pois assim nossos vizinhos também ouvem.

E então regendo com entusiasmo,
Abrir os braços correndo até o asfalto
Entre carros que buzinam, o povo pasmo...
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17/ 06/2017

sexta-feira, 16 de junho de 2017

As Invasões bárbaras (de Alma Welt)

Estamos na beirada, não no meio,
Do abismo nascemos numa borda.
Brincamos, tolos, no campo de centeio, *
Falta o apanhador ou uma corda. *

Diante deles, como somos indefesos!
Mas tão só no mau sentido inocentes,
Em espírito tornamo-nos obesos
E estamos precisando ser valentes.

Por nossa atual fraqueza e covardia
E de nossos vãos tremores de maleita,
Do Mal não se obtém nenhum proveito.

Bárbara invasão já se anuncia,
Enquanto a canalha rola e deita
Pintemos novamente a cruz no peito...

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16/06/2017


Nota
*Brincamos, tolos, no campo de centeio,
Falta o apanhador ... - alusão ao episódio chave que dá nome ao livro "O Apanhador no Campo de Centeio", de JD Salinger.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Por quê não te calas? (de Alma Welt)

Uma ou outra pessoa, temerosa,
Se afasta de mim, furtivamente,
Por medo da verdade em verso e prosa,
Deste meu questionamento permanente.

"Por quê não te calas, Alma inquieta?"
Pensam essas pessoas, eu presumo.
"Já falaste bastante, estás completa,
Já fizeste da vida um bom resumo... "

Mas destas pessoas desconfio
Já que querem me calar com indulgencia
Ou docemente me fazer perder o fio.

Sou doce, mas com um pequeno travo.
Rosa com espinhos de emergência,
Rosto meigo que protege um peito bravo...
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15/06/2017

Onde reinam os lobos (de Alma Welt)


Onde reinam os lobos (de Alma Welt)


Dentro em nós, num país de gelo e sombra
A alcateia reina absoluta,
Patas na neve macia como alfombra,
Silenciosos, furtivos, sempre em luta

Contra a fome de um reino contingente
Que avança no nosso território,
Não obstante o falso palavrório,
Já que tudo se passa internamente.

Ninguém estende a mão, braço esticado
Para um dócil focinho, engano ledo,
Que este cão nunca foi domesticado...

Onde os lobos reinam em nossa alma
Raramente voltamos, pelo medo
Que nós temos de lhes dar a nossa palma...
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15/06/2017

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Em Nova Temporada (de Alma Welt)

O rastro que deixamos nesta vida
E que pode como trilha ser seguido,
Tem por certo nossa marca definida,
A digital da alma e seu sentido...

Mas não quero ser assim tão taxativa:
Existem almas com uma passada leve
Que não deixa impressão ou marca viva,
Conscientes demais que a vida é breve.

Mas eu, graciosa ou estabanada,
Dancei, cantei, girei minha bengalinha
Esperando por Deus ser contratada

Não apenas pr'uma exibição privada
Que só Ele reconheça como minha,
Mas pra voltar numa nova temporada...

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14/06/2017

Chocolate com pimenta (de Alma Welt)

Quantas vezes eu já pensei em desistir...
Perdoem-me, amigos, minha fraqueza,
Num mundo duro e seco fui cair,
Contrário à minha doce natureza...

É verdade que uma dose de ironia
Apimentou meu relacionamento
Com vocês através da minha poesia,
Fiel que sou à deixa do momento:

Perco o amigo mas não perderei a rima
E por isso fui tachada negligente,
Ocupada demais com a auto-estima.

Mas garanto, amigos meus, sou inocente,
Não como uma criança sem maldade,
Mas sim como uma criança de verdade...

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14/ 06/2017

terça-feira, 13 de junho de 2017

Alma e o Lobo-Guará (de Alma Welt)

                                      Alma e o Lobo - óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 2006, 150x150cm 

Alma e o Lobo-Guará (de Alma Welt)

Entre tantos caminhos que se abriam
Escolhi pelo jeito o mais ameno,
Aquele em que até os cães se fiam
E o capim pro meu cavalo, puro feno...

Entretanto, a poesia é uma armadilha
Cruel, terrível, de pegar lobo-guará,
Que os malvados armam na coxilha
Para quem anda por aí ao Deus dará.

Bah! Que engano ledo é o mar de flores,
Antes ficasse co'a avó em seu jardim,
O que me evitaria tantas dores...

Mesmo assim andei nua pela vida
E fui lobo e caçador, ambos de mim, *
Quase só por mim mesma enaltecida...*

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13/06/2017

Notas
*E fui lobo e caçador, ambos de mim - uma alusão ao verso "Eu, caçador de mim... ", da canção famosa de Milton Nascimento.

*Quase só por mim mesma enaltecida - a chave de ouro deste soneto é ilustrada com precisão na minha pintura "Alma e o Lobo", pelo gesto de mão para o alto da poetisa nua...

(Guilherme de Faria)

O caminho (de Alma Welt)

Realmente, amores meus, eu sinto tanto
Que demos com os nossos burros n'água,
Que a nossa vaca foi pro pântano
E que minha rima falsa causou mágoa.

Dei de mim o que melhor me parecia,
E se, ao menos, não falhei com a poesia,
E nela nunca abjurei a minha fé,
Alguns já dizem que me dei tiro no pé...

Arruinei a minha estância e meu vinhedo
Que agora seco está (não mais seu vinho)
E minha casa em ruínas mete medo.

Mas se o vento retomou a minha estância,
O mesmo frio minuano de minha ânsia,
Nada foi chegada mesmo, só caminho...

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13/06/2017

Caminhando entre as flores (de Alma Welt)

Caminhar entre estas flores me foi dado
Como um dos meus muitos privilégios,
Que foram como que presentes régios
Ofertados pelo Deus que os tem criado.

Não vivi em terra árida mesquinha
Que, bem sei, também as há pelo planeta.
E se minha caminhada é tão sozinha
Não recomendo a outro que a cometa.

Mas bem cedo percebi que vim pra dar
E vivendo em plenitude e abastança
Bons amigos não iriam me faltar...

A solidão entre flores foi escolha:
Do "amor-perfeito" se não tive a aliança,
A mim não foi vedado que Amor colha...

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12/06/2017

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A hora marcada da Alma (de Alma Welt)

O melhor de mim é o desespero,
Surdo, pálido, contido, amordaçado,
Que me dá esta tez branca, um certo esmero,
Que alguns pensam ser um anjo disfarçado.

"Como? O que dizes? Não blasfemes! "
-Clamam os amigos de minha alma-
"Bem sabemos que quase nada temes
E no porte aparentas muita calma."

Bah! guris, que muito já brincamos!
Então não vêem aonde já chegamos?
Tão marcados por dentro e não por fora...

Minha dor é querer mais de tanta vida
E saber que está chegando a minha hora,
A de vocês ainda é desconhecida...

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12/06/2017

A Chave do Soneto (de Alma Welt)

Para alguém ao bom soneto se lançar
É preciso que ele tenha o que dizer
Mas mais ainda o que muito perguntar
Pois os versos cuidarão de responder.

Curiosidade imensa, em resumo,
E de fundo uma certa rebeldia
Para questionar da vida o rumo,
E tanto mais de onde se inicia.

O sentido da Vida? Seu mistério?
O soneto lhe dirá, mas ele inverte
Apontando teu lugar no cemitério.

Deus lê os teus sonetos, pobre Alma,
E sorri, pois muitas vezes se diverte:
Tudo estava escrito em tua palma...

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12/06/2017

domingo, 11 de junho de 2017

O enigma do presente (de Alma Welt)

"O desencadear das circunstâncias
É o que explica o nosso aqui-agora.
Não entrarei no mérito das ânsias
De tudo o que em nós germina ou gora..."

Assim falava uma vidente num jantar
Durante a estadia aqui em casa,
E eu, guria, não cansava de a mirar
Com interrogação no olhar em brasa.

Então um dia dirigindo-me a ela,
Questionei-a com entonação singela:
"Senhora, saberás ler minha mão?"

"Eu queria decifrar o meu presente
Pois não há maior mistério ou confusão
Do que este próprio coração da gente..."

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12/06/2017

O Elefante na Sala do Banquete (de Alma Welt)

A mesa está posta, do banquete,
Mas não servida, é claro, para todos.
Não falta nem o pão e o rabanete,
E assado, o javali grande dos lodos.

Enquanto o teto não desaba, o inimigo
É cupim quase invisível: rói por dentro
Enquanto preservamos nosso umbigo
Porque pensamos só estar no centro.

Não estamos na selva? Um restaurante?
Me desculpem, me perdi a admirar...
Então é só decoração o elefante?

O menu é sempre o mesmo, a se notar:
À direita um pato exuberante,
Na metade da esquerda, o caviar...

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11/06/2017

sábado, 10 de junho de 2017

Psico ecologia (de Alma Welt)

Deus criou a terra e o mar salgado
E nos deu o pão e o presunto.
Nós fazemos arte quando muito
Mas suponho que também é emprestado.

A arte é divina quando é boa
Porque existem aquelas do demônio
E que não são simplesmente da garoa
Mas camada falsa como ozônio.

É preciso separar joio de trigo
E isso dá canseira e até muita
E deixamos passar o inimigo.

Amiúde fazemos vista grossa
Para quem se aproxima e só assunta
Furando o ozônio da camada nossa...

09/06/2017

Depoimentinho (de Alma Welt)

A vida é muito triste, eu reconheço.
Quanto a mim, no entanto, nem um pouco.
Eu rio, gargalho, e me enterneço
E às intrigas faço ouvido mouco.

Não sou chegada a rapapé nem vênias,
Meus sonetos não comportam emendas,
Minhas bacantes são todas abstêmias,
Creio pouco no real e mais nas lendas.

Vivo como se a vida fosse justa
E feiura e maldade não houvessem
E portanto desmontá-las não me custa.

Felicidade? Não estou falando disso...
Para que a dor e os sofrimentos cessem,
Desisti de ter com ela compromisso.
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09/06/2017
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O deus dos desacatos (de Alma Welt)

O soneto é melhor em quantidade
E necessário escrever um depois de mil,
Como poeta ser uma Sherazade
Salvando sempre sua vida por um fio.

De Damocles a poesia é uma espada,
Se a tememos o fio se romperá,
Mas de Penelope a teia desmanchada
A sua bela integridade salvará.

Mas somente os poetas sabem disso
E são às vezes olhados como loucos
Pela incerteza de assumir tal compromisso.

Mas lhes garanto, ó sábios e sensatos,
Que um poema é um labirinto para poucos:
No centro está o deus dos desacatos...
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08/06/2017

À individualidade (de Alma Welt)

Mantenhamos individualidade,
Nossa dádiva maior e espantosa
Nesse imenso canteiro da cidade
Desde que uma rosa é uma rosa... *

Porque nada nos levaria a crer
Que a nós fosse possível tal milagre
Quando a alma pode ou tende a se vender
E o próprio vinho caminha pro vinagre.

O Criador nos quer à sua imagem
Que é múltipla como a sala dos espelhos
E infinita como estrelas sem contagem.

Então nossa máscara retiremos,
O único ou melhor dos meus conselhos,
São infinitos os grãos do pó que recebemos...

07/06/2017

Nota
* ...uma rosa é uma rosa - alusão à frase
famosa da escritora americana Gertrude Stein: "uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa..."

domingo, 4 de junho de 2017

No Olho do Furacão (de Alma Welt)

No furacão há sempre uma calada
Profunda, imóvel, e em pleno olho.
Assim também em nossa estada
Vital e que por graça ainda escolho.

O silêncio em meio à agitação
E desvario que é a vida humana
No debater-se e no crispar da mão
Para agarrar-se nesta nau insana.

Mas a serenidade ou harmonia
Também será possível em meio ao caos
Se nos refugiarmos na Poesia

Que nos dá guarida e até consolo,
E perante tanta dor e tanto dolo
Uma nota de humor que ri dos maus...

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04/06/2017

sábado, 3 de junho de 2017

A Idade das Trevas (de Alma Welt)

Poeira sobre a terra, aglutinada,
Estamos a mercê dos grandes ventos,
Das chuvas de pedras, da queimada,
Mas sobretudo dos fatos, dos momentos,

Que não temos então como contestá-los
Embora alguns o façam, os ridículos
Amantes da utopia em pratos ralos
Na mesa dos outros, falsos vínculos...

Ah! Os santarrões de sonhos falsos!
Já meu pai me advertia contra eles,
Que apenas construíam cadafalsos...

E como mentem, torcem, desfiguram
A verdade crua e nua, mesmo a deles,
Que a Idade das Trevas inauguram...

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03/06/2017

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O Destino e as cartas (de Alma Welt)

“Se é verdade que temos um Destino
Os arbítrios foram todos programados,
E o seu total desvelo sibilino
Não lograria mudar os resultados.”

Assim disse um filósofo caseiro
Que não obstante o pedantismo
Não queria de mim nenhum dinheiro
Mas apenas exibir seu ceticismo.

Afinal procurei a minha cigana
Pelo mistério dúbio que emanava
Da estranha silhueta de Medusa

Que sugeria a terrível morte humana
Que me esperava como poetisa e Musa,
Mas que deitando cartas me encantava...
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02/06/2017

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Não verás (de Alma Welt)

"Criança, não verás país nenhum," *
Sem criança é título de um romance
Que no tempo parece nos avance,
Embora não nos faça bem algum.

Na origem era um poema ufanista*
De um famoso poeta parnasiano
Que meu pai leu pra mim no quarto ano
E que eu achei até bem realista.

Lá se foram os sonhos de grandeza
De minha pátria ainda amada, juro,
Hoje em dia mergulhada na baixeza.

Eu me pergunto como tão baixo caiu,
Um país que parecia ter futuro *
Que só um pobre suicida mesmo viu... *

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31/05/2017

Notas

* "Não verás país nenhum" - título de um romance apocaliptico
de autoria do Inacio de Loyola Brandão, publicado nos anos 80.

*Na origem era um poema ufanista -trata-se do soneto "A Pátria", de Olavo Bilac, muito criticado e satirizado hoje em dia pelo seu ufanismo um tanto ridículo. Começa assim: Criança, não verás nenhum país como este/ Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!

*Um país que parecia ter futuro
Que só um pobre suicida mesmo viu - alusão ao livro "Brasil, País do Futuro", do escritor austríaco Stefan Zweig que exilado de sua pátria se suicidou em Petrópolis junto com sua esposa, durante a II Guerra Mundial .

Notícias do Lodo (de Alma Welt)

"Nossos desejos maiores não se cumprem,
O mundo desmorona à revelia...
O povo se encaminha para o lumpen
E miséria não é fonte de poesia."

"Já não mais nos enganam os canhotos,
Que sabemos suas baixas intenções...
De esperar temos cotovelos rotos
E a fé já abandona os corações."

Um doutor que veio aqui dizia assim,
Com notícias de um famoso mar de lodo
Que ocorre além das terras do sem fim.

Mas vejo que o Diabo não sossega
E pra deixar, quando vier, a Besta cega,
Bem quisera eu cobrir meu Pampa todo...
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31/05/2017

terça-feira, 30 de maio de 2017

O Jardim dos Desraigados (de Alma Welt)

Voltar ao lar, foi tudo o quanto eu quis.
O lar se foi, não seria mais possível
À pessoa, à poetisa que me fiz,
E o que restou agora é invisível...

Tudo agora é espectral, o casarão,
O jardim da velha Frida, minha avó,
O vinhedo e o lagar em ruína estão,
Quase tudo quanto eu toco vira pó...

O Tempo é o Senhor dos desraigados
E passa como o Huno em seus cavalos
Deixando a terra, os campos, tão salgados

Que até para os capins não há retorno
Com o sabor doce que tinham ao prová-los
Mordendo um talo, deitada, olhando em torno.

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30/05/2017

sábado, 27 de maio de 2017

O Paraíso Perdido (de Alma Welt)

Caiu-me já há tempo o véu dos olhos
E já não posso neste mundo ser feliz;
Derramaram sobre a água feios óleos
Malgrado a transparência em que me quis...

Foi toda a inocência conspurcada
E a feiura reina agora sobre tudo,
A sociedade, outrora una, foi rachada
(alguém me adverte que me iludo):

"Nunca houve unidade"- alguém disse-
"Em que mundo viveste, ó doce Alma?"
E eu, a contragosto, dou-lhe a palma...

É que eu vivi no verdadeiro Paraíso,
Feliz e nua sem que ninguém me visse,
Sem precisar nem pôr no gato um guiso... *

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27/05/2017


Nota
*Sem precisar nem pôr no gato um guiso - alusão à fábula de Esopo, "A Assembléia dos Ratos". Alma quer dizer que ela podia viver inadvertidamente, sem precisar se precaver...

O Amigo Urso (de Alma Welt)

Só consigo pensar pelo soneto,
Que é uma forma de rigor e de pressão,
Já que em filosofia não me meto
Pelo menos em prosa e discussão.

Mas poesia não é tão conceitual,
Embora às vezes nos pareça
Mas tão somente no aspecto formal
Conquanto o nosso sonho prevaleça.

Dito isso, termino o meu discurso
Prometendo só contar estórias
Como aquela do meu amigo urso

Que disse ao meu ouvido, eu deitada,
Fingindo-me de morta, abandonada:
"Teus amigos é que vão cantar vitórias"..

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27/05/2017.

A Matança (de Alma Welt)

O horror neste mundo já me cansa
E não posso assistir sem calafrio
Esse grande cenário de matança
Esse "come-come" a seco e a frio...

A brutal selvageria animalesca
Que os homens imitam com orgulho
Pelo cheiro e o sabor da carne fresca
E no sangue acostumados ao mergulho...

Será mesmo, na verdade, necessário
Penetrarmos nas vísceras da vida
E para os leões sermos um páreo?

No tal Éden não havia crueldade
E a serpente convidou-nos à mordida
De um fruto, não ao resto da maldade...

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27/05/2017

A Entrega (de Alma Welt)

"Não ter real controle sobre a vida
É sempre o que me faz crer no Destino
E assim, por esta lógica, decida
Entregar a minha alma pro Divino."


Assim discorria um douto amigo
A quem no entanto faltava a humildade,
Já que não agradecia o pão e o trigo
E era só condescendência, na verdade...

Pensei: Tens fé na lógica, isto sim,
E leiloas tua alma ao melhor preço
E a entregas só ao portador do Fim,

Que é de Deus aquele arauto muito branco
Mas sinistro e sem verdadeiro apreço
Aos homens a quem vem buscar no tranco.

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27/05/2017

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Sem saída (de Alma Welt)

Tudo escuro, a falsidade nos rodeia,
E não temos o mapa da saída;
A vida já foi bela, agora é feia,
Ou temos nossa certidão vencida.

Persistimos por obra só do acaso,
Pelas possibilidades extensivas.
Há tempos confessamos nosso atraso,
Agora só sobraram as sempre-vivas,

Primas do pó a que estamos destinados
Sem ter visto sequer os verdes prados,
Flores que secam tão só para não morrer...

Os ovos goram enquanto mela o sonho
E só podemos esperar, senão temer, *
Um destino bem pior, senão medonho...

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26/05/2017

Nota
*E só podemos esperar, senão temer - Estará a Alma fazendo um trocadilho? Estará dizendo que sem o Temer, teremos um destino bem pior?

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A Pandora do Soneto (de Alma Welt)

Do soneto Deus me deu dom e os meios,
Isto é, a bagagem e o que dizer,
Pois se não tens assunto, plenos veios,
Não tens a chave com que o leitor prender...

Chave de ouro, sim, grande arremate,
Aquilo mesmo que querias expressar,
De que a primeira quadra é o "start"
E a segunda, arrazoado pra enfeitar.

Mas o primeiro terceto é um resumo
Que fazes pra um melhor entendimento
Do que será apresentado como o sumo.

Então abres de Pandora aquele cofre
Com a chave generosa do momento,
Pois de males libertados não se sofre...

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24/05/2017

terça-feira, 23 de maio de 2017

Tempos difíceis (de Alma Welt)

Nosso barco está fazendo água
E nosso poço está seco como o pó;
Nosso vinho está amargo como mágoa
E nosso farto chimarrão dá pra um só...

Poeira até onde a vista alcança
E a cadeira de balanço está quebrada
Mas de balançar a gente cansa
E o tédio nunca foi de minha alçada.

São tempos difíceis, de propina,
Nossa humanidade cambaleia
Mareada em terra-firme de baleia

Encalhados que estamos sem batel
Em cascalho, enquanto o Mal refina
Seus favoritos e os seus favos de fel...

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23/05/2017

A Terra da Discórdia (de Alma Welt)

Tão somente peço a Deus serenidade
Já que vivo na terra da Discórdia
Onde não há consenso nem verdade,
Onde batemos boca e é uma mixórdia.

Foram-se os tempos de melhor clareza
Ou de sonhos ingênuos de harmonia
Com nossa calma e soberba natureza
De onde brotava a minha poesia...

Mas das trevas saíram os ladravazes
Disfarçados de homens de gravata
Com suas bocas ávidas, vorazes...

E como gafanhotos sobre a vinha
Ou praga que corrompe tudo e mata
Fez-se a escuridão que lhes convinha...

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22/05/2017